O caderno de milagres

Há uma coisa extraordinária: um caderno de encargos resolve tudo. Se o estimado leitor não conseguir fazer qualquer coisa — encontrar a alma gémea, emagrecer, terminar um livro, aumentar o seu salário — tem bom remédio. Privatize-se e endosse tudo isso num caderno de encargos ao seu comprador. Ele terá de lhe acrescentar uma assoalhada à casa, aparar a relva, ir buscar os filhos à escola, e pagar por isso.

É isto, não é? O governo acredita que o país não pode fazer nada da TAP. Não aceita que o estado possa recapitalizar a companhia, apesar de ser permitido pelas regras da União Europeia. Não é possível, segundo o governo, impedir despedimentos na TAP. Segundo o governo não será possível, se a TAP for pública, ter uma estratégia de crescimento para a empresa. O governo não nega o enorme interesse público da TAP — pelo contrário, reafirmou-o quando optou por uma requisição civil perante um pré-aviso de greve dos seus trabalhadores — mas acha que não dá para cumprir com o interesse público enquanto a empresa for pública.

Mas com um caderno de encargos, oh!, com um caderno de encargos tudo muda. O comprador da TAP não poderá despedir ninguém, terá de manter o eixo aeroportuário em Lisboa, é obrigado a fazer todas as rotas de que precisamos com ou sem lucro, e até me espanta que não tenha de nos devolver Olivença e reconquistar Ceuta ao fim do primeiro ano de atividade. Fará tudo isso, pagará por tudo isso, e ainda dará lucro.

Ou talvez não. Visto de perto, nada disto se verifica. O comprador não poderá despedir ninguém... enquanto o estado for acionista. O estado será acionista... durante um par de anos. O eixo aeroportuário será em Lisboa... pelo menos durante uma década. As rotas serão todas mantidas... se o quadro legal do “céu único europeu” o vier a permitir. E por aí adiante.

Assim faz sentido o duplo ultraje de António Pires de Lima, afirmando primeiro que apenas estavam a salvo do despedimento os trabalhadores dos sindicatos que assinaram um acordo com o governo para depois ser desautorizado pelo primeiro-ministro. A trapalhada tem uma explicação simples: nada disto é para levar a sério. Se é possível fazer com a TAP tudo aquilo que o governo promete, não é necessária privatização nem caderno de encargos. Se não é possível, não há caderno de encargos que faça um privado operar, não aviões, mas milagres.

Por isso o governo não aceita explorar a possibilidade de capitalização pública da TAP. Em primeiro lugar, porque sabe que a Comissão Europeia aceitaria o pedido. Em segundo lugar, porque sabe que o tempo que essa resposta demoraria a chegar inviabilizaria a privatização ainda durante o mandato. E, como sabemos, não há explicação mais simples do que esta: o governo quer privatizar a TAP, ponto.

Ora, um governo não é dono do país, dos seus recursos, das suas ferramentas. É um cuidador, mandatado politicamente pela comunidade, até chegar o momento de passar o seu mandato a outros. O governo está em fim de mandato e não há, neste momento, um consenso político sobre a privatização da TAP. Esperar e levar o tema a eleições seria o único caderno de encargos possível para um governo minimamente sério.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários