O banqueiro que viveu duas vezes

Atravessou duas ditaduras, resistiu a duas revoluções, alimentou uma rede de amigos e aliados e pôs e dispôs do destino financeiro de milhares de pessoas. Este é o retrato de Carlos Câmara Pestana.

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Depois de Setembro de 1974, já com a temperatura da revolução de Abril a subir, o banqueiro Carlos Câmara Pestana começou a perceber que fazia parte de uma classe de “sabotadores”. Dera conta de que a sua carreira fulgurante em Portugal estava prestes a chegar ao fim. Com as manifestações contra o capital nas ruas e a revolução a bater à porta da banca, viu-se obrigado a abrir uma página em branco na sua vida. “[Decidi] aguardar calmamente na minha casa com uma malinha feita”, por prudência, caso o fossem buscar à noite e o atirassem para a prisão.

O homem que antes da revolução, a meio da vida, se tornara um dos obreiros [há quem afirme que foi o principal] da transformação do Banco Português do Atlântico num império financeiro mais poderoso do que os grupos Mello ou Espírito Santo surgia agora acossado. Sentira-o no ambiente da instituição financeira, percebera-o numa conversa com Álvaro Cunhal, ficara com a certeza de que ser banqueiro, e para mais bem-sucedido, era ser contra o novo regime. Tarde ou cedo, teria de abandonar o país. À sua espera estava o Brasil, onde Câmara Pestana iria repetir a façanha do BPA: começa por baixo e no prazo de 15 anos chega à cúpula do Itaú, que ajudará a transformar no mais importante banco privado da América Latina [com activos de 400 mil milhões, três vezes mais do que o défice público português].

Passados todos estes anos, Carlos Câmara Pestana fala à Revista 2 desse período crucial da sua vida com um misto de amargura e de satisfação. Afinal, teve de viver duas vezes a mesma ambição, o mesmo projecto, como um Sísifo condenado a erguer bancos até ao cume da montanha.

No luminoso apartamento que o Itaú ocupa num décimo primeiro andar das Amoreiras, em Lisboa, move-se como o senador que se dá ao luxo de relativizar as derrotas para melhor sublinhar as suas vitórias. Os seus cabelos brancos, a sua carreira que regista as esperanças e os fracassos das ditaduras e das transições democráticas de Portugal e do Brasil dos anos 70 e 80 dão-lhe uma aura de resistente. O fato preto e a gravata preta que usa desde a morte do pai, em 1953, conferem-lhe uma imagem iconoclasta, seca, longe do brilho que os fatos e os penteados da nova geração de banqueiros costumam projectar. O seu tom de voz sereno, mas firme, e a sua expressão grave, a defesa convicta dos valores conservadores, da Opus Dei, da estabilidade do salazarismo fazem dele e da sua memória prodigiosa o acervo vivo de um mundo em vias de extinção.

Carlos Câmara Pestana, um dos banqueiros mais bem-sucedidos de Portugal e do Brasil do último meio século, é um livro aberto sobre um tempo, sobre uma mentalidade e uma cultura exigente e frugal, sobre dois países que, depois de 1960, oscilaram entre a euforia e a depressão económica, entre as ditaduras e o fervor revolucionário, entre a expectativa da desilusão e, de novo, a esperança de um recomeço.

Encontro com Álvaro Cunhal

Quando um ano depois da revolução, a 14 de Março de 1975, a banca é nacionalizada, Câmara Pestana sentiu que o novo regime o repelia. “Nessa ocasião determinou-se que os administradores dos bancos eram obrigados a ficar três meses no país sem poder sair para que se verificasse se tinham cometido actos de sabotagem à revolução.” Um período que ficou marcado pela partida para o estrangeiro de muitos quadros de topo das grandes empresas. Um administrador do BES foi mesmo apanhado a atravessar o rio Guadiana. Outros gestores e membros das famílias poderosas foram presos. “Eu decidi ficar e aguentar, pois queria sair podendo mostrar que não tinha cometido nenhuma irregularidade e queria continuar a minha carreira”, volta a recordar 40 anos depois.

Ainda assim, sabia que era uma questão de tempo antes de ter de largar o país. Algures em Julho de 1975, quando se dirigia a pé para as instalações do BPA, em Lisboa, encontrou na Rua do Ouro o amigo e colega de faculdade Ivo Madeiro Neto, “um comunista discreto”. A dada altura, o amigo confidenciou-lhe que, “com o ataque aos bancos, o dinheiro acabaria por sair todo do país”. Câmara Pestana ouviu um pedido insólito: “‘Não te importas de falar com o Álvaro Cunhal sobre isso?’” Aceitou, não sem antes lhe dizer que “achava que o encontro não ia resultar em nada”. Passados uns dias, “fui a São Bento falar com o Álvaro Cunhal, que era na altura vice-primeiro-ministro do Governo Palma Carlos”, evoca o banqueiro, que não se impressionou ao ver o líder do PCP. “Era sem dúvida um homem muito educado. Não fiquei convencido de que fosse brilhante.” Conta que a conversa foi mais ou menos assim: “Eu disse-lhe: ‘Os senhores estão muito empenhados no êxito da revolução, mas se o sistema financeiro for destruído a revolução acaba por ir com ele.’ Ele reagiu dizendo que os bancos estavam a sabotar a revolução. Eu disse-lhe que lhe garantia que ninguém estava sabotando a revolução, que estávamos a procurar dar crédito a quem merece e a não dar a quem não tem condições.”

