“O aumento de exportações portuguesas já está a criar resistências em alguns mercados”

O secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, diz que é preciso garantir que há mecanismos atenuação do choque que irá ser sentido por alguns sectores portugueses quando o acordo comercial com os EUA for assinado.

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José Maria Ferreira

As regras do comércio mundial estão a ser redesenhadas e “desta vez” Portugal tem de garantir que os seus interesses “são acautelados”. O secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, defende que a reforma da política comercial portuguesa é essencial para garantir o futuro económico do país e o aumento sustentado das exportações. Além do acordo comercial com os Estados Unidos (TTIP), Portugal tem de garantir que a Europa também assina acordos com mercados estratégicos em África e na América Latina.

A propósito do acordo comercial que está a ser negociado entre a Europa e os Estados Unidos, o Governo encomendou um estudo internacional para avaliar os impactos positivos e negativos sobre as empresas e a economia. Já há resultados?
Já temos os resultados eles serão anunciados publicamente no próximo mês, são resultados muito interessantes e que julgo que deverão provocar uma discussão intensa e profunda. O estudo é essencialmente uma simulação feita em computador com todas as trocas globais de comércio. Introduzimos as modificações que o acordo vai causar e vemos os resultados.

 E entre perdedores e vencedores já é possível identificar sectores que se destacam? Temos os industriais do tomate a dizer que metade da indústria corre o risco de desaparecer se o acordo for aprovado…
Vou deixar os resultados do estudo para a apresentação pública. Já podemos adiantar alguma informação sobre os sectores mais vulneráveis que não resulta do estudo, mas de conversas que tenho tido com alguns desses sectores. É verdade que há sectores vulneráveis sobretudo no sector agrícola e agro-industrial, produtos transformados, como tomate e laranja, porque a escala nos Estados Unidos é completamente diferente. Cinco fábricas na Califórnia produzem tanto, quanto os cinco países europeus que produzem concentrado de tomate. Temos de garantir que há mecanismos de transição e de atenuação do choque, mas é evidente e não vale a pena esconde-lo, há sectores vulneráveis na economia portuguesa. O estudo revelará, numa perspectiva mais macro, outros sectores que têm muito a ganhar e outras vulnerabilidades também. O objectivo do estudo é dar-nos uma fotografia muito rigorosa de quem tem a ganhar e quem tem a perder. De um ponto de vista macro, o estudo confirma a nossa intuição inicial, de que os ganhos para a economia portuguesa são muito significativos e essa é uma vantagem do estudo, permitir-nos defender a importância do acordo na sociedade portuguesa. Estamos a falar de um impacto no cenário mais ambicioso – em que há mais avanços ao nível regulamentar – semelhante ao volume do próximo quadro comunitário de fundos.

Em que período temporal?
No mesmo período. Se compararmos o impacto dos oito anos do próximo quadro comunitário de fundos com o impacto do TTIP são ordens de magnitude semelhantes. A minha pergunta é, porque é que não estamos a ter uma discussão tão intensa sobre o TTIP e sobre o próximo quadro comunitário de fundos? E porque é que não temos a sociedade portuguesa mobilizada para aproveitar ao máximo o TTIP como está para aproveitar os fundos?

Em que ponto estão as negociações do TTIP? Quais têm sido os principais obstáculos?
Num espectro de zero a dez, eu diria que estamos no ponto cinco. Já existe texto acordado sobre quase todos os sectores de negociação, mas em alguns casos, o texto está ainda muito incompleto. Julgo que no final do ano teremos um acordo global sobre os pontos mais difíceis e que 2015 será ocupado a entrar em detalhes, sector a sector, de um modo sistemático. Por isso, o final de 2015 continua a ser uma data adequada para pensarmos no fim do processo.

Está dentro do calendário?
Está. Talvez demores mais do que algumas sugestões iniciais, sobretudo do lado europeu, mas nada que não estivesse nos planos iniciais, porque o acordo tem uma enorme complexidade técnica. Por enquanto não há dificuldades políticas, embora tenhamos de continuar atentos, mas a complexidade técnica obriga a ser mais lento do que algumas pessoas desejariam.

A questão das indicações geográficas é um desses temas que está mais atrasado?
É um tema difícil porque, como acontece em muitos casos neste acordo, há duas filosofias diferentes dos dois lados do Atlântico. A Europa sempre viveu com indicações geográficas e denominações de origem, mas para os Estados Unidos o conceito é mais o de copyright e de marca, que é um conceito inteiramente diferente, ligado a empresas e não a regiões. Temos de encontrar um ponto intermédio, sobretudo um ponto que defenda os interesses dos produtos portugueses e que impeça que a sua qualidade e que aquilo que os distingue se perca. É preciso, por exemplo, garantir que o consumidor, quer nos Estados Unidos, quer na Europa, saiba, sempre, se se trata de um Porto feito em Portugal, ou se tem outra origem.

