Gelpeixe: o negócio separou dois irmãos

Depois de 37 anos, visões diferentes do negócio levaram Joaquim Tarré a vender a sua parte na Gelpeixe ao irmão Manuel Tarré, com quem fundou a empresa, juntamente com o pai. Com todo o tempo do mundo para gastar, só lamenta não ter estado mais presente na vida da família. “Os meus filhos não me viram. E não há dinheiro, nem sucesso que justifique isso”.

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Joaquim Tarré, 57 anos, fundou a Gelpeixe em 1977 com o pai e o irmão Enric Vives-Rubio

Foram dias de angústia. Joaquim Tarré, 57 anos, nunca fez mais nada na vida sem ser trabalhar na Gelpeixe, empresa que fundou com o pai, Francisco Tarré, e o irmão, Manuel Tarré, em 1977. Mas visões diferentes de negócio ditaram o fim da parceria familiar, 37 anos depois. Saiu do barco no final do ano passado, levando consigo o filho mais velho de 29 anos que também trabalhava na organização. Vendeu a sua parte ao irmão, que agora controla 100% da Gelpeixe, com 150 trabalhadores e 50 milhões de euros de facturação, conseguidos com a transformação e venda de pescado e outros congelados de carne, refeições prontas ou salgados.

A vida era a empresa. A empresa era a vida. “Eu estava ali, focalizado. Houve meses em que trabalhava 90 horas por semana. Claro que tinha capacidade para isso e motivação, via as coisas acontecerem, mas se voltasse atrás não faria isso”. A imagem do filho mais velho ainda criança à sua espera em casa às onze da noite ainda está bem presente na memória do ex-vice presidente da Gelpeixe. “Chegava a casa a essa hora e às cinco da manhã já estava a pegar no trabalho. É disso que me arrependo. Os meus filhos não me viram e não há dinheiro, nem sucesso que justifique isso”, lamenta. De segunda a sábado, horas a fio. Domingo servia para descansar. Saídas com as crianças não havia. “Neste aspecto não fui equilibrado”.

Joaquim Tarré não quer falar dos motivos que precipitaram a separação dos irmãos. Diz que há alguns anos houve uma tentativa de fazer um protocolo familiar, um acordo escrito consensual entre todos os membros onde, como refere a Associação Portuguesa das Empresas Familiares, se fixa o que deve ser “o guia de conduta da família em relação à empresa e em relação à própria família”. Mas o mais importante ficou por fazer. “Pelas mais diversas razões, na altura não passou à acção. Ficou em esboço. Havia algumas divergências e adiámos”.

O tempo passou mas as probabilidades de “as coisas se complicarem” era grande. Havia, diz, um “grande desgaste”. “Era preferível, por muito que me custasse, sair. Cheguei a acordo como meu irmão. Custou, claro. Era eu quem lidava com os trabalhadores diariamente. Era o rosto que estava lá todos os dias”.

Os momentos que se seguiram à venda da sua participação no capital da Gelpeixe foram vividos com angústia. Joaquim Tarré não esconde que sentiu ansiedade ao deixar a empresa. Como se retoma a vida depois de 37 anos a gerir pessoas? “Os meus planos para o futuro passam por trabalhar menos. É daquelas frases muito simpáticas que eu oiço as pessoas falarem quando estão na faixa dos 45 anos e dizem que aos 55 não vão trabalhar às sextas e vão jogar golfe. Isso nunca acontece. Mas a verdade é que agora tenho menos stress em cima”. Sem horários para cumprir, vai manter-se na retaguarda dos filhos. Entretanto, participa em conferências onde é convidado a falar sobre a sua experiência.

O fundador da Gelpeixe sai da vida de empresário com dinheiro suficiente para não ter de se preocupar no final de cada mês. Mas ainda fala no plural quando recorda a história da empresa. O seu lugar era gerir a produção, a logística ou os recursos humanos. O irmão tinha o pelouro da comercialização, do negócio puro e duro. Apesar do desfecho não ter sido a sua continuidade no negócio familiar, a fórmula resultava, garante.

“Sempre tivemos tarefas separadas. O meu irmão, primeiro coadjuvado pelo meu pai, preocupava-se em comprar e vender. Eu preocupava-me com o resto. Fui-me rodeando de pessoas com competência nas suas áreas”, conta.

