O que Chipre nos dá que pensar

A quantidade de euros que Chipre passou a precisar “de repente”, e a origem e os formatos das diversas soluções que surgiram entretanto dão-me muito que pensar. Chipre é muito pequeno para ter impacto... Ou antes, seria, porque num copo cheio uma gota pode ser um desastre.

Em primeiro lugar, quem precisa do dinheiro? O país ou os bancos? Ou é a mesma coisa? É que não está em causa o montante para resolver o problema, 10 ou 15 mil milhões de euros é naturalmente muito dinheiro mas perfeitamente residual no orçamento dos países da comunidade europeia ou mesmo da zona euro. Politicamente, poderão estar em causa coisas como princípios, perda de confiança no sistema, falta de solidariedade ou risco de contágio. Mas em termos económicos é bem mais grave, está em causa conhecermos melhor a fragilidade financeira em que a Europa se encontra.

Um primeiro aspecto curioso é saber como é que os bancos cipriotas, sujeitos a uma supervisão supostamente igual a qualquer outro Banco na Europa, precisam de repente de uma quantidade tão grande de dinheiro.

Tive a curiosidade de ir ver as contas de um dos bancos que está para fechar no âmbito deste processo, o Laiki Bank. Entre 2007 e 2010 os seus capitais próprios rondavam os 3500 milhões de euros, os resultados vinham a decrescer mas sempre positivos: 563 milhões em 2007, 394 milhões em 2008, 174 milhões em 2009 e 87 milhões em 2010. Houve distribuição anual de dividendos no período em apreço, o valor em depósitos de clientes ia aumentando, chegando em 2010 a 25.500 milhões de euros. Em resumo, parecia à primeira vista um banco sólido, com margens operacionais positivas e um crescimento razoável de recursos.

Quando olhamos para as contas de 2011, quem está habituado a olhar para contas com umas métricas de quem olha para empresas cotadas, os avisos vermelhos são tantos que parece que estamos a olhar para uma árvore de Natal. Os prejuízos em 2011 foram de 3650 milhões de euros, cerca de três vezes o valor dos lucros entre 2007 e 2010, quase a totalidade dos capitais próprios, não fosse o enorme aumento de capital que entretanto foi efectuado em Janeiro do mesmo ano.

A leitura mais cuidada do relatório e contas do Laiki Bank, referente ao exercício de 2011, é muito clara. Em linguagem corrente diz assim: os nossos resultados correntes continuam a ser bons, em linha com os anos anteriores, Chipre fez umas alterações fiscais que precisava e as perspectivas são boas, descobriram-se por aqui novas reservas de gás, o governo vai atribuir umas novas licenças de exploração na EEZ (zona económica exclusiva), os projectos de infra-estruturas ligados com a gestão e exploração dos nossos recursos naturais vão continuar a atrair investidores estrangeiros com evidentes benefícios para vários sectores da nossa economia, incluindo os bancos. O único problema é que este ano foi muito afectado pelas decisões sobre a reestruturação da dívida pública grega, o que tem tornado por estes lados muito difícil a tarefa de criação de alguma riqueza. Por isto mesmo chamámos dois especialistas para avaliarem os nossos activos e, assumindo um cenário de manutenção desta conjuntura negativa, pedimos um cálculo das menos valias potenciais. Ora como eu sou CEO deste grupo desde Dezembro quero tudo direitinho e resolvi registar as imparidades como estes dois 'caramelos' aconselham, em resumo, uma provisão para perdas na nossa carteira de crédito de 1151 milhões de euros... e em relação à divida pública grega, entre o que já sabemos que não vamos receber e a descida no mercado destes papéis, temos que registar um prejuízo de 2830 milhões de euros.

Repare-se que a supervisão bancária passou a exigir aos bancos novas obrigações quanto a rácios de capitais, em particular o “Core Tier I”, que entraram em vigor em Junho de 2012. O Laiki Bank apresentou no início de 2012 um plano de reforço de capital, de modo a cumprir com estes novos rácios. Trata-se de um novo aumento de capital de 1800 milhões de euros, uma alteração em cerca de 600 milhões de euros de títulos emitidos de modo a poderem ser classificados como de capital (chamado capital Tier II), e vendas de cerca de 400 milhões de activos não afectos ao seu negócio principal.

