“Não sendo capitalista, era lacaio do capitalismo”

Jardim Gonçalves, o fundador e ex-presidente do BCP, agora a braços com um processo judicial, é o protagonista do livro Jorge Jardim Gonçalves – O Poder do Silêncio.

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Jorge Jardim Gonçalves diz que “o Estado Novo devolveu uma certa dignidade à Igreja” Miguel Manso

Em entrevista ao PÚBLICO, além de “o nasceu, o cresceu, o casou-se e teve muitos meninos”, fala de tudo: da Opus Dei, passando por José Eduardo dos Santos e terminando no BCP.

O que é que o levou a editar, nesta altura, este livro [Jorge Jardim Gonçalves – O Poder do Silêncio] com mais de 600 páginas?
Não fui eu que o fiz. Mas o Luís Osório. Há muitos anos, em trabalho efectivo, fui abordado por editoras para fazer uma autobiografia e eu sugeri que fizessem a da minha mãe, como aconteceu, com apontamentos muito interessantes de antigos alunos. Mas essa editora não voltou a falar comigo. Em 2006, conheci o Luís Osório num painel dentro de um congresso para psiquiatria na Madeira. Eu tenho muito apreço por ele e gosto do que escreve e, partindo de uma sugestão dele para escrever, combinámos que falávamos de tudo.

E porquê esta altura?
Não foi esta altura. Tal como ele refere, foram cinco anos de conversas. Conhecemo-nos em 2006 e em 2008 começámos a falar e foram muitas horas de conversas. E são memórias que ele interpretou. Não é uma biografia. Não é o nasceu, o cresceu, o casou-se e teve muitos meninos. São as minhas memórias e o fio condutor da minha vida... com a vida de estudante, militar, com os encontros com o dr. Salazar, o presidente Eduardo dos Santos, empresários, Emilio Botin, António Champalimaud... O Luís Osório é uma pessoa de afectos e prudentemente intimista e eu, por mim, teria continuado a conversar.

Este livro não é um fechar de página?
De maneira alguma. 

Porque escolheu o general Eanes para prefaciar o livro?
Conheci-o na sua primeira visita de Estado como Presidente da República, que foi a Espanha, mas que podia ter sido às ex-colónias independentes, mas não foi. O chefe de gabinete, o Granadeiro [Henrique], preparou-lhe uma lista com nomes de bons profissionais que tinham saído do país. Eu estava, então, em Espanha, para onde fui a seguir ao 25 de Abril.

Não ficou em Portugal porquê?
Tive vários convites de empresas para trabalhar, mas não havia liberdade de admitir quadros pois todas as comissões de trabalhadores vetavam o meu nome por, embora não sendo capitalista, ser “o lacaio do capitalismo”. Eu tinha então cinco filhos e não tinha emprego e fui pedir ao tenente Rosário Dias, que era comunista e assessor do general Vasco Gonçalves, e que trabalhava à frente da minha casa, na Rua da Imprensa, para sair do país.

Pode comentar uma frase do Luís Osório que o classifica a si como “um homem contraditório e paradoxal”.
Aí não sei. Ele diz que sou conservador de costumes, mas que toda a vida tive gente muito diferente a trabalhar comigo. Tive muitos colegas do Partido Comunista de quem era amigo e confidente, no bom sentido da palavra, na acção católica, na JUC.

Quem ler o livro [que vai para as bancas esta segunda-feira] o que vai saber de si que já não saiba?
Penso que não sabem nada de mim.

Mas já foi escrito muito...
Sobre a vida profissional. O livro entra na intimidade da pessoa, na maneira de ser, como cresceu, como era a mãe, como era o pai, como era a avó, qual era a tia de quem gostava, qual era o doce...

E qual era o doce?
A minha avó fazia os sonhos, o bolo de mel, o licor... E havia outra avó, que foi directora do primeiro colégio privado e teve dez filhos. O Osório trabalhou à moda do Gabriel Gárcia Márquez, nos Cem Anos de Solidão, e meteu no livro a árvore genealógica sobre quem se fala.

Sente-se um personagem de um livro do Gárcia Márquez?
Não faço ideia.

A sua vida dava um filme?
Todas as vidas davam um filme. Mas sim... eu vivi um século inteiro e o início de outro. Pouco depois de ter nascido, em 1935, aos 7 e aos 8 anos, tomei consciência do que foi a crise dos anos 30. O meu pai teve dificuldades económicas, pois era um grande empresário e um grande comerciante e deixou de o ser. A minha mãe, que tinha fechado o colégio por o meu pai ter uma boa situação económica, reabre-o para viver. E lembro-me de conversas sobre a I Grande Guerra e vivo em pleno a II Grande Guerra e depois há a guerra colonial. Tive uma vida académica muito agradável. Li muito.

O que lia?
Li de tudo. Aos 17 anos adoeci e fui para o Norte da Madeira, onde vivia o senhor Carlos Santos, casado com uma senhora muito rica, para a escala da Madeira, e que tinha uma excelente biblioteca. Li muito o Camus [Albert]. E tenho voltado sempre a Camus.

