O Banco de Portugal teve medo dos tribunais

Somos assim: nem com a casa roubada colocamos a tranca na porta.

Já começaram a estralejar os primeiros foguetes na comissão parlamentar de inquérito sobre o caso BES. Quando, quem soube o quê? E como? E porquê? E o que fez? E o que podia fazer?

Quanto ao Banco de Portugal (BdP) e à sua actuação, ainda a procissão vai no adro. O governador, Carlos Costa, entre muitas outras coisas que disse e não disse no seu depoimento na Assembleia da República, referiu ser necessário que, nesta situações, o BdP, “tenha capacidade para actuar decisivamente e com rapidez”. Algo que ninguém, com um mínimo de sensatez, porá em dúvida.

Mas queixou-se que as leis relativas às instituições financeiras que o BdP supervisiona impõem uma enorme protecção a quem está na gestão dessas mesmas instituições, de tal forma que a possibilidade de o BdP actuar de forma eficaz e, ao mesmo tempo, respeitar a lei é muito limitada. Referiu que “a jurisprudência dos tribunais tem vindo sucessivamente a reforçar as limitações com que o BdP se confronta nesta matéria”, mencionando, tanto quanto me recordo, a existência de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) que veio consagrar o entendimento que o BdP só podia afastar, por “falta de idoneidade”, membros dos órgãos sociais dos bancos, pessoas que tivessem sido condenadas criminalmente. E, por isso mesmo, nada podia ter feito mais cedo – nomeadamente, afastando os responsáveis do BES –, quando já tinha a certeza que “as coisas” estavam a correr mal. E mais disse que, no ano passado, tinha pedido ao Governo para alterar a lei de forma a poder actuar eficazmente.

A legislação mais relevante sobre esta matéria é o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), um decreto-lei de 1992 que já vai na sua 36.ª versão e o acórdão do STA que o governador do BdP referiu é de 3 de Maio de 2005 e, na verdade, é elucidativo.

O BdP tinha afastado um administrador de uma instituição financeira considerando que o mesmo não tinha idoneidade para o exercício do cargo por haver indícios e suspeitas da prática de “utilização de informação privilegiada na aquisição de acções” através de empresas off-shore num caso de uma oferta pública de aquisição (OPA). O administrador em causa recorreu aos tribunais, alegando, entre outras coisas, que “o princípio de prevenção de riscos ou preservação da confiança do mercado não é um princípio fundamental, enquanto o princípio da presunção de inocência constitui uma garantia constitucional do Estado social e democrático de direito, inserindo-se na categoria dos direitos, liberdades e garantias”. E mais defendia que a lei só permitia o afastamento por falta de idoneidade quando se estivesse perante casos de condenações anteriores por crimes graves, o que não era o seu caso.

E, na verdade, o STA veio a anular a decisão do BdP por considerar que, de facto, os indícios e suspeitas que tinham fundamentado o afastamento do administrador em causa respeitavam a uma actuação que não tinha a gravidade dos crimes que vinham previstos, a título de exemplo, na lei para se concluir pela falta de idoneidade de um membro do órgãos sociais das instituições financeiras. Esta decisão deve ter sido um trauma para as bandas do BdP e um regabofe do outro lado.

Entretanto, desde essa decisão do STA e até ao eclodir do caso BES, a legislação foi sendo alterada, sendo reforçada a função preventiva da actuação do BdP, mas, ainda assim, o BdP não se sentiu à vontade para actuar e, já com o escândalo BES no seu seio, como referimos, pediu ao Governo para alterar a legislação.

O Governo foi muito lento ou “moroso” na sua resposta ao pedido do BdP e só em Outubro passado, já com a “casa roubada”, é que foi colocada a “tranca na porta”, com a 35.ª alteração à referida lei. Desta vez, a questão da apreciação da idoneidade é tratada minuciosamente em numerosos artigos e o BdP passou a ter vastos poderes para poder afastar por falta de idoneidade os membros dos órgãos sociais dos bancos, não precisando de ter certezas, nem condenações criminais graves. As circunstâncias a ter em conta são inúmeras e incluem até os meros indícios de que o membro do órgão de administração “não agiu de forma transparente ou cooperante nas suas relações com quaisquer autoridades de supervisão ou regulação nacionais ou estrangeiras”.

Poderíamos pensar que estamos, assim, preparados para fazer frente aos “desafios” do futuro. Mas, nas suas declarações, o governador do BdP já afirmou que estas recentes alterações legais ficaram aquém do que o BdP considera necessário “para obviar alguns constrangimentos que se colocam à sua actuação nesta matéria”. Isto é, estamos avisados que, quando rebentar o próximo escândalo financeiro, o BdP só não actuou preventiva e eficazmente porque a lei não lho permitia. É o que se chama "politicamente deprimente"...

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