E relatou a Cunhal que os gestores da banca recebiam “cartas absurdas” das autoridades. Exemplificou: “O chefe de gabinete de um ministro enviou uma carta com uma ordem de transferência do dinheiro que estava na conta pessoal de um sócio de uma empresa para que os salários dos trabalhadores fossem pagos.” Pestana alegou que não o podia fazer, “pois não estava autorizado pelo titular da conta”. Mas o líder comunista não se comoveu. E, segundo conta agora Câmara Pestana, Cunhal contra-argumentou, para justificar a sabotagem económica dos bancos, com “um único caso”: “Um funcionário do Pinto e Sotto Mayor (BPSM) da agência de Paris teria aconselhado um cliente, que era militante do PCP, a não transferir o dinheiro para Portugal pois podia perdê-lo.”

Em 1975, dias antes do 11 de Março, há um plenário no BPA, com o conselho de administração presente, em que os trabalhadores apresentam um caderno reivindicativo. “O conselho sai da sala e vai aceitando uma, duas, três propostas e a certa altura não aceita mais nada, porque se aceitasse o banco ia à falência. E se fosse à falência a responsabilidade era nossa”, lembra o banqueiro. De madrugada, o impasse eterniza-se até que chega um carro da Polícia Militar que conduz a administração a uma reunião no Ministério do Trabalho, onde aparece o secretário de Estado, Carlos Carvalhas, “que faz uma pressão enorme para que aceitemos o caderno reivindicativo dos trabalhadores”. A administração recusa, “dizendo que não poria a assinatura num documento que levasse o banco à falência” e a sua decisão prevaleceria. Mas todo o processo provava a Carlos Câmara Pestana que valia a pena fazer uma mala e esperar por uma ordem de prisão, tanto mais que estava em simultâneo à frente do Grémio dos Bancos e das Casas Bancárias (hoje Associação Portuguesa de Bancos).

A sensação de que o rumo que o país seguia não era aquele que desejava acentuou-se quando, nessa época, o chefe da segurança do BPA, um capitão de cavalaria reformado, o convidou a ir uma noite a sua casa, em Miraflores, para conhecer um capitão da aeronáutica, que era membro do Conselho da Revolução [Canto e Castro]. “A surpresa do encontro decorreu do facto de o capitão [Canto e Castro] aparecer com um enorme dossier debaixo do braço, que colocou em cima da mesa dizendo que ele tinha de dar um parecer sobre a viabilidade económica da Siderurgia Nacional.” Câmara Pestana refere que “aí percebi a que ponto se chegara de irresponsabilidade”.

Sanear mas com inteligência

Depois do 11 de Março e da nacionalização dos bancos — “como passava os dias em casa, sem ganhar, assistia à televisão” —, viu uma reportagem em directo numa fábrica de fogões, em Lisboa, onde, no decorrer de um plenário de trabalhadores, um tenente da Marinha tomou a palavra para dissertar sobre o problema dos saneamentos. O banqueiro conta que a certa altura o oficial aconselhou os operários a “sanearem os fascistas”, mas que o deviam fazer com prudência e inteligência. “Ele relatou um caso passado, dias antes, numa fábrica de plástico na qual fora recentemente instalada uma grande máquina cuja tecnologia era dominada pelo engenheiro chefe de produção. Os trabalhadores, por ele [o engenheiro chefe de produção] ser fascista, tinham-no saneado e pouco depois a máquina quebrou e a produção parou.” Uma lição a não esquecer. “O tenente da Marinha aconselhou-os a não repetir o erro: primeiro deviam aprender os segredos do equipamento com o engenheiro e só depois o saneavam.” E “foi a partir deste episódio e da conversa com o membro do Conselho da Revolução que tomei a decisão de emigrar assim que pudesse”.

A 15 de Junho de 1975, cumpridos os três meses de quarentena, período em que os gestores bancários não podiam sair do país, Câmara Pestana foi, finalmente, autorizado a partir. “Enquanto exerci as funções no BPA, não tive um centavo fora de Portugal”, afirma. Uma situação que muda após o 25 de Abril, quando, através de contactos com “pessoas do PSD”, que recebiam apoios financeiros no exterior, que trocavam por escudos, consegue amealhar um fundo de maneio que lhe permitirá emigrar. Em Portugal, “tinha um apartamento no Porto, uma casa em Ofir e o suficiente para aguentar uns seis ou oito meses sem trabalhar”. Câmara Pestana vai, primeiro, para Madrid, onde tinha boas relações com um administrador do Banco Popular Espanhol (BPE), Rafael Ternes, ligado ao Banco da Agricultura. Junta-se no aeroporto de Barajas ao ex-presidente do BCP Jorge Jardim Gonçalves, que até 11 de Março de 1975 tinha sido administrador do Banco da Agricultura. Os dois procuraram Rafael Ternes. “Ele convidou-me a ficar em Madrid, na Suíça ou em França”, afirma Câmara Pestana. Mas se Jardim Gonçalves decide ficar em Espanha, Câmara Pestana “tinha esperança de encontrar uma solução no Brasil e, naquela época, o franquismo ainda estava no poder e eu não sabia o que aconteceria depois da Revolução em Portugal”.

O banqueiro vai optar pelo Brasil, onde, aliás, nunca tinha estado. Chegou ao Rio de Janeiro no auge da ditadura militar [a presidência de Ernesto Geisel] e instala-se na casa do amigo Joaquim Trigo de Negreiros, jurista num grande grupo canadiano, o Sight. As suas memórias à chegada remetem-no para “a rede de solidariedade entre portugueses na sequência do êxodo motivado pelo PREC”, na qual “havia pessoas a dormir em colchões no chão nas casas uns dos outros”. No momento de procurar emprego, dirige-se ao brasileiro Unibanco, no qual, nos anos 70, o BPA chegou a deter 10% do capital. Câmara Pestana esperava que esta ligação e o seu “curriculum e status” lhe abrissem portas. A entrevista com o presidente do Unibanco não correu bem. “Fui recebido muito friamente. Dizem-me que eu tinha um gabarito alto de mais” para as funções. Câmara Pestana procura explicar “que estava ali sem pretensões nenhumas, na intenção de recomeçar a carreira sem pensar no que tinha sido”. Ao deixar o Unibanco, sabe que não tem ali lugar.

