Os emes do Orçamento

A troika era o piloto deste Governo. Com ela fora, o Governo perdeu a bússola.

O Orçamento proposto para 2015 tem uma série de atributos que o não recomendam, todos começados pela letra eme. É mistificador, malicioso, modesto e magnânimo, medroso, martelado, mal aproveitado e de moratória.

É mistificador, pela saga criada à volta da sobretaxa do IRS, simulando um braço-de-ferro entre os dois partidos coligados, com Portas a fazer de polícia bom e Passos de mau. Na realidade, o tema apenas serviu para entreter a falta de inconfidências de Marques Mendes. A solução final, transferir para 2016 virtuais reduções da sobretaxa, na medida de melhor cobrança do IVA e IRS, parecendo transparente, revela-se afinal mistificadora: a cobrança daqueles dois impostos terá de melhorar para lá de 6%, para que a sobretaxa possa ser devolvida.

O Orçamento é malicioso, no sentido de querer levar a água ao seu moinho, sem o parecer, isto é, mantém algum dinheiro no bolso de algumas pessoas, procurando que não pareça eleitoralismo. Assim, as famílias com mais filhos e ascendentes a cargo ganham rendimento disponível, os pensionistas até 4700 euros de pensão bruta são aliviados da contribuição extraordinária de solidariedade, os funcionários terão de volta um quinto do que lhes havia sido cortado antes, as empresas têm o IRC a baixar 1,5 pontos, o salário mínimo já subiu e subirá mais ainda daqui a um ano, na véspera das legislativas; o IMI será manipulado para que as subidas sejam moduladas e até a energia poderá sair mais barata para algumas famílias.

O Orçamento é modesto no investimento, mas magnânimo na disponibilidade para cobrir os prejuízos do BES. Está pronto a abrir os cofres do tesouro por risco de derrocada bancária, mas mantê-las-á cerradas ao investimento produtivo e, pior ainda, ao apoio à média empresa tornada órfã pelo crack da imponente família.

O Orçamento é medroso na ruptura dos limites do défice consentido. Já que havia vontade de não cumprir o pacto, então que valesse a pena. Em vez de duas, poderiam ser cinco ou oito décimas, desde que destinadas a investimento imediato, até que chegassem de Bruxelas os fundos. O argumento não seria desculpa de mau pagador, mas proposta de honrado cumpridor. Não é preciso ser bruxo para se prever que na realidade o limite vai derrapar. Mais valia acompanhar com hombridade a França, Itália e outros, que já declararam mandar às urtigas o limite do défice, do que mesquinhamente acoitar-se à sombra deles, ou usando boleia sem a pedir.

O Orçamento é martelado com a convicção de quem sabe ser impossível crescer a 1,5% numa Europa que decresce. Os alemães, a tal locomotiva, já baixaram de seis décimas a previsão da subida do seu PIB em 2014 (de 1,8 para 1,2) e de sete décimas para 2015 (de 2,0 para 1,3). O preço do petróleo baixou e baixará ainda mais, forçando as bolsas a perder valor e Angola a comprar-nos menos. Quão bom seria crescer a 1,5% em 2015, quando ainda estávamos a minguar a -3,2% em 2012! Crescimento significa mais emprego, menos desemprego, mais IRS, mais IVA, mais IRC, menor dívida. Tudo tão bom que o Governo não conseguiu resistir à tentação de fixar um horizonte róseo, de escassa ou nula fundamentação, para que o modelo econométrico, em cascata, lhe trouxesse de volta os níqueis caçados.

O Orçamento é mal aproveitado, por nada prever para colmatar a fossa do arranque das perspectivas financeiras da União Europeia – vulgo, os fundos estruturais de Bruxelas – esgotados que sejam os do quadro anterior. Onde está o tal banco de investimento, uma espécie de IFADAP em ponto grande? Não seria melhor recorrer à velha, mas ainda nossa, Caixa Geral dos Depósitos?

O Orçamento, afinal, não é uma promissória; é uma moratória para vencer os meses que faltam para eleições. Aguentar sem sofrer os custos de reformar parece ser o lema. Quando decide reformas complicadas, o Governo mete água, como na Justiça e na Educação. Dir-me-ão: ah, mas a reforma do arrendamento urbano foi um sucesso! A reforma laboral foi assimilada sem grandes queixumes! Os medicamentos baixaram de preço e os laboratórios até vão pagar um imposto especial! A administração perdeu efectivos sem rupturas visíveis! Pode ser que venha a ser verdade, mas sem avaliação das medidas não dá para acreditar: não conhecemos o número de famílias desalojadas, divididas, reagrupadas à força, ou insolventes, sabemos apenas que há mais despejos. A reforma laboral anda escondida atrás do pavor do desemprego, sobretudo dos activos de meia-idade, a par da chaga crescente do desemprego jovem. Os laboratórios irão pagar os cento e tal milhões do novo imposto, porque são de boas contas: os que podem vingam-se no alto preço dos medicamentos inovadores; os que não podem, os nacionais, fecharão as portas à medida que os donos perderem energia e paciência, vendendo terrenos e instalações. Sim, a administração pública conta com menos efectivos, mas a Caixa Geral de Aposentações conta com muito mais pensionistas, restando saber se “o que se poupou na mecha deu para o pitrol”.

A troika era o piloto deste Governo. Com ela fora, o Governo perdeu a bússola.

Professor catedrático reformado

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