Nunca houve propriamente um plano de negócios. A empresa cresceu impulsionada pelas ideias dos dois irmãos, que transformaram uma pequena loja de electrodomésticos em Loures detida, primeiro pelos avós, depois pelos pais, num operador importante na indústria alimentar. “Inicialmente, era uma coisa muito simples. Depois surgiu a oportunidade de vendermos arcas frigoríficas para armazenar gelados da Olá e produtos da Gelmar. Mais tarde começámos a também a vender gelados para garantir que os clientes ficavam com as arcas e não as devolviam”, recorda.

Joaquim Tarré entrou no curso de Engenharia Electrotécnica do Instituto Superior Técnico de Lisboa em meados de 1974. Estudava de noite e trabalhava de dia. “Eu, o meu irmão e o meu pai fazíamos facturas, entregávamos gelados, essas coisas. E tínhamos mais uma pessoa a trabalhar”. No Verão o negócio fluía, no Inverno o consumo de gelados parava. A família precisava de contornar a sazonalidade e, por isso, apostou na venda de peixe congelado que ia comprar a Peniche. Foi numa garagem, suficientemente grande para acomodar três viaturas, que o novo negócio arrancou. Seria a base da Gelpeixe. O escritório era em casa.

“Na altura não embalávamos, servíamos apenas de grossistas e só começámos a embalar muito mais tarde. Não havia um plano de negócios e foi tudo muito natural”, continua.

A primeira fábrica nasceu em 1979, num pavilhão pré-fabricado com 540 metros quadrados, 15 a 20 trabalhadores que cortavam e embalavam o peixe. A comercialização era feita em peixarias e pequenos comerciantes de bairro, nas proximidades de Lisboa. A partir da década de 1990, a empresa familiar alargou a venda a todo o país através de grossistas, modelo que ainda mantém.

A estreia na grande distribuição aconteceu no primeiro hipermercado que a cadeia francesa Carrefour instalou em Portugal (e cujas lojas o grupo Sonae veio a comprar em 2007). “Na altura tinham apenas uma loja em Telheiras, o que nos permitiu testar o modelo. Pode falar-se mal da grande distribuição, que são arrogantes e que pagam mal. Mas são eles que vendem”, sustenta.

Joaquim Tarré geria diariamente a produção, logística e a mão-de-obra com base numa premissa que gosta de sublinhar: “Faz aos outros o que gostasses que fizessem a ti”.

“Na Gelpeixe, cerca de 75% das 150 pessoas trabalham diariamente com peixe. Carregam, descarregam. Na fábrica só há duas temperaturas possíveis: quem embala peixe trabalha num ambiente de oito graus; quem trabalha dentro das câmaras está sujeito a temperaturas de 20 a 25 graus negativos. Ganham vencimentos não muito altos. Como é que podem estar contentes?”, questiona.

O ex-vice-presidente garante que são precisas “medidas diferenciadoras” para motivar e manter pessoas numa empresa como esta, com duras condições laborais. Por isso, todos os trabalhadores têm seguros de vida, seguros de doença, almoço num refeitório onde todos comem. “Tratamos bem os reformados e em caso de doença grave acompanhamos as pessoas”, continua. Nada foi previamente delineado. “Foi acontecendo”.

Recorda um episódio para mostrar como a empresa tinha os seus colaboradores no topo das prioridades. “Em 2010, não houve aumentos de ordenados. O anúncio foi feito em Janeiro no almoço habitual para assinalar o aniversário da empresa. No final do ano, no almoço de Natal, e como foi possível manter o negócio mais ou menos estável, decidimos pagar mais meio ordenado”.

Em Setembro, Joaquim Tarré deixou de ter qualquer ligação à Gelpeixe. Continua a ir à empresa. Está a organizar dossiês, a passar a pasta. “Sou fundador. Instituí uma série de coisas, algumas que só eu sei. Quero que a empresa continue no bom caminho e estou a deixar os assuntos preparados”. Vender foi a melhor alternativa, defende. “Seria um desgosto tremendo ter de vender a outros ou deixar a Gelpeixe porque está insolvente ou ter de despedir. Seria um desgosto maior”.

Já fora da empresa familiar, recebeu o prémio “Personalidade do Ano”, atribuído durante os Masters do Capital Humano, evento que todos os anos distingue empresas e gestores na área dos recursos humanos. A votação é feita online pelos profissionais da área. “Acho que o mereci. No final, é uma distinção pelo que desenvolvi, pelas pessoas. É merecido, ainda mais, nesta altura”, admite.

As relações com o irmão, Manuel Tarré, “são cordiais”. “Tentámos para bem de todos manter o mínimo. Isso até à data tem sido possível”, conta.

Com mais tempo, sem pressão, nem semanas de 90 horas, o gestor está a aprender a readaptar-se ao novo ritmo.

 

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