Primeira experiência fora de Portugal

Como começo, a experiência no Brasil não podia ter corrido pior. O banqueiro persiste. Escreve a Rafael Ternes, em Espanha, diz-lhe que “as coisas com o Unibanco tinham corrido mal” e pede-lhe que lhe “arranje uma representação num banco estrangeiro”. Não desiste, “para emigrar, temos de ter uma enorme confiança em nós próprios”. E sorte. E fé — Câmara Pestana acredita que “a mão de Deus intervém em muitas coisas”.

Um dia, Joaquim Trigo de Negreiros, em casa de quem Câmara Pestana estava a viver, recebe uma carta de Carlos Ribeiro Ferreira, que tinha sido director do Banco Totta e Açores, e cujo teor o banqueiro recorda ainda hoje com precisão: “Joaquim sei que estás no Rio de Janeiro e escrevo-te porque eu também pensei ir para o Brasil, mas acabei por ficar pois já arranjei um lugar em Espanha. Mas tenho um grande amigo brasileiro, o Roberto Rocha Azevedo, director do Banco Itaú, e tenho a certeza de que, caso estejas atrapalhado, ele te ajudará. Pega nesta carta e vai lá falar com ele.” Como Trigo de Negreiros estava já a trabalhar, deu ao amigo a possibilidade de usar a carta. Estávamos na segunda semana de Junho de 1975. Se uma porta se fechara, outra se abriria. Câmara Pestana acha extraordinário “que haja uma pessoa que sabe que tem um amigo no Rio e que tem a generosidade e a solidariedade de lhe escrever e quem acaba por beneficiar fui eu”. A recordação é feita com um travo de comoção.

Câmara Pestana pega na carta e vai falar com Roberto Rocha Azevedo. “Ele recebeu-me bem e disse-me que tinha gostado do meu curriculum e que havia um administrador que tinha saído da área industrial do grupo Itaú para a área bancária e que provavelmente gostaria de ter alguém para o apoiar. Passados dois dias, ligou-me para eu ir lá, pois já tinha uma passagem para São Paulo para falar com a direcção do Itaú. Lá fui e fui recebido durante 20 minutos. E a certa altura ele pega no telefone e diz a alguém que acha importante que me recebam.”

Na reunião que o aguardava em São Paulo, Olavo Setúbal, o maior accionista e figura referencial do Itaú, estava ausente — na altura era prefeito da cidade. Mas estavam o director-geral do banco e o administrador que era vice-presidente da direcção, que “serão daí em diante grandes amigos meus”. Na entrevista, Morais de Abreu, o director-geral, pergunta-lhe sem rodeios: “Ó dr. Câmara, o que é que vai acontecer se amanhã o seu país estabilizar e se o convidarem a regressar? O senhor volta para Portugal?’” Câmara Pestana diz que respondeu: “Não exercerei nunca mais funções executivas no meu país. Aqui ficarei desde que obtenha condições para viver com a minha família [com quatro filhos, já vinha a caminho o quinto]. Voltarei a Portugal, certamente, mas quando não tiver mais funções executivas.”

Assim seria. Passada a turbulência do “Verão Quente”, o seu amigo Artur Santos Silva convidou-o para regressar à direcção do BPA; dois meses antes de morrer, em Dezembro de 1980, Francisco Sá Carneiro oferece-lhe a presidência da Caixa Geral de Depósitos. Pestana manteria a palavra dada ao director do Itaú. “Sinceramente, não podia aceitar trabalhar num regime estatizado”, justifica.

A influência do pai

Carlos Câmara Pestana nasceu em Paço d’Arcos, Lisboa, em 1931. Foi o sexto filho de um casal de madeirenses que resolveu vir para a capital quando o pai, Carlos Ribeiro Pestana, um capitão do Exército na altura com 32 anos, veio estudar Direito.

Nos anos 30 e 40, Carlos Ribeiro Pestana foi convocado pelo Estado-Maior para criar os serviços de criptografia do Exército, onde se manterá até 1945, quando é promovido a coronel. Morre três anos depois de passar à reserva.
A família Pestana vivia a curta distância do liceu Gil Vicente, que os mais jovens vão frequentar. Carlos será “um aluno razoável”, mas ao chegar ao 5.º ano continuava “sem saber o que fazer”. A estabilidade familiar vai dar-lhe condições para progredir nos estudos sem grandes vicissitudes.

A influência de Carlos Ribeiro Pestana na vida do filho mais novo será mesmo determinante. “O meu pai era um homem alto e forte e a minha relação com ele passou por várias fases. Nunca me bateu, mas olhava para nós e eu tinha vontade de me meter debaixo da mesa. Depois tinha respeito e, no final da sua vida, uma enorme paixão por ele. Desde que morreu que uso gravata preta e de malha, como ele usava. Eu adorava-o”, confessa Carlos Câmara Pestana, aos 82 anos. No segundo ano do liceu, Carlos reprova e o pai, que na época estava colocado em Abrantes, vai de propósito a Lisboa falar com o filho. “Eu temo o que ele vai fazer. Ele manda-me entrar para o quarto e tem uma conversa comigo em que me chama à responsabilidade, o que me marcou. E no sexto e sétimo ano já sou um aluno distinto, com média de 17 valores no 7.º ano. O que me permitiu dispensar o exame de admissão à Faculdade de Direito de Lisboa.”