O resto da história já sabemos agora  - o Banco acabou por falir, o dinheiro dos aumentos de capital e das vendas de activos não foram suficientes para fazer face aos prejuízos decorrentes da desvalorização dos seus activos e, mais importante que tudo isto, faltou-lhes a liquidez para fazer face às necessidades correntes. Sim, porque historicamente os bancos não entram em falência, como as restantes empresas, quando o passivo é superior ao activo mas sim quando lhes falta o dinheiro... ou quando se sabe que lhes falta o dinheiro. Ainda hoje, com todas as novas regras quer quanto às regras de contabilização quer quanto aos limites de capital necessário, temos um número exagerado de bancos falidos que continuam a operar como se nada fosse.

É fácil resumir esta história, é sempre fácil contar no final. O Banco recebeu o dinheiro dos clientes, aplicou-o no financiamento de projectos e muitos correram mal. E também em dívida pública grega que hoje vale cerca de 20% do que valia quando foi emitida. A culpa, evidentemente, é dos gestores que assumiram o risco em primeiro lugar e que esconderam até não poder mais a situação real do Banco. Acabaram-se 110 anos de “sucesso” no Banco, cerca de 100.000 accionistas terão perdido tudo o que lá investiram.

E quanto aos depósitos de cerca de 1.350.000 clientes? Pois, aqui dividem-se as opiniões.

A primeira questão é se o Estado deve intervir quando uma empresa entra em falência. Habituámo-nos recentemente a achar que sim, se a empresa for um Banco. Os bancos têm um papel importante no financiamento da maioria das economias, são uma espécie de intermediários entre os aforradores e os que precisam de capital para investimento.

A supervisão estabelece uns limites para que a sua actuação não seja perigosa, mas é um pau de dois bicos, se os limites forem muito altos o preço do dinheiro também o será, e muitos projectos não serão financiados. Se forem muito baixos, os bancos poderão correr mais risco mas põem em causa a segurança dos depósitos. Em certos países, como os Estados Unidos, limita-se a actuação dos bancos, que passam genericamente a ser corretores, organizando para os seus clientes, que querem capital para investir, emissões de acções ou obrigações que depois colocam nos seus clientes aforradores. Tendo a gostar mais deste sistema em que no caso de falência de um Banco, como aconteceu com o Lehman Brothers, o quarto maior Banco de investimento americano, em 2008, as perdas estão muito mais repartidas.

Sabemos que no caso de Chipre o governo achou que tinha que fazer alguma coisa. Percebe-se porquê - é que naquele país os bancos não servem para apoiar a economia.

Os Bancos são a própria economia, tudo o resto tem um peso residual. Querendo fazer alguma coisa e não tendo moeda própria, resta um pedido de ajuda à “troika” e desta vez surge uma solução que parece ter apanhado a maioria de surpresa. O dinheiro aparece, mas só para resolver parte do problema, o resto tem que ser assumido pelos depositantes, em forma de imposto para não entrar em conflito com os sistemas de protecção que existem.

O que se passou a discutir então no caso de Chipre não é uma questão económica ou financeira mas sim se se deveria abrir um precedente com uma solução deste género. É que o risco real deste exemplo é que as pessoas abram os olhos e comecem a perceber a extensão do problema do sistema financeiro na Europa.

Vejamos: é caso virgem um imposto sobre o património? Em Portugal temos 3 impostos  deste tipo, o IMI, o IMT e o IS (este também sobre a despesa), quase todos os países aplicam impostos deste tipo e nunca tinha ouvido o tipo de apreciações que agora se fazem quanto ao imposto a cobrar sobre os montantes depositados nos bancos em Chipre. Fazia-me sim confusão, por uma questão de equidade, que todos os depósitos em todos os bancos ficassem sujeitos ao mesmo imposto. Então quem tivesse o dinheiro num Banco que não tenha problema nenhum estaria sujeito ao mesmo imposto que recai sobre os depósitos dos bancos falidos? Dito de outro modo, quem tivesse dinheiro no Laiki Bank, em especial depois de ver as contas referentes a 2011, deveria esperar que o seu dinheiro não estivesse em risco? Os cipriotas atentos que viram o buraco que esse Banco estava a abrir e que resolveram mudar o seu dinheiro para um Banco mais seguro, que naturalmente lhe pagava juros menores, teriam agora que perder tanto como os outros?

Não me choca chamarem roubo ao que estão a fazer com os depositantes, poderemos pensar isso da generalidade dos impostos, em especial no actual momento económico e social em que os impostos são genericamente cobrados para fazer face a uma montanha de dívidas que se constituíram e não para o bem-estar presente e futuro das populações.