Mas há boa vontade dos Estados Unidos? Há forma de ultrapassar este braço de ferro?
No caso do Canadá, em que havia dificuldades semelhantes, conseguiu chegar-se a um acordo muito bom para as duas partes. Tenho a mesma expectativa neste caso.

Considera que há a possibilidade de a Rússia interromper o fornecimento de gás à Europa na sequência da situação na Ucrânia?
Não. O que está em questão é a negociação de um acordo entre a Rússia e a Ucrânia. Julgo que a situação que ocorreu em 2009 não se voltará a repetir. Já temos mecanismos que permitem separar convenientemente o que é o fornecimento à Ucrânia e à Europa. Isso não torna a situação menos crítica e a União Europeia está muito envolvida na negociação para garantir que os interesses da Ucrânia são defendidos e que o gás não é usado como arma política.

Mas vai haver dinheiro para pagar?
A questão é também tentar negociar os montantes que estão em causa. Há muitas variáveis envolvidas. Há por exemplo a anexação da Crimeia, que tem um impacto nas reservas de gás, que eram reservas de gás ucranianas. Cláusulas do acordo que nunca foram esclarecidas, continuavam muito ambíguas. A negociação é muito difícil, está a decorrer ainda e penso que continuará a decorrer durante algum tempo.

Acha que haverá resultados antes do Inverno?
Há, quer do lado ucraniano, quer europeu, a intenção de prosseguir estas negociações e preparar a segurança energética da Europa e da Ucrânia até ao Inverno.

O gás de xisto dos Estados Unidos é apresentado como uma alternativa económica e politicamente mais saudável, mas o eventual começo das exportações parece ser um processo moroso. O que podemos esperar daqui?
Tem havido muitos desenvolvimentos nos últimos tempos. A discussão nos Estados Unidos mudou, há um interesse grande em exportar gás de xisto. Os Estados Unidos percebem agora melhor que também não é necessariamente bom para a economia limitar as suas exportações, porque isso pode ter efeitos ao nível da redução da exploração de gás se os preços forem demasiado baixos. E para Portugal é uma questão estratégica reorientar as ligações energéticas do leste para o Atlântico. Criar uma situação mais equilibrada em que as ligações energéticas da Europa estão tão desenvolvidas no leste quanto no Atlântico. Assim, Portugal deixará de ter uma posição periférica na rede energética europeia. Uma posição periférica paga-se sempre em menos acesso e em preços mais altos. Por isso é um objectivo estratégico para o Estado português abrir o atlântico à rede energética europeia.

Se e quando isso acontecer poderemos também ter uma menor dependência face à Argélia?
Julgo que a Argélia é uma fonte de abastecimento de gás muito interessante, que pode ajudar a desenvolver a nossa vizinhança a sul, que não está ainda devidamente explorada, as reservas de gás na Argélia são, segundo algumas estimativas, superiores às reservas no continente europeu e como tal, a minha opinião é que temos de apostar no desenvolvimento destas relações. Isso combinado com as relações com os Estados Unidos, com o Canadá, com o Brasil e com a Nigéria.

Portanto não vamos reduzir a dependência, mas aumentar?
Vamos reduzir no sentido de que outras fontes serão combinadas com o mercado argelino, mas este é um mercado com muito futuro para a Europa.

E Angola também pode ser uma alternativa?
Angola é claramente parte deste plano de tornar o Atlântico uma fonte tão importante de energia para a Europa quanto a Rússia.

Vai demorar até que isso se concretize, porque estamos a falar de desenvolvimento de infra-estruturas na Europa e também do lado dos Estados Unidos. Quando é que podemos esperar benefícios económicos para Portugal?
Há dois horizontes temporais. Por um lado, saber quando teremos gás norte-americano na Europa. Aí diria que estamos a falar em cinco a dez anos. Mas há um horizonte temporal completamente diferente, que é o do investimento. Se tivermos gás americano na Europa daqui a cinco anos, os investimentos para garantir que isso aconteça começarão mais rapidamente, concebivelmente nos próximos dois anos. E esse é o horizonte temporal que mais nos interessa, não a plena implementação, mas o início do processo.

E de que tipo de investimento é que estamos a falar?
Desenvolvimento de interligações na Europa, desenvolvimento de terminais na Península Ibérica, possivelmente um papel para os Açores neste processo, um aumento do volume nos nossos portos, desenvolvimento do porto de Sines. Uma série longa de consequências práticas importantes para nós.