“O meu curso de 1950 a 1955 foi até hoje um dos mais qualificados da Faculdade, com dois 18, dois 17, dois 16 e vários 15 valores no final”, afirma Câmara Pestana, mencionando Nunes Espinosa Gomes da Silva, Rui Patrício, Vasco Vieira de Almeida, José Ascensão, Jorge Gonçalves Pereira e Francisco Veloso.

O curso de Direito é concluído já depois da morte do pai, e nos dois últimos anos com uma bolsa de estudo. Estava prestes a casar-se com Isabel, a quem chama Nicha, que conhece desde os oito anos. “É uma pessoa extraordinária, toda a vida tive por ela uma paixão e uma admiração”, garante com comoção. Durante o curso de Direito interrogava-a: “Como é que uma mulher tão bonita quer casar comigo, que falo tão pouco?” Evoca o que ela lhe dizia: “Ó Carlos deixa-te disso, o que é importante é estarmos juntos, não é falar.”

A escola do Conselho Ultramarino

No Verão de 1955, Carlos Câmara Pestana tinha concluído a sua licenciatura e preparava a entrada no mundo do trabalho. Um dia, “estava na antiga Feira Popular, com uns amigos, e aparece-me o Zé Maria Caetano, que tinha andado comigo no liceu e que se tinha formado comigo”. Era o filho de Marcelo Caetano, que tinha sido nomeado dias antes ministro da Presidência. “O Zé Maria diz-me que o pai me queria falar. Eu apertei-o para ele me contar o que se passava e ele acabou por explicar que o pai estava a montar um gabinete e me queria convidar para ser seu secretário.” Câmara Pestana diz que Caetano “era uma figura extraordinária”, seu professor no 2.º ano da Faculdade. Mas quando quis ir falar com o ex-primeiro-ministro, “o Zé Maria disse-me que o pai não poderia contar comigo porque eu teria de cumprir o serviço militar. Mas o interesse do dr. Marcelo por mim levou-me a encurtar a minha vida militar e, como era míope, depois de três meses como cadete fui dispensado. Imediatamente fui pedir-lhe uma audiência”. Marcelo Caetano diz-lhe que o lugar já está ocupado, mas que Raul Ventura, que era ministro do Ultramar, andava à procura de colaboradores. Dias depois, o gabinete de Raul Ventura procurou-o: “Ele nomeou-me secretário do Conselho Ultramarino, o que me garantia um ordenado.” Aos 24 anos, Câmara Pestana entrava numa nova etapa da sua vida. Tinha um emprego. Podia pensar em preparar o casamento, que se consumaria em Agosto de 1957. Dois meses antes de iniciar o seu percurso no BPA.

Para Câmara Pestana, o Conselho Ultramarino vai revelar-se “uma experiência extraordinária”. Ventura não só lhe entregara o cargo de secretário do Conselho Ultramarino, como o designou assessor da área do direito económico com responsabilidades na pasta da integração económica, “um processo que afectava naturalmente a economia ultramarina”. Na altura, “estava inscrito no curso complementar de Ciências Públicas e Económicas da Faculdade de Direito e a minha tese versava sobre a criação de uma zona de comércio livre entre a Metrópole e os territórios ultramarinos”.

Entretanto, no âmbito da OCDE, os países europeus estudavam a criação de uma zona de comércio livre o mais ampla possível, o que afastava a iniciativa dos seis países que haviam tornado a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço num Mercado Comum. Um processo de integração europeia sob a forma, não de uma zona de comércio livre, mas de uma união aduaneira. Portugal criara uma comissão interministerial para estudar os reflexos de uma zona de comércio livre europeia na economia nacional. Este será um período muito importante da vida profissional do futuro banqueiro, que será indicado não só para representar os territórios ultramarinos naquela comissão, que era presidida por Correia de Oliveira [secretário de Estado do Orçamento], mas também para ficar responsável por redigir e expor, no final de 1956, o relatório final.

Nesse contexto desloca-se várias vezes a Paris para participar em reuniões da OCDE. Numa delas, que classifica de “trágica”, está acompanhado por Marcelo Caetano. “Íamos convencidos de que estávamos para assinar o preâmbulo do acordo para a criação de uma zona do comércio livre quando, logo no início da reunião, um senhor belga, que era ministro, Paul-Henri Spack [que elaborou o relatório Spack, a base do Tratado de Roma que fundou a Comunidade Económica Europeia], se levanta e diz: ‘Meus senhores, continuem com a reunião, nós ouvimos todos os vossos argumentos mas vamos criar o mercado comum e não queremos ter nada a ver com a zona de comércio livre’.” A tentativa de integrar todas as economias europeias falhara. A CEE e a EFTA seriam pois realidades separadas.

O desafio BPA

Com a tese do curso complementar sucessivamente adiada (“eu tinha uma vida terrível”, justifica), recebe, por esses dias, um convite do seu orientador, Pedro Soares Martinez, para fazer uma palestra no Círculo de Estudos Portugueses que funcionavam na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, sobre os problemas da integração económica. Câmara Pestana aceitou não fazer uma, mas duas conferências. À primeira assistiu Henrique Martins de Carvalho, ex-ministro da Saúde, diplomata e primo direito de José Fernando Rivera Martins de Carvalho, director-geral do BPA. Antes da realização da segunda palestra, já este alto-quadro do banco “tinha ido pedir referências sobre mim a um professor da faculdade”. No final da segunda, José Fernando Rivera Martins de Carvalho “convidou-me para ir tomar um café e de seguida para trabalhar no BPA”. Pestana hesita. “Tinha perfeita consciência de que a minha carreira no Ministério do Ultramar estava ligada ao destino do dr. Ventura, que não era um político de carreira”, recorda. Toma a decisão e comunica-a ao ministro. Este recusa e propõe a sua nomeação como director-geral da Economia. Ora, Câmara Pestana não era economista, tinha 25 anos. Dias depois, Ventura reconhecerá que ele devia aceitar o desafio de Cupertino Miranda.

