Natalidade: o compromisso empresarial e o papel das escolas de gestão

Ao favorecer a igualdade de género, a conciliação com a vida familiar/pessoal e a qualidade de vida no trabalho, as empresas e as organizações em geral contarão com retornos positivos.

Acabo de ler o relatório divulgado pela Comissão para a Política de Natalidade. Dada a complexidade do tema, muito fica por debater em torno da natalidade e do documento apresentado, designadamente sobre os efeitos negativos que algumas medidas teriam nos percursos laborais e de vida das mulheres e na desejada modernização das relações de género (temática a que retornarei posteriormente).

Considerando as recomendações reunidas em torno de vários eixos, o compromisso do mundo empresarial aparece claramente diluído. Este artigo procura, precisamente, sublinhar o papel dos agentes económicos e a urgência de novas práticas de gestão e de organização do trabalho, argumentando que as empresas e as escolas de gestão não podem ficar à margem de um compromisso com a sustentabilidade da sociedade portuguesa. A este respeito, tenho sugerido a integração da perspetiva de género no debate em torno dos novos modelos de organização. Trata-se, pois, de procurar apoiar as alunas e os alunos (futuras gestoras e gestores) no desenho de modelos de organização do trabalho inclusivos, centrados na promoção da igualdade de género e da qualidade de vida (dimensão indissociável da conciliação trabalho-família). Um modelo alternativo (humanista, qualificante e inclusivo) pressupõe uma organização do trabalho favorável à integração e ao desenvolvimento profissional de mulheres e homens, potenciando a sua plena realização profissional, familiar e pessoal. Neste âmbito, tem vindo a ser debatida a importância de uma agenda dual, comprometida tanto com os valores humanistas como com os propósitos associados à competitividade. Ao favorecer a igualdade de género, a conciliação com a vida familiar/pessoal e a qualidade de vida no trabalho, as empresas e as organizações em geral contarão com retornos positivos. A tónica numa agenda dual é sustentada pelos estudos que demonstram o quanto as dificuldades na articulação trabalho-família são geradoras de baixos níveis de satisfação, absentismo, intenção de mudança de emprego (turnover), elevados níveis de stresse e atrofiamento da produtividade e do desempenho.

A propósito do desenho de boas práticas de gestão e de organização do trabalho, importa refletir sobre os principais constrangimentos atuais. A lógica dominante de reorganização empresarial, centrada no emagrecimento das estruturas e dos custos laborais, tem implicado uma forte pressão sobre o cumprimento de objetivos em prazos reduzidos, a intensificação do tempo de trabalho, o alargamento de responsabilidades (sem descentralização da autonomia) e uma sobrecarga de tarefas para quem permanece nas empresas. Assim, frequentemente, as novas formas de organização do trabalho, longe de um quadro referencial humanista e centrado na qualidade de vida, são muitas vezes parceiras de políticas e práticas de gestão de recursos humanos próximas de uma “versão hard”. As pessoas trabalhadoras são então consideradas como um custo, equiparadas a qualquer outro recurso organizacional (não obstante a retórica em torno do potencial humano, da importância do “vínculo psicológico” e do compromisso organizacional). Aposta-se na racionalização flexível, na precarização dos vínculos laborais, na sobrecarga de tarefas/responsabilidades, na intensificação do tempo de trabalho e na sua irregularidade (ainda que sob o manto do conceito de flexibilidade). Entre os principais constrangimentos organizacionais à conciliação trabalho-família, podemos ainda destacar: a falta de qualificação e de formação alinhada com os princípios humanistas de gestão e organização do trabalho (e de qualificação em geral); a ausência de uma gestão estratégica alicerçada numa visão de longo prazo (desenvolvimento e retenção das trabalhadoras e dos trabalhadores, num quadro de realização profissional, motivação e bem-estar); a prevalência de métodos tradicionais de gestão, mais assentes no controlo externo do que numa organização do trabalho centrada na autonomia-responsabilidade; a associação entre compromisso individual e disponibilidade total, à luz da representação de trabalhador/a “ideal” como alguém isento/a de responsabilidades familiares; as rotinas de trabalho encorajadoras da visibilidade, do presentismo, da permanência e das longas jornadas (independentemente da qualidade final do trabalho realizado); o desconhecimento ou a desvalorização das políticas públicas no domínio da proteção da maternidade e da paternidade, da parentalidade e da conciliação trabalho-família; o predomínio de estereótipos que (re)produzem práticas de segregação e discriminação laboral no acesso ao emprego, na avaliação de desempenho e na progressão profissional (conceções estereotipadas que associam as pessoas com responsabilidades familiares a trabalhadores/as menos envolvidos/as e comprometidos/as); e a marginalização do diálogo social e dos mecanismos de participação em torno da inovação socio-organizacional.

Independentemente das pressões no plano do desempenho e da competitividade, afigura-se fundamental que as políticas e práticas empresariais assentem no respeito pela dignidade das trabalhadoras e dos trabalhadores, no reconhecimento do direito à realização na esfera profissional e na vida familiar e à qualidade de vida. O conflito entre os dois domínios não é alheio às novas opções reprodutivas e à queda dos índices sintéticos de fecundidade, com custos demográficos e sociais muito preocupantes. A centralidade crescentemente conferida à responsabilidade social das empresas não pode deixar à margem o reconhecimento da urgência do compromisso com a sustentabilidade das sociedades contemporâneas. As escolas de gestão têm também um papel fundamental. Saibamos estar à altura dessa responsabilidade.

Professora e investigadora do ISEG, Universidade de Lisboa, ex-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

 

Sugerir correcção
Comentar