Qual o papel do Açores?
Tanto na questão da energia, como na questão do comércio, temos de pensar nestes termos: o volume de trocas comerciais entre os Estados Unidos e a Europa será, depois do TTIP, qualquer coisa como 30% superior. Como é que esse aumento extraordinário de volume será acomodado? Com desenvolvimento da logística, quer em Portugal continental, quer, se houver interesse político nisso, nos Açores, que têm uma localização geográfica privilegiada.

Mas é uma decisão política, não uma decisão logística, porque hoje em dia nenhum navio ou avião precisa de parar no Atlântico. Se parar é porque quer…
Temos de ter uma discussão, e julgo que o TTIP é uma boa oportunidade para isso, sobre o futuro económico dos Açores. Os Açores têm desafios importantes, têm grandes oportunidades e a logística é uma, claramente. Mas terá de ser uma decisão política. Repare que o aumento do volume comercial pode ser aproveitado para fazer transbordo de mercadorias para navios mais pequenos, que terão destinos diferentes dentro do continente europeu. Há várias soluções logísticas onde os Açores podem ter um papel. Eu não quero antecipar nada de concreto porque isso é uma decisão política que envolve sobretudo pensar o que é que os Açores querem ser amanhã do ponto de vista económico.

Tem a ver com a reconversão da base?
Não, é um processo inteiramente independente, embora por todas as razões, porque há reforma da PAC, que começa a ter os seus efeitos nesta altura, porque há a questão das Lajes, porque há o acordo comercial com os Estados Unidos, é uma boa altura para os Açores repensarem a sua estratégia económica. Acho que é a altura perfeita para o fazer. Tive recentemente uma conversa com deputados da assembleia legislativa dos Açores e foi isso que tentei transmitir.

Relativamente ao tema energético, acha que mereceria uma discussão autónoma entre a Europa e os EUA?
A posição da UE é que deveria ser uma discussão autónoma. Eu defendi publicamente num editorial no Wall Street Journal que até mais do que autónoma devia ter um calendário diferente. Em vez de pensarmos em 2015, deveríamos pensar em 2014. Estamos completamente alinhados com a ideia da UE de haver um capítulo autónomo sobre energia, que possa ser mais ambicioso, em vez da matéria da energia estarem dispersos por vários capítulos.

Sobre o gás de xisto, que é actualmente mais barato, há quem refira que os investimentos necessários do lado norte-americano, ao nível da logística e do transporte vão fazer com que deixe de ser tão competitivo. Concorda?
Não levo esse argumento muito a sério porque antecipando o que será o mercado da energia mundial daqui a 20 anos, o mercado de gás será muito semelhante ao do mercado do petróleo. Isso significa que será um mercado regional e não global, mais assente nos transporte marítimo do que no transporte por gasoduto com preços igualizados em todo o globo e com investimentos que vão tornar o transporte muito mais fácil, que vão tornar os terminais muito mais baratos – os terminais são nesta altura um investimento quase proibitivo – mas há medida que esta transformação acontece, o nível de investimento vai cair.

Se neste momento existe uma urgência em começar com esses investimentos, significa que estamos a partir de patamares elevados. Isso não afecta a competitividade do gás de xisto no curto prazo?
Nas minhas estimativas, o preço do gás de xisto na Europa será sempre inferior ao preço actual do gás russo. Talvez não por muito, mas será inferior. E no futuro, a dez ou 20 anos, será ainda mais baixo, à medida que os investimentos forem sendo desenvolvidos.

Um dos objectivos do governo é desenvolver uma reforma da política comercial. Quais são os principais pontos dessa reforma?
A política comercial é verdadeiramente onde o destino económico dos países se decide. A política comercial define as regras do jogo. Depois podemos fazer promoção de empresas e de investimento, isso é o jogo propriamente dito, e podemos jogar muito bem, mas se as regras nos forem desfavoráveis, perdemos na mesma o jogo. Não há consciência em Portugal de que definir as regras e o enquadramento geral é onde tudo se decide. Vemos no caso da Rússia e da tensão com a UE como a política comercial e as regras do comércio são verdadeiramente cruciais para os interesses dos países. Em Portugal temos recursos verdadeiramente escassos. Temos pouco mais de dez pessoas na nossa administração a trabalhar em política comercial. Qual é o número nos outros países? Na ordem das centenas.

As dez onde é que estão? Divididas entre a Economia e o MNE?
Divididas entre as direcções-gerais da Economia e do MNE e mais três ou quatro fora do país.

Além de serem poucas estão dispersas?
É preciso fazer um esforço de aumentar as capacidades e organizar melhor. Essa é a minha ideia para o próximo ano, temos de criar uma equipa muito bem organizada, muito motivada, com mais capacidades, que garanta que os nossos interesses em política comercial são claramente defendidas.