O BPA fora fundado em 1942 sobre os alicerces da Casa Bancária Cupertino de Miranda & Irmão. O patrono, Arthur Cupertino de Miranda, tinha visão e coragem, o que o tornará um dos grandes protagonistas da finança portuguesa do século XX. “A figura dele impressionou-me. Ele teria perto de 70 anos quando o conheci. Ele disse-me: ‘O Martins de Carvalho falou-me sobre si, sobre a sua carreira e as suas posições. Nós estamos interessados no seu concurso, mas terá de se sujeitar a um estágio e, se ele correr bem, será nomeado director adjunto do banco’.”

Cupertino de Miranda vai lançar a Pestana o isco decisivo. O velho banqueiro interroga-o: “‘Mas sabe porque é que nós estamos interessados em si? Porque eu tenho um grande projecto. Este banco vai ser o maior do país.’ Ouvi-o dizer aquilo, sem que eu fizesse a mais pequena ideia de qual era o ranking do BPA. Mas o facto de ele se dirigir a mim e com aquela ambição influenciou-me.”

Após dois meses a acabar o acordo de comércio livre com as colónias com o qual se tinha comprometido, Câmara Pestana parte para o Porto, em Novembro de 1957, para fazer o estágio na Escola do Atlântico. Instalou-se numa pensão para estudantes para ficar seis meses a aprender. “E realmente aprendi muito”, garante Câmara Pestana, 56 anos depois. Quando termina o estágio, o director-geral do BPA no Porto fez pressão para que ficasse na cidade, onde era a sede do banco. “A minha mulher teve o seu primeiro desgosto, pois já tínhamos encontrado um apartamento em Lisboa”, recorda. Ele fica e vai sendo promovido. E quando Martins de Carvalho morre num desastre com o pequeno avião que pilotava, perto de Braga, em Agosto de 1964, Câmara Pestana chegou a director-geral no Porto.

Nesta vaga de mudanças, o advogado Vasco Vieira de Almeida, o outro rosto do BPA, vai ocupar a direcção-geral em Lisboa, enquanto João Meireles, genro de Cupertino, será indicado como vice-presidente. Com esta equipa, o BPA, que em 1957 seria o quinto do ranking nacional (“ficava muito longe do Espírito Santo ou do BNU”, afirma Pestana), tornar-se-ia uma máquina imparável de crescimento, multiplicando rapidamente o número de balcões.
“O sr. Cupertino era um tocador de obras..., obsessivo quanto à expansão do banco. Havia uma mística dentro do Grupo Atlântico que estava nos directores e passava para os quadros, para os gerentes. Ele tinha tido essa capacidade de escolher bem os colaboradores, entre os quais o José Martins de Carvalho, a grande figura do directório do banco desde o início até à sua morte [1964].”

Cupertino tinha ambição e uma ideia clara sobre a democratização no acesso aos balcões dos bancos. “É preciso ver o que era o sistema bancário nessa época. Se eu quisesse fazer um depósito a prazo na casa [bancária] Fonseca Santos e Viana, não conseguia. Só o fazia se fosse recomendado por outro cliente”, recorda. Banqueiros como os Espírito Santo “eram uns aristocratas”. E Cupertino “foi um rompedor disto tudo”. Depois de iniciado o seu negócio com um empréstimo, Cupertino sobrevivera às ondas de choque do final dos anos 20, início dos anos 30 e ganhara crédito na elite portuense ligada ao comércio internacional. “Ele contava que havia um senhor tão rico, tão rico e tão poderoso no Porto, o senhor Rui Magalhães, que todos os anos vinha de Londres um representante do Banco de Inglaterra para falar com ele para decidirem onde fazer as aplicações do seu dinheiro. Ele estabeleceu uma relação com o sr. Cupertino e quando este via que havia qualquer preocupação dos depositantes mandava chamar o senhor Magalhães. O senhor Magalhães vinha, sentava-se à frente dele, começavam a conversar e imediatamente a fila desaparecia. Se o senhor Rui Magalhães estava ali é porque o banco era sólido.”

O golpe de Champalimaud

Perseguindo o projecto de Cupertino, “o BPA dotou-se da matéria-prima”. No seu auge, reunia a nata emergente do talento financeiro português: Artur Santos Silva, Vasco Vieira de Almeida, Rui Vilar, Carlos Monjardino, Alexandre Magalhães, Seruca Salgado, Francisco Veloso,… “Era a chamada Escola BPA, que ajudou a dinamizar o banco nos anos 60 e 70 e a credibilizá-lo.” Mas também a defendê-lo dos ataques exteriores como o que António Champalimaud desferiria no final dos anos 60.

No Portugal desse tempo era muito provável que um self made man proveniente do Douro e que entretanto estava a construir um império suscitasse a curiosidade das velhas elites da finança nacional. António Champalimaud, dono de um império industrial e do Banco Pinto e Sotto Mayor, foi o principal activista desse interesse. Em 1964, tentara controlar o BPA, mas João Meireles e a sua equipa tinham-no travado. No final de 1960, esteve muito perto de o conseguir, com a anuência de Cupertino de Miranda. O que deu origem ao acordo celebrado entre Cupertino e Champalimaud em Paris (o empresário estava fugido das autoridades portuguesas na sequência do processo judicial da Herança Sommer, que opôs os irmãos Champalimaud), o que ainda hoje “para mim é um mistério”, assegura Câmara Pestana. “Ele [Cupertino] tinha muitas qualidades, mas também alguns pecadilhos. E há um que eu nunca aceitaria que ele cometesse. Que destruísse a sua obra.” Ora a venda de 24% do capital do banco (quase metade da sua participação) a Champalimaud implicava a perda do controlo e a “destruição da sua obra”.

