O Estado, a supervisão bancária e as operações de recapitalização

O Ministério das Finanças deu o seu acordo de princípio à participação do Estado na operação de recapitalização do Banif. É uma operação realizada à semelhança das que ocorreram, em 2012, no Banco Comercial Português, no BPI e na Caixa Geral de Depósitos.

 O Estado fala em injecção de capital, mas há órgãos de informação que dizem que o Estado “gasta” 1100 milhões de euros nesta operação, há comentadores políticos que a comparam com o BPN e muitos a emitirem a opinião de que se trata de um mau exemplo de aplicação de dinheiros públicos - que não chega para ordenados, subsídios e pensões, que obriga a racionalizar na Saúde e Educação, mas que chega para estas coisas. Todos terão a sua razão, para mim trata-se de um excelente negócio para o Estado, feito ao arrepio das condições em que a banca era autorizada a operar, que só se entende e aceita nas condições actuais, em que o Estado precisa, como de pão para a boca, de um sistema financeiro capaz e de bom destino de algum dinheiro.

Assistimos nos bancos a autênticas barbaridades de gestão, por inabilidade na definição de certas estratégias, por evidente conflito de interesses entre gestores e accionistas e por frequentes manipulações do preço de mercado das suas próprias acções. São estas, na minha opinião, as principais razões para enormes perdas de valor, repartidas em primeiro lugar pelos accionistas dos próprios bancos, mas com prejuízo evidente no seu papel de apoio e dinamizador da economia em geral. Tudo isto se passa mesmo com um sistema de supervisão pesado, que eu penso que moderadamente tem funcionado, e com uma legislação que supostamente restringe os bancos às piores práticas. A opinião pública é muito curiosa neste tema: por um lado, atribui à banca um poder desmesurado só exercido nos seus próprios interesses, mas, por outro, acha lógico a intervenção do Estado, quando está em causa o levantamento dos seus depósitos.

O modelo de negócio mais habitual nos nossos bancos é simples - compram e vendem dinheiro, usando uma economia de escala que lhes permite tirar partido de uma informação mais barata e compatibilizarem diferentes horizontes temporais entre os que depositam e os que contraem empréstimos. Em rigor nada impede que, por exemplo, alguém prefira emprestar os seus euros ao merceeiro seu vizinho do que  depositar num banco. O merceeiro poderia assim investir em mais e melhores produtos, aumentar as suas vendas, devolver o dinheiro emprestado e todos ganhariam. Esta troca quase directa poderia funcionar, mas é fácil enumerar uns quantos problemas. Será que é melhor emprestar a este ou aquele merceeiro? Quando eu precisar de pagar o passe para os transportes, tenho de ir ao merceeiro? E ele terá o dinheiro que eu preciso ou entregou-o ao fornecedor? E se ele não vende? E se não me paga? Claro que é melhor depositar no banco e esse, se o entender, que o empreste ao merceeiro. Mas convém lembrar que não me isento de riscos. Há bancos que escolhem melhor os merceeiros e nem todos emprestam (quase) tudo o que lá deposito. E estes riscos são muitas vezes esquecidos, como se os bancos, quando nos dá jeito, fossem apenas instituições filantrópicas que nos guardam o dinheiro. Os bancos, esses que conhecemos melhor, não nos guardam o dinheiro, aplicam-no com uma gestão de risco supostamente adequada, que nos permite dispor do depósito até acrescido de algum juro, pagar toda uma estrutura complexa e ainda sobrar algum em forma de lucros.

Não é segredo, faz parte das condições normais de actuação dos bancos, que só uma pequena parte dos depósitos é mantido na forma de reservas, tudo o resto é aplicado, investido ou gasto na estrutura. E os bancos não têm nenhum condão especial para que os seus negócios corram sempre bem; aliás, vivem num ambiente competitivo, são obrigados a correr riscos para fazerem negócios, e risco é isso mesmo, existe efectivamente a possibilidade de as coisas correrem mal, de o dinheiro dos depositantes se perder. Repare-se que este processo não é muito diferente das restantes empresas, que, quando aplicam mal o seu dinheiro, ou até por razões conjunturais, podem entrar em estado de falência e perder a capacidade de cumprir as suas responsabilidades a quem lhes concedeu crédito, e também ao seus trabalhadores, aos seus clientes e ao próprio Estado. Nos bancos existe uma preocupação acrescida em relação a estas situações - um caso de uma falência pode ter consequências terríveis, primeiro para o próprio sistema financeiro, mas também e em especial para toda a economia.