Estamos a falar da criação de uma entidade nova?
Discutiremos este tema ao longo do próximo ano. Mais importante que a organização administrativa é garantir que tem pessoas de elevada qualidade, que tem recursos suficientes e consciência que o futuro da economia portuguesa se vai decidir aqui. A arquitectura da economia global está a ser redesenhada, isto acontece de 50 em 50 anos, desta vez temos de garantir que os nossos interesses são acautelados. Nós não podemos achar que as nossas exportações vão continuar a crescer nos próximos anos se não garantirmos que o enquadramento de política comercial nos é favorável. Não esqueçamos que este aumento de exportações já está a criar resistências em alguns mercados. Temos de garantir que as regras permitem que as exportações continuam a crescer de modo sustentado.

Quais são os sectores prioritários nesta abordagem?
Estudos como aquele de que falámos são muito importantes porque nos permitem perceber todas as ramificações e efeitos directos e indirectos. Será uma discussão que teremos melhor no próximo mês. Haverá, à medida que a economia global se recompõe, um grau de especialização da economia portuguesa, provavelmente teremos uma economia mais especializada, mais concentrada em alguns sectores, mas também é importante garantir que estes são sectores com capacidade de crescimento no futuro.

Falou em resistências às exportações portuguesas. Que resistências são essas?
Tivemos recentemente uma discussão com Marrocos que foi concluída com sucesso e que dizia respeito às exportações de produtos de aço portugueses. Foi um sinal porque Marrocos é um mercado muito importante para nós, onde o crescimento das exportações nos últimos cinco anos foi fenomenal. Há outros casos que estão a decorrer e sobre os quais eu não posso falar porque são confidenciais. Mas são preocupantes porque mostram que só podemos garantir o aumento continuado das exportações se soubermos falar com estes países de modo preventivo e se soubermos usar a política comercial da UE para garantir que nos mercados que mais nos interessam existem acordos comerciais.

As resistências que mencionou são ao aumento das exportações portuguesas ou são resistências que advêm do contexto em geral, com os países a tentarem equilibrar as suas balanças comerciais?
Os países ficam preocupados se vêem os seus mercados predominantemente controlados por empresas estrangeiras. Não têm razão para o fazer e é isso que explicamos sempre que estes casos acontecem. E depois há outro problema, as empresas locais evidentemente fazem pressão política, tal como as europeias. É assim em todo o lado, e umas vezes são bem-sucedidas. Os mercados que nos interessam têm de ser uma prioridade da nossa política comercial, para garantir que a UE tem acordos com eles. O mercado americano é um deles, mas há mercados em África e na América Latina, onde a UE está a negociar acordos comerciais e deve ser a nossa prioridade garantir que são concluídos.

Quando diz que não há problema, na realidade há, porque se um país é predominantemente importador, tem impactos em termos de défice, como aliás se verificou em Portugal. A questão é que é impossível a nível europeu ou mundial ter uma situação em que todos ganham. Angola levantou as taxas aduaneiras porque quer dinamizar a sua indústria, para equilibrar a balança. Vê Angola como uma dessas resistências que referiu?
É outro exemplo. Não vou discutir os detalhes da situação comercial em Angola, mas é um exemplo nos termos em que referiu.

Mas não vai discutir por alguma razão em particular? É um dos casos confidenciais que mencionou?
Eu gostava de alertar para o tema, mas não discutir casos individuais. Sobretudo, ao contrário do que acontece em Marrocos, quando o processo de discussão ainda prossegue. Acho que isso é compreensível, na diplomacia temos de ser discretos. Mas refere muito bem que para muitos países a saída da crise financeira global passa pelo aumento das exportações. E nem todos o vão conseguir. Também não quer transmitir a ideia de que no comércio global todos podem ganhar sempre. Se a saída da crise passa pelo aumento das exportações, só alguns vão conseguir passar por essa porta. Também por isso temos de ter os recursos na nossa administração para garantir que isso acontece.

Os países desenvolvidos também não estão a dar o melhor exemplo. Saiu agora um relatório da OMC, da OCDE e da ONU onde se diz que os países do G20 aplicaram nos últimos seis meses 112 novas restrições ao comércio e que estão a fazer mais pela restrição ao comércio do que pela liberalização. Assim sendo, é normal que os outros países reajam.
É. E isto, para mim, é a grande ameaça à transformação da economia portuguesa que todos desejamos. A economia portuguesa tem de assentar, não num período de dois, três, cinco anos no aumento das exportações, mas de um modo absolutamente estrutural e sustentado no futuro. Com o aumento do proteccionismo global e com mercados limitados, ou transformamos a política comercial numa prioridade estratégica do país ou a nossa transformação económica não será sustentável. Também por isso, o estudo, o TTIP, a reforma do Estado na área da política comercial, são modos de tentar transmitir esta mensagem de um modo alargado na sociedade portuguesa. Se os mercados não estão abertos, as empresas não podem entrar. E eles têm de ser abertos pela política comercial.
 

   

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