O negócio foi feito em segredo e Cupertino acreditava na bondade de uma aliança com o industrial. Juntos, dizia, os dois capitalistas ficavam imbatíveis. Não lhe passava pela cabeça que Champalimaud estava a manobrar nos bastidores. Só em finais de 1970 é que toda a extensão do plano é desvendada. À comissão de crédito do BPA começaram a chegar pedidos insistentes de crédito por parte de empresas do Grupo Champalimaud. Ora Câmara Pestana presidia à comissão e alega que a exposição ao risco do grupo Champalimaud ultrapassava o razoável. “Então determinei que se avisasse António Champalimaud que o limite de crédito do grupo no Atlântico fora atingido e que não seriam concedidos novos financiamentos”. João Rocha, administrador do BPA, vai surgir no epicentro do diferendo, pedindo que o tema, por ser delicado, fosse debatido em reunião plenária do CA. E na votação final a decisão de Câmara Pestana foi ratificada, apesar do silêncio de Cupertino.

O antigo administrador do Atlântico recorda o que se passou. “Mais tarde, o sr. Cupertino contou que, a seguir à reunião do CA, foi a Paris ao encontro de Champalimaud e este lhe disse estar muito admirado, pois tinham [Cupertino e Champalimaud] feito um acordo e agora o BPA suspendera o crédito ao seu grupo.” Cupertino confirmou-lhe ter estado na reunião do CA, onde a decisão de suspender o financiamento ao Grupo Champalimaud tinha sido tomada. E explicou-lhe que não interviera, “porque tenho escrúpulos em alterar os critérios de concessão de crédito”. O banqueiro recebeu de Champalimaud esta resposta: “O senhor tem escrúpulos, mas não tem escrúpulos em ter-me vendido o controlo do banco.”

Então, segundo o relato de Cupertino de Miranda, Champalimaud terá pegado na lista dos accionistas do BPA e começou a enumerar os que se tinham passado para o seu lado. E mostrou uma opção de compra da posição do João Rocha que assegurava mais de 40% do BPA. E aí “Cupertino sentiu-se enganado”, conta Câmara Pestana. Em desespero, o banqueiro do BPA desatou a comprar acções do banco, mas só a ajuda de Marcelo Caetano, que ilegalizou retroactivamente a operação, veio salvar Cupertino de Miranda. O diferendo deu brado na época.

Depois de ter escalado os cargos de director adjunto, de director, director-geral adjunto, em 1972, já depois de Cupertino ter sido afastado e após a saída de Vasco Vieira de Almeida do BPA, Câmara Pestana tornara-se o homem-forte da instituição, que vai assumir a liderança do sector financeiro.

Nas vésperas da revolução, Câmara Pestana já se transferira para Lisboa, assumindo funções de presidente no Grémio dos Bancos e das Casas Bancárias, o organismo corporativo da área financeira, hoje Associação Portuguesa de Bancos. À frente do Grémio vai procurar erradicar os “sacos azuis” que proliferavam no sector. No sistema bancário português da altura, ainda havia taxas limite para a captação de depósitos e para a emissão de crédito. Para fugir aos apertados controlos do sector, os mais pequenos cobravam taxas de crédito superiores e não registavam nas contas a diferença para as taxas oficiais. Com os “sacos azuis” entretanto criados podiam pagar mais pelas taxas dos depósitos. “Uma enorme ilegalidade, que arrastava todo o sistema financeiro”, observa Pestana.

Com a protecção de Cupertino de Miranda, Câmara Pestana avança com um ultimato: “No Grémio, ameaçámos que ou os bancos cumpriam a lei ou informávamos o Banco de Portugal.” A ameaça produziu resistências. Mas, ao fim de seis meses, os bancos tinham acatado a decisão. “Várias vezes disse que se o 25 de Abril nos tivesse apanhado nessa situação, os banqueiros tinham ido todos para a prisão”, recorda Câmara Pestana.

O 25 de Abril

No início da década de 1970, Portugal vivia o pleno da “Primavera Marcelista”, os sinais de confrontação com o regime tinham-se multiplicado com greves, atentados, protestos nas universidades… Mas Câmara Pestana ainda não se apercebera de que o Estado Novo vivia o seu estertor. Só ficou convencido de “que a situação era complicada e que podíamos enfrentar o rompimento do regime” quando, em 1972 e à frente do Grémio, teve de gerir a renegociação do Contrato Colectivo de Trabalho. Aí, explica, “encontrei os sindicatos todos nas mãos dos comunistas e percebi que ia acontecer alguma coisa”. Chegou a essa percepção “pela linguagem, pela forma, pelas atitudes que se tomavam” nas negociações. O mundo previsível do Portugal que conhecera, razoavelmente pacato à superfície mas sujeito à corrosão de um regime inspirado num tempo e numa Europa que já não existia, começava a ruir.

Na manhã do 25 de Abril, Carlos Câmara Pestana estava em casa quando soube das movimentações militares. Ainda foi ao banco, que acabaria por fechar. No primeiro fim-de-semana após o golpe, recebe um telefonema de Jacinto Nunes, “o homem de confiança do Spínola do BdP”, a convocar os banqueiros para uma reunião com o marechal. Apareceram os presidentes dos bancos: Eduardo Furtado e António Champalimaud pelo BPSM, Simões de Almeida, do Totta, José e Jorge de Mello, entre outros. “Enquanto os Mellos estavam visivelmente preocupados, Champalimaud estava eufórico, pois ele tinha uma relação muito difícil com Marcelo Caetano. Ele também era amigo do Spínola, que tinha estado, nos anos 60, na Siderurgia Nacional [propriedade de Champalimaud], de onde saíra para se oferecer voluntariamente para ir para Angola”, recorda. Câmara Pestana estava receoso. “Estava muito preocupado, pois tinha tido a experiência do debate com os sindicatos e tinha a consciência perfeita de que a única corrente de opinião estruturada era a dos comunistas”, precisa.

