O manifesto da desistência

Em nome de uma “estratégia de combate à crise”, este é o manifesto da desistência.

Expliquem-me devagarinho, porque eu devo ser muito burro. Nós estamos numa altura crucial do nosso ajustamento. A troika está quase a ir-se embora, o país procura regressar aos mercados sem a ajuda de um programa cautelar e os juros da dívida têm estado a baixar. Mal ou bem, os malfadados mercados acreditam mais em nós hoje do que há três ou quatro anos.

Ora, que sentido faz precisamente agora, neste momento, a dois meses do final do programa de ajustamento, um grupo de 74 ilustres figuras, incluindo ex-ministros das Finanças como Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite, e fervorosos esquerdistas como Carvalho da Silva ou Francisco Louçã, virem juntar-se para, de dedo no ar, informarem-nos de que nunca iremos conseguir pagar a nossa dívida e que o melhor é começar já a reestruturar?

Se o objectivo do manifesto é ajudar o país, então ele não tem pingo de lógica. Em política, o timing conta. Não pode ser no exacto momento em que nós mais precisamos da boa vontade dos mercados que vimos dizer que, afinal, não vamos conseguir pagar o dinheiro que andámos a pedir emprestado ao longo dos anos. Estamos a brincar? O Joaquim empresta dinheiro ao Manuel. O Manuel gasta o dinheiro todo e precisa de pedir mais ao Joaquim. Então os subscritores do manifesto aconselham o Manuel a fazer o seguinte: ir ter com o Joaquim informando-o de que não lhe vai pagar o primeiro empréstimo, ao mesmo tempo que lhe pede um segundo. Sim, o manifesto dos 74 é mesmo tão estapafúrdio quanto isto.

E sim, a situação explica-se mesmo com uma comparação tão primária quanto a do Manuel e do Joaquim, porque nós estamos a falar de coisas básicas, como a confiança, a credibilidade, a fé no empenho de um parceiro para executar as reformas a que se comprometeu. Não é, em primeiro lugar, uma questão de números – é uma questão de atitude e uma questão política, coisa que o manifesto parece esquecer. E é, também, uma questão de bom senso, qualidade que está completamente ausente de um texto que desata a fazer comparações entre o Portugal de 2014 e a Alemanha de 1953, sem o menor sentido das proporções.

O problema não é que aquilo que está escrito no manifesto seja mentira. Qualquer pessoa que tenha lido dois textos sobre economia sabe que a dimensão da dívida a torna impossível de pagar sem o alongamento dos prazos e as baixas de juros. O problema é que aquilo que o manifesto diz, e aquilo que exige aos nossos governantes, não pode, por razões óbvias de estratégia, ser assumido por eles. É matéria para ser tratada nos bastidores, não à luz do dia. Coisa que, aliás, este Governo fez de todas as vezes (e foram várias) que conseguiu alargar os prazos e flexibilizar as metas nos últimos anos.

É por isso que este manifesto é inútil. Tão inútil quanto eu dizer à minha prima Olinda que ela é feia. Não porque ela não seja feia, mas porque não pode fazer nada para mudar isso. Acho comovente que este manifesto reúna tanta gente que não se sentaria à mesma mesa num restaurante, mas acho absurdo que tantas pessoas inteligentes aconselhem nesta altura o Governo a não pagar, como se fossem jovens estudantes a lutar contra as propinas. Qualquer governo daria tudo para não pagar, como é óbvio. Só que não pode. Em nome de uma “estratégia de combate à crise”, este é, pois, o manifesto da desistência: assume logo à cabeça a falta de fôlego do país, só para não ser obrigado a dar mais umas voltas à pista.

Jornalista

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