O governador no labirinto da política

1. Sempre que há um assalto sobram perguntas sobre a actuação da polícia. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso BES, o governador do Banco de Portugal viveu essa desconfortável sensação. Para a maioria dos deputados, dos líderes partidários, dos membros do Governo e até da opinião pública, a maior destruição organizada de riqueza no Portugal das últimas décadas não se sublima apenas com a identificação dos seus autores materiais. Exige mais cabeças. E como Carlos Costa é um homem que paira sobre o “capital social” do poder, sem relações com deputados, com os líderes partidários ou com os membros do Governo, está no lugar certo para ser a vítima errada disto tudo.

A forma como foi acossado esta semana na CPI diz muito sobre a mesquinhez e a falta de valores do salve-se quem puder da política portuguesa. Num gesto que indicia cobardia e transpira má-fé, tentam-se sublinhar os escândalos do BES construindo um bode expiatório. Para se chegar a esse momento, esquece-se a avaliação da honestidade, do sentido de serviço público ou da competência da vítima escolhida. Basta pegar em detalhes, em erros de avaliação, em excessos de prudência, em zelos determinados pela gravidade de decisões como a de salvar um banco dos seus algozes para se construir uma imagem de irresponsabilidade.

Carlos Costa errou muitas vezes, talvez até vezes demais. A sua cautela fê-lo reagir muito tarde, a sua prudência paralisou-o, os limites dos seus poderes enquanto supervisor aprisionaram-no no formalismo e no medo, as suas hesitações sobre o papel comercial esfacelaram a sua credibilidade. Mas, no essencial, esteve à altura das suas responsabilidades. Ou, ao menos, fez o que pôde. Como escreveu José António Lima, no Sol, “o governador do BdP não fez o mesmo que os seus antecessores, que fecharam os olhos, foram complacentes ou cúmplices com as más práticas ou irregularidades dos banqueiros – este governador pode ter levado demasiado tempo para agir, mas foi o primeiro a ter coragem de enfrentar o todo-poderoso clã dos Espírito Santo, de os arredar da gestão do BES e de salvar o que era possível num banco em ruinas”.

O governador está no lugar onde os deputados e o Governo o colocaram não tanto pelo seu desempenho, mas mais por interesse político. A sua situação “lembra a de alguns agentes secretos no pós-Guerra Fria. Já não é útil a quem está no poder e ninguém quer justificar os seus actos”, como escreveu Ricardo Costa, no Expresso. Tornou-se assim um homem descartável, em final de mandato, fragilizado e desgastado pela missão impossível de gerir os estilhaços de um assalto. O seu drama é não ser um super-homem. Estava condenado a hesitar, a esperar, a adiar, a errar e a recorrer a medidas drásticas para salvar o que fosse possível – a resolução do BES no fatídico primeiro fim-de-semana de Agosto.

Percebe-se que os deputados da oposição queiram fazer do caso BES a ilustração perfeita de um tempo de desgoverno. Mas custa mais a perceber o papel a que o Governo se prestou na condenação pública do governador. Em tempos Pedro Passos Coelho tinha avisado que “o que aconteceu no BES não é um resultado de má supervisão, é um resultado de má gestão do banco” e manifestou o seu desejo de que “nenhuma comissão de inquérito inverta este problema”. Não foi preciso a intervenção dos deputados. O seu vice-primeiro ministro e a sua ministra das Finanças trataram de “inverter” o problema. Pura tentação: ao agravar as responsabilidades de Carlos Costa, o Governo tenta escapar às suas. Porque por muitas juras que a ministra faça sobre a neutralidade do Governo neste processo, ninguém acredita que em Portugal um banco com a dimensão do BES possa ter estourado sem o seu envolvimento. Como afirmou o sempre desassombrado Fernando Ulrich, “não é possível fazer a separação do Governo da situação do BES”.

No final de todo este processo, incomoda ver Carlos Costa a assumir a carga de culpas que vai muito para lá dos erros que cometeu. Custa ver um homem que, por intuição e pelo seu exemplo, reputamos de íntegro a ser assim demolido ao sabor dos interesses políticos e partidários. “Às tantas, parece ser o culpado disto tudo. Não foi, nem é”, escreveu António Costa, no Diário Económico. Por muito que lhe critiquemos alguns actos, é dever da inteligência e da ética reconhecer que, no final, ele também foi uma vítima de Ricardo Salgado.  

2. Num texto particularmente violento contra a “lei da gravidade da mediocridade intelectual e cívica”, o eurodeputado Francisco Assis retoma o caso da lista VIP do fisco para se dedicar a uma apologia embevecida da liberdade e à denúncia áspera do igualitarismo populista que, afirma, grassa no discurso político e mediático. Para Assis, as críticas à existência de um serviço público que concede tratamento de excepção em matéria de direitos individuais a determinadas figuras públicas em vez de se preocupar em garantir a universalidade desses direitos não passa de uma cedência ao “medo de desagradar a uma nova inquisição de natureza eminentemente populista”.

Para Francisco Assis, parece ser impossível combater a devassa do segredo fiscal dos titulares de cargos políticos através de um mecanismo que garanta a todos a partilha dos benefícios desse combate. Esta exigência, afirma Assis, traduz uma “insuficiência” conceptual e lógica do igualitarismo, já que, supostamente, a protecção dos segredos fiscais dos políticos é mais premente (por uma questão do interesse dos media) do que a dos cidadãos comuns.

Não se discute a hierarquia da premência. O que se discute é a razão que leva Assis a afirmar que a sua recusa de um privilégio revela um escasso amor pela liberdade. Esse é o ponto onde Assis cai num populismo invertido, numa espécie de populismo elitista – os ricos e poderosos têm direito a excepções na protecção de direitos. O Estado de Direito garante a igualdade de todos perante a lei e a criação de uma lista com protecções especiais para uma determinada classe é uma clara violação do princípio da igualdade - logo é um ataque ao Estado de Direito e à liberdade. Ainda mais porque essas protecções não foram discutidas no Parlamento e vertidas em lei – tratava-se de uma perigosa excepção desenhada nos labirintos da burocracia nomeada pelo Governo.

O que esta discussão revela de útil é a necessidade de se garantirem mecanismos que nos salvem do voyeurismo dos agentes do fisco. Mas que nos salvem a todos e não apenas a alguns.

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