Em 1975, sem culpa formada, foram presos vários administradores do BES e do BPSM. Mas os gestores do BPA não foram incomodados, “e até hoje não sei porquê”, diz Câmara Pestana. Mas as expectativas eram reduzidas. Gostava de Adelino Amaro da Costa, de quem era amigo pessoal, ou de Francisco Pinto Balsemão. Por Mário Soares, nunca teve “grande simpatia” e pela esquerda manteve desde essa altura uma aversão radical.

O colapso do seu mundo estendeu-se ainda a pessoas com quem tinha colaborado, como Silva Lopes, ministro das Finanças, quando o Governo decretou o “saneamento dos gestores bancários”. Uma decisão que atinge Câmara Pestana, sem que Silva Lopes lhe tivesse dado uma palavra, não para evitar o que era inevitável à época, mas para a justificar. A ausência do gesto deixa ainda hoje Câmara Pestana “magoado”. Mais tarde Silva Lopes escreveu a Câmara Pestana, a quem confessa ter “pena de não ter tido a atenção que devia ter tido”. Câmara Pestana garante que guarda a carta ainda consigo.

Vida no Brasil

No Verão de 1975, Carlos Câmara Pestana está no Brasil. Longe da família e do seu círculo de influências, que praticamente se desmoronara com o regime. Espera-o uma vida nova. Aos 44 anos, tem de recomeçar, numa espécie de regresso ao tempo em que terminou os estudos superiores. Faz os testes para entrar no Itaú, “que correm muito bem”, e começa a tratar da sua legalização.

“Fui à delegação do Ministério da Justiça do Rio Janeiro, que funcionava num prédio, onde havia filas muito grandes, 90% eram portugueses de Angola e de Moçambique”, recorda. Receia que o facto de ter liderado o Grémio dos Bancos lhe cause problemas. Um receio infundado. A 15 de Agosto recebe a carteira de residência e pode mandar vir a família. Com os papéis na mão, vai agradecer à directora do serviço. A resposta ficou-lhe para sempre na memória. “E ela faz isto, que é extraordinário: levanta-se, vem até à porta, estende-me a mão e diz-me: ‘Não é o senhor que me tem de agradecer. Eu é que, como brasileira, tenho de agradecer que uma pessoa como o senhor escolha o meu país para viver, numa situação tão infeliz do seu país.’ Quando saí dali, já ia levitando”, recorda com emoção.

O ânimo com que saiu desse encontro pode servir como prenúncio do que lhe aconteceria nos 30 anos seguintes. Depois dos testes no Rio, é colocado em São Paulo, o coração da economia brasileira. “Fiquei responsável pela região 23, que pegava com os municípios subúrbios de São Paulo, onde estava concertada a indústria, nomeadamente, a do automóvel”, diz. O seu superior no banco seria Humberto Pinote, oito anos mais novo do que ele, um homem “muito aberto e muito alegre”. O seu saber e a sua experiência no BPA começam a dar frutos. “No dia-a-dia, via o que estava bem e o que estava menos bem, e escrevia-lhe. Ele, como era uma pessoa muito correcta, pegava nos papéis e levava-os ao director-geral.” Em meses, Carlos Câmara Pestana está outra vez no topo. É nomeado director técnico do Itaú apenas um ano e meio depois de ter sido contratado e prestado provas. E quando, em 1979, Olavo Setúbal se retira da vida política (fora prefeito de São Paulo) e cria a direcção executiva do banco com oito pessoas convida Carlos Câmara Pestana para a integrar.

No processo de integração numa nova cultura, Pestana teve de se ajustar. “Quando chegamos ao Brasil, temos de mudar. Não podemos ter cara séria, temos de rir. Temos de contar piadas. Quem não se integra fica de fora. E nesse sentido eu evoluí”, diz. Mas jamais abdicou do seu ar grave, quase sisudo, e ainda menos dos princípios de vida adquiridos nesses tempos de um Portugal austero, formal, hierárquico e conservador. “A virtude da justiça é a virtude da fidelidade aos compromissos. E quando alguém não cumpre os compromissos eu afasto-me”, diz. “Eu tenho um bordão muito grande que é a Opus Dei [à qual aderiu em 1963]. Não vivo indiferente à orientação espiritual da Opus Dei, tive uma boa educação dos meus pais. São bengalas muito fortes”, assinala. “Trato o meu jardineiro ou o meu motorista como trato outra pessoa qualquer. Não há ninguém que trate de forma diferente. E foi assim no BPA, ou no Itaú, onde o meu gabinete estava de porta aberta para receber quem me procurasse. O meu motorista, se vai comigo, almoça comigo. Aqui em Portugal ou no Brasil. É a minha forma de ser. O que é que eu sou? Eu sou o resultado da educação e da cultura que tive”, explica.