Alguns podem-se interrogar se faz sentido um sistema deste tipo, se é necessário que a nossa sociedade viva com este risco iminente. É, o risco pode ser minimizado, quase até anulado, mas, como em tudo, com outros prejuízos associados. Podemos ver outros países, nos Estados Unidos, por exemplo, os bancos não actuam como os nossos, poucos aceitam depósitos e aplicam o dinheiro como nós o fazemos - têm um papel de intermediário, funcionam como corretores. Não se pode afirmar que seja melhor sistema, mas tem a vantagem de o risco estar mais distribuído, todos os anos centenas de bancos vão à falência, mas o risco sistémico tem consequências mais contidas. Até um gigante como o Lehman Brothers pode falir e o sistema aguenta-se.

É preciso não esquecer que as operações de recapitalização dos bancos a que assistimos no BCP, no BPI, na CGD e agora no Banif não foram provocadas por falhas nos negócios conduzidos por estes bancos. Outro tipo de gestão ou outras estratégias poderiam ter evitado estas operações, mesmo cá; o BES conseguiu outras formas de se recapitalizar que considerou, e bem, menos gravosas do que conseguiria com o apoio do Estado. Os bancos precisaram de se recapitalizar, porque as entidades de supervisão consideraram ajustado diminuir a alavancagem financeira que antes era permitida. Não está em causa a pertinência da decisão, mas é triste que um grupo financeiro, ou outra qualquer empresa, se constitua de acordo com a lei e as regras de mercado e depois alguém (o Estado) venha dizer que afinal não podem operar como foram autorizados e que precisam de mais dinheiro para fazer o mesmo que faziam. É que um banco não começa a operar sem antes ter aprovado pelo Banco de Portugal o seu plano de negócios e o que é certo é que ninguém indemniza aqueles que investiram nesse pressuposto e que depois perde valor, quando lhe dizem que as regras têm que ser outras. É que uma coisa é um negócio poder correr mal, são os riscos inerentes à própria actividade, mas outra, bem diferente, é mudaram as regras a meio do jogo com prejuízos evidentes para quem investiu. Pode-se dizer que muitos dos chamados "direitos adquiridos" também não estão a ser cumpridos, nomeadamente com as pessoas que trabalham para o Estado. Entendo que seja socialmente bem mais grave, mas isso desculpa que se possa “roubar” valor aos que investiram cumprindo todas as regras estabelecidas? É que é exactamente isso a consequência da alteração das regras em que os bancos podiam operar. Podemos dizer que era sensato, até preferível para reduzir o tal risco para o sistema financeiro, mas a questão não é essa, a questão é quem tem de assumir esses custos.

No caso particular do Banif ainda não sabemos exactamente qual vai ser o papel do Estado; dependerá dum plano que ainda está a ser definido e que será aprovado, mas já sabemos que se trata de uma nacionalização parcial a prazo, mesmo que baptizada com outro nome. O Estado vai emprestar dinheiro ao Banif a cerca de 10%, mais do dobro do preço a que comprou o dinheiro que lá vai aplicar; fica ainda com regalias especiais na distribuição dos resultados do banco e com uma participação que lhe permitirá condicionar a gestão como entender. Em resumo, aplica 1100 milhões de euros, com um retorno quase garantido, beneficiando de um estado de necessidade do banco que ele próprio induziu, ao mudar as regras em que podia actuar e com prejuízo evidente dos privados envolvidos.

Quanto à comparação que muitos fazem do Banif com o BPN, entendo os políticos que fazem esta analogia; entendo apenas porque já me habituei a ouvi-los falar do que não sabem apenas pelo protagonismo que conseguem. A história do BPN é completamente diferente e os milhões que o Estado já lá enterrou tiveram como objectivo reduzir um risco sistémico que nos poderia trazer bem piores consequências. Acima de tudo não é comparável, de todo.

Em resumo, não defendo o Banif, não gosto particularmente da gestão que foi praticada no banco até hoje e não teria investido comprando as suas acções. Do Estado ainda gosto menos, quando analiso a forma como aplica o dinheiro e o crédito que consegue, mas desta vez, sem qualquer dúvida, fez um excelente negócio.

 
 
 
 
 

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