Chipre é uma migalha na economia da Europa. Deixar falir, como por certo acontecerá, é a mesma coisa que termos fechado a porta ao nosso Banco Privado Português - faliu faliu, quem arriscou colocar lá o dinheiro é que tinha obrigação de ter visto. Não me atirem areia para os olhos sobre o risco sistémico, ai agora vem tudo atrás, vai haver uma corrida generalizada aos depósitos em toda a Europa, nenhum depósito está seguro, não tarda vêm soluções semelhantes para Portugal, para Espanha e para todos os países com problemas financeiras. Até é natural que isto tudo venha a acontecer... mas não é por Chipre ter falido, é por causa da Europa que também está falida.

A grande questão, que evidentemente nos deve atormentar é: e agora, essa boa gente da “troika” vai replicar a receita de Chipre? Bom, da segurança da propriedade privada e do modelo de democracia e solidariedade na Europa acho que estamos conversados. Assim é mais simples e a pergunta passa a ser: e haverá necessidade noutros países de coisas semelhantes?

Sabem as peças de dominó, que se põem todas de pé e quase encostadas? É como me parecem estar os mercados financeiros da Europa, está tudo atento quando cairá a primeira pedra e neste caso se Chipre será essa pedra. Já sabemos o discurso dos políticos: 'Não, isso é um caso isolado, com características muito especiais, não acontecerá em mais país nenhum'. Não foi isso que já disseram quando se colocou o problema na Grécia, e na Irlanda e em Portugal? Que diferença há agora?

A generalidade dos bancos europeus precisariam de um aumento de capital. Não estou nem a falar dos rácios mínimos que a supervisão exige, estou a falar de ter uma estrutura de capital efectivamente capaz de suportar os riscos a que estão sujeitos. Mas quem é que no seu perfeito juízo vai investir nos bancos agora?... Pois, nem os países o querem fazer, aliás, não querem e também não podem, é que nem têm dinheiro nem têm os instrumentos de política monetária a que em tempos estavam habituados.

É que o problema não está só nos bancos, os países também estão falidos. Quem compra dívida pública agora? Apenas os especuladores que ainda confiam que o Banco Central Europeu tratará de ir comprando os papeizinhos no mercado secundário quando for preciso. A verdade é que a Europa está sem dinheiro. Dizemos muito mal da Alemanha, que podia ajudar mais etc etc, mas sejamos justos -  a Senhora Angela Dorothea Merkel já passou cheques para cobrir as ajudas até agora de cerca de 5% do PIB alemão. Nós, os que precisamos de dinheiro, andamos a esticar a corda para além dos limites. A Alemanha só nos ajuda enquanto isso for bom para eles, alguém tem dúvidas disso? O que a Alemanha tem feito estes anos não é muito diferente do que os americanos fizeram no pós-guerra, há 66 anos, com o conhecido plano Marshall. E quanto é que gastaram os americanos na altura? Pois, 5% do seu PIB, a mesma percentagem que a Alemanha gastou estes anos. E vai gastar mais que isso? Esqueçam, antes disso sairia do Euro.

Ouvi um político dizer que ainda temos o ESM, o mecanismo de estabilização europeia, essa coisa fantástica criada o ano passado para emprestar muitos milhões a quem precise. Fantástico é, mas não será só uma coisa contabilística? É que só a Espanha e a Itália terão que realizar 30% desse “fundo”. Mas com que dinheiro?

Detesto ser pessimista. E a solução virá como? Virá do BCE, só pode. Mais tarde ou mais cedo põe as rotativas a funcionar e produzem euros. Funcionará, é a minha opinião, se o fizerem com jeito e com muito critério em como o injectam na economia. O investimento produtivo, mesmo que financiado com dinheiro virtual, funciona e pode inverter a tendência que temos assistido. Podemos encostar os políticos todos a uma parede e reclamar o que achamos que é nosso por direito. Vão todos concordar connosco mas sem nada para nos darem. Ou produzimos mais ou comemos menos, não há alternativa.

Consultor em projetos de investimento e seguros de crédito

Artigo corrigido a 29 de Março: os resultados do Laiki estavam indicados como sendo na ordem dos "mil milhões"; trata-se, na verdade, de milhões de euros: por exemplo, 563 milhões em 2007, e não 563 mil milhões,

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