O estado da nação e alguns debates necessários

Talvez não fosse má ideia pensarmos nós mesmos como nos queremos governar.

1. Um escândalo de índole aparentemente criminosa alegadamente envolve certos médicos, farmácias e doentes, que através de faturas falsas, aquisição fictícia de aparelhos complementares de terapêutica e outros expedientes lesaram fiscalmente o Estado, que os comparticipava.

As despesas públicas foram parar ou a contas bancárias ou a gastos em espécie em viagens de férias. A fraude no SNS remete desde logo obviamente para um problema ético, daqueles que não percebem, ou não querem perceber, que roubar o Estado é ir aos bolsos dos seus concidadãos, através de mais impostos. Há depois um problema de falta de transparência e de pouco cruzamento de dados. O problema combate-se com mais recursos financeiros e humanos das instituições que investigam e interpõem processos (Polícia Judiciária e Ministério Público) bem como com legislação adequada.

2. Em todas as profissões – farmacêuticos, médicos, contabilistas ou banqueiros – haverá sempre gente honesta e desonesta. A questão é saber como é que uma sociedade se organiza para maximizar as atividades produtivas, no privado e no público, e desincentivar comportamentos rentistas e corruptos. Há que investir em mais transparência, fiscalização, regulação, legislação adequada e meios de investigação criminal. Neste campo, Portugal não tem uma legislação adequada de criminalização do enriquecimento ilícito. Se a tivesse – não confinada a titulares de cargos políticos (ver Decreto 37/XII aprovado na AR, resultante dos projetos aprovados do PSD/CDS, BE e PCP em 2011 para depois ser declarada inconstitucional em 2012), mas a todos os cidadãos – casos como o referido acima seriam menos frequentes. Os argumentos em torno da presunção de inocência e dos meios de prova, que impediram a viabilidade da constitucionalidade, poderiam ter sido contornados se houvesse vontade política.

3. O caso do BES não parece ser um caso de polícia, o mesmo já não parece suceder com algumas pessoas ocupando lugares-chave nas suas holdings e que emigraram para locais incertos. O que há de relevante neste caso já foi dito e redito (concordo com o Nicolau Santos no Expresso de 12 de julho). O BES parece estar pouco exposto aos problemas do grupo e, segundo Carlos Costa, está solvente e de momento cumpre os rácios de capital. Se a União Bancária já estivesse completa, tudo seria mais simples, pois estariam mais bem salvaguardados todos os depósitos. Convém recordar apenas que o IGCP detém uma almofada financeira muito significativa, cujos juros todos estamos a pagar, e que inclui verbas para recapitalização da banca (ainda emprestados pela troika), mas que nas últimas comunicações aos investidores tem sido referido que será significativamente reduzida em 2015. Esperemos que efetivamente sejam os ativos do Grupo Espírito Santo a ser alienados para fazer face às responsabilidades, e que o Estado não tenha de colocar dinheiro público no BES. Assim, a almofada financeira pode e deve ser reduzida em 2015 conforme previsto.

4. É importante iniciar alguns debates públicos. Um deles em torno do Relatório sobre a Fiscalidade Verde coordenado por Jorge Vasconcelos. É de saudar a relação, muitas vezes inexistente neste Governo, entre finanças e ambiente. Nunca é de mais repetir que as finanças não são um objetivo de per si, mas um instrumento de política económica. Para que as propostas inscritas no relatório, melhoradas pela discussão pública, sejam vertidas em legislação, é necessário combater uma coligação negativa em torno da argumentação de que “se trata apenas de um relatório técnico”, e de que vai “fazer aumentar os impostos” ou “afetar negativamente o turismo”. Importa clarificar que a proposta assume uma neutralidade fiscal, isto é, que o aumento de impostos é compensado por benefícios fiscais. Concordo com a introdução de benefícios em sede de IRS com as despesas em passes sociais, ou com o subsídio ao abate de veículos automóveis, bem como com o imposto sobre tarifas aéreas, que permite alguma exportação fiscal para não residentes. Sugiro que parte das receitas obtidas seja aplicada em incentivos à natalidade, em sede de IRS. Isto permitiria alargar a base política parlamentar de sustentação da proposta. Uma coisa é certa, tributar mais o carbono vai ter a oposição dos lóbis dos que beneficiam direta ou indiretamente dos poluentes da atmosfera. Mas o ambiente e as gerações futuras agradecerão.

5. Outro debate essencial é em torno do sobre-endividamento, do Estado, das empresas e dos consumidores, que é um obstáculo ao crescimento económico, pois leva a políticas orçamentais recessivas de redução do défice (cortes de despesa e/ou aumento de impostos), dificulta o investimento e torna mais difícil o acesso ao crédito a empresas e particulares. O sobre-endividamento destes últimos, associado à queda do valor dos seus ativos (habitação) e à queda dos rendimentos, dificulta a retoma do consumo privado. As causas desse foram as baixas taxas de juro, a desregulamentação no acesso ao crédito e um sistema fiscal que incentiva as empresas a endividarem-se mais do que a reforçar os seus capitais próprios. São cada vez mais as vozes nos fora internacionais (Krugman, Stiglitz, Rogoff, etc.) que pugnam por uma renegociação da dívida soberana dos países periféricos, o que, tendo já sido parcialmente efetivada por este Governo, na opinião de muitos não é suficiente. Esta semana saiu mais um contributo para esse debate da autoria de Ricardo Cabral et al. (Um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa). É um relatório extenso que merece ser lido e discutido, pela quantidade de informação e de reflexão que fornece. Concordo com grande parte do diagnóstico, mas não com as soluções preconizadas. Mais tarde ou mais cedo, chegará o dia em que teremos de arranjar uma solução para o problema das dívidas soberanas (apenas parte do problema), que é europeu, para além de ser nacional. Talvez por isso Hans Werner Sinn, em artigo do Project Syndicate, sugira uma conferência europeia de credores e uma maior flexibilidade na possibilidade de optar por estar ou sair do euro. Quando chegar esse debate, deveremos estar preparados para ele, lendo e rebatendo os argumentos daqueles com quem discordamos, e não enfiando a cabeça na areia.

6. Um terceiro debate necessário, que deveria envolver, entre outros, cidadãos e organizações da sociedade civil, economistas e constitucionalistas, prende-se com o alcance e as implicações dos acórdãos do Tribunal Constitucional em termos de cortes salariais e de pensões. Talvez não fosse despiciendo que os economistas percebessem os argumentos jurídicos e que os constitucionalistas percebessem os argumentos económicos. Seja qual for, a margem de manobra para os cortes de despesa tem de ser conhecida. De momento parece existir um não-diálogo que em nada favorece os acórdãos do Constitucional nem a capacidade de governação.

7. Entretanto, a nação continua, com um Governo em suspenso da decisão do Constitucional, uma oposição à procura da sua identidade, um Presidente à procura de compromissos e cidadãos e empresas a fazerem pela vida. E o tempo passa. Estamos a escassos três meses da apresentação do Orçamento do Estado na Assembleia da República, com inúmeros organismos internacionais a opinar, de forma contrária (!), sobre o que devemos fazer (OCDE, Comissão, Conselho de Ministros das Finanças). Talvez não fosse má ideia pensarmos nós mesmos como nos queremos governar. Compromissos políticos, obviamente só depois das eleições legislativas, como alguns defenderam, e bem, no Conselho de Estado.

Sugerir correcção
Comentar