Gerir um banco no Brasil da época da hiperinflação não era tarefa fácil, mas Carlos Câmara Pestana consegue sobreviver não apenas à instabilidade financeira do país, como a mais uma transição de regime político. Uma gigantesca campanha de protesto popular entre 1983 e 1984 reclama eleições directas para a Presidência da República e rejeita a ditadura militar, permitindo o regresso, em 1985, do poder civil. Quatro anos depois, em 1989, organizam-se as primeiras eleições livres. Câmara Pestana preparava-se, agora, para voltar a Portugal, quando recebe um convite irrecusável de Olavo Setúbal, o líder e accionista do grupo brasileiro. Os accionistas do Itaú querem-no, apesar de ter apenas 15 anos de vida no Brasil, a ocupar a presidência executiva. Aceitou. Aos 58 anos estava no auge da sua carreira de banqueiro. A sua influência no crescimento do banco era reconhecida pela família Setúbal, a principal accionista do grupo brasileiro, e pelos seus pares. “É a ele que o actual presidente do banco [Ricardo Setúbal] atribui a visão de mundo que faz do Itaú o mais internacional dos bancos brasileiros, com presença forte no varejo da Argentina, em instituições portuguesas e nos mercados de operações internacionais nos Estados Unidos e em Luxemburgo”, escrevia em 2008 o jornalista Marcelo Aguiar, da revista brasileira Época.

No Brasil, vigorava na década de 90 o Plano Collor, que decreta o congelamento das poupanças e afecta a actividade financeira. O tempo é de crise. O banqueiro não hesita e avança com a reestruturação do grupo, que tinha cerca de 90 mil funcionários. O plano é brutal e força a saída de cerca de 30 mil trabalhadores. “Tinha de o fazer. Se não o banco quebrava”, assevera Câmara Pestana, duas décadas mais tarde, com naturalidade.

Quando o seu amigo Olavo Setúbal morre, em Agosto de 2008, Câmara Pestana já não exercia funções executivas. Mas aos 77 anos, num gesto que foi interpretado como um sinal de agradecimento, “o Câmara”, como lhe chamam no Brasil, chega a chairman (presidente não executivo) do banco, um cargo até então ocupado por Olavo Setúbal. Numa entrevista à revista brasileira Exame, Roberto Setúbal confidencia que foi “empurrado para a área comercial” porque Câmara Pestana “insistia muito que eu tinha de ter uma experiência na área comercial. E ele tinha razão”.

No final de 2008, o Itaú fundiu-se com o Unibanco (onde o BPA chegou a ter 10% do capital), tornando-se o maior grupo da América Latina. Câmara Pestana, que se manteve à frente do banco (como não executivo), acaba por ser reconduzido (pelos accionistas dos dois lados) por mais um ano. Em 2011, já tinha sido eleito presidente da Itausa, a holding do grupo Itaú.

Entretanto, a lenta mas gradual saída de funções executivas no Itaú tinha criado as condições para o banqueiro português começar a repartir a sua vida nas duas margens do Atlântico, onde mantém residências e divide o seu tempo. Mas o seu grande envolvimento pessoal com Portugal deu-se em 1988, quando integrou, a convite do Governo, a comissão que editou o Livro Branco para o Sistema Financeiro, que orientou a integração do sector nas regras da então CEE. E em 1991 fez com que o Itaú entrasse no capital do Fonseca & Burnay, a raiz do BPI construído por Artur Santos Silva, uma pessoa pela qual manifesta uma admiração e amizade sem reservas. Tanto que, em 2005, o Itaú esteve completamente ao seu lado na OPA hostil que o BCP lançou ao BPI — o Itaú venderia em 2012 a sua participação de 19,2% aos espanhóis de La Caixa. Em 2005, o Itaú poderia ter vendido cada uma das suas 133 milhões de acções ao BCP por sete euros; o negócio com os espanhóis realizou-se a 50 cêntimos por acção. “As decisões de uma instituição com a reputação do grupo Itaú não são, felizmente, apenas ditadas pela aritmética”, justificou numa entrevista recente ao PÚBLICO.

"O novo Brasil"

Retirado das lides executivas, Carlos Câmara Pestana diz-se um luso-brasileiro por convicção. “Tenho passaporte português e carteira de identidade brasileira. Nunca quis ter igualdade dos direitos políticos e não voto lá, mas tenho igualdade dos direitos civis. Não tenho nacionalidade brasileira, apenas uma filha, a mais nova, tem dupla nacionalidade porque nasceu no Brasil. E outra casou com um brasileiro”, expõe. Por lá aprendeu a rir, mas nunca aceitou a “permissividade” dos brasileiros.

Aos 82 anos, Carlos Câmara Pestana mantém, ainda hoje, nos círculos financeiros de Portugal e do Brasil, o seu prestígio intacto. É um homem profundamente conservador, que preserva princípios do Estado Novo e cujos actos devem ser olhados à luz das suas convicções (Opus Dei). Quem o conhece sabe que, mais do que se manifestar em público, sempre procurou, nos bastidores, influenciar, com os seus critérios, os que têm o poder. Isto apesar de não ter peso político.

Hoje olha para o “novo Brasil” com entusiasmo: “Um enorme mercado interno, com abundantes fontes de energia diversificada, sólidas posições nos mercados de commodities agro-pecuária e industrial, contas públicas e inflação controladas, moeda valorizada e sistema bancário altamente capitalizado.” Mas que considera não estar imune ao contágio das crises internacionais e ao proteccionismo e intervencionismo estatal. Sobre Portugal, só há preocupação: “A receita da troika constitui remédio amargo, e infelizmente necessário, para se mitigarem os sacrifícios que ainda serão exigidos às gerações futuras para corrigir o despesismo eleitoralista dos últimos anos e o resultante endividamento do país.” “Creio não existirem dúvidas sobre a impossibilidade, pela carência de geração de recursos, de se manter, em Portugal, a actual dimensão e o peso do Estado social”, conclui o banqueiro do Itaú, para quem apenas as reformas estruturais podem criar um ambiente económico que favoreça o investimento no aparelho produtivo para promover a reindustrialização. E não hesita quando defende que terão de ser os portugueses a tomar as rédeas do seu destino. Para Câmara Pestana, só assim é que Portugal poderá ser um dia um lugar muito mais ajustado aos seus valores de sempre.

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