Porquê o Camus?
Camus viveu na Argélia, na altura uma colónia francesa, e viveu os problemas da autodeterminação que eu também vivi. E, mais recentemente, todo o clima de tribunal, por que tenho passado nos últimos anos. E no livro O Estrangeiro [passado na Argélia] ele [o narrador Meursault comete um assassinato e é julgado] dá o tiro e vê a faca a brilhar com o sol, mas está cansado, pois foi ao enterro da mãe e encontra justificação para o que fez. Por isso, retratou bem a dificuldade de transferir para um quadro de tribunal o ambiente que se vive quando se efectivam as acções e que o tribunal lê com um espírito diferente daquele que presidiu aos acontecimentos.

A vida na Madeira, ainda jovem, marcou-o muito?
Sim, sim. Meu pai era uma pessoa bem viajada, tinha ido a Paris, a Londres visitar o D. Manuel II. Mas o senhor Carlos Santos era diferente, pois era muito vivido. Foi uma época importante, sim. Depois das leituras trocávamos impressões, pois ele conhecia a sua própria biblioteca, que não era para enfeitar...Tinha também uma boa aguardente.

Que partilhava consigo?
Sim. Na altura eu já tinha 17 anos. Depois fui trabalhar para revisor do Diário de Notícias  e o meu primeiro chefe foi o avô dos Camachos [os jornalistas Pedro e Paulo], o sogro da Helena Matos. E tive ainda umas responsabilidades numa página de estudantes e num programa de rádio em que tive uns conflitos com as forças políticas por causa de um padre que detectou para lá umas histórias.

Que outras memórias guarda da Madeira?
Eu vivia numa casa em que não se fechava a porta. Era um colégio e, de vez em quando, mudávamos de quartos, pois a minha mãe precisava de mais salas de aulas. A minha vida foi, portanto, extremamente aberta. Ela misturava uma vida de família bem estruturada com uma vida profissional muito intensa.

O sentimento de insularidade marcou-o?
Naquela altura a Madeira era muito “maior”. Demorava-se um dia para ir do Funchal ao norte da ilha, seis horas de autocarro. Havia na Madeira quem nascesse e morresse sem nunca ver o mar.

Ficou surpreendido quando veio a Lisboa?
Fui recebido por uma tia, a minha madrinha de baptismo, e logo no dia em que cheguei fui a uma matinée no cinema Tivoli, que tinha grande requinte e a Avenida da Liberdade era a alma de Lisboa. E para um menino nascido na Madeira foi um deslumbramento. O marido dessa tia, formado em História e Filosofia, levou-me ao vale de Alcântara para ver o viaduto Duarte Pacheco, recém-inaugurado. A beleza não era passar por cima, mas, naquele momento, era passar por baixo para ver o arco, que era uma maravilha. E depois levou-me à Fonte Luminosa de onde, em certos dias, saíam jactos de cores diferentes e música. E um dia meteu-me no comboio, na estação do Cais do Sodré, e disse-me: "Agora só sais quando o comboio não andar mais e então vais ver um rapaz vestido de oficial que é o teu primo que te mostrará Cascais." Era assim naquele tempo.

Que idade tinha?
14 anos. Tudo isso me deu um amadurecimento tal que, quando adoeço, três anos depois, com 17 anos, já tinha sido dispensado do exame de aptidão ao Técnico. Isto, por que a tia Mouras, licenciada em Matemáticas, me escreveu a aconselhar a não ir a Lisboa fazer o exame de aptidão, mas a tirar média de 14 às disciplinas nucleares e a dispensar de exame. Disse-me: “Podes passar pela humilhação de vires fazer o exame e teres de voltar para a Madeira.” Tirei 15 a Química e 19 valores a Matemática. Mas no final da doença eu já decidira não vir para o Técnico, um local áspero, com edifícios cúbicos. Apetecia-me estar num campus, e só havia Coimbra, onde não havia Engenharia. Fiz três anos de Ciências e só depois fui fazer mais três anos de Engenharia Civil no Porto, onde estava a escola mais prestigiada.

E teve uma conversa com o Presidente Craveiro Lopes...
 ... que me disse: "Não vá para civil, que há muitos, mas para minas, pois temos de gerir bem o ultramar onde estão os recursos.”

Falaram em que contexto?
Eu era o tesoureiro da comissão central da Queima das Fitas de Coimbra, onde estavam os melhores alunos, e viemos convidar o Presidente... A praxe em Coimbra era uma coisa muito bonita, vinha dos calouros até à Sala dos  Chapéus, dos doutoramentos. E quando foi do doutoramento honoris causa do Presidente brasileiro Juscelino Kubitschek (08-08-1960) pela Universidade de Coimbra, o Presidente da República ficou em cima do varandim, e no outro varandim estava o bispo de Coimbra. Era a força da academia. E era tão praxe quanto o calouro entrar de gatas no quarto do doutor…

Hoje não o chocam as praxes?
Não sei muito bem se é aquilo que se escreve. Mas isso não tem nada a ver com a praxe académica. A comissão central da Queima, antes da Queima, vinha a Lisboa convidar pelo menos quatro pessoas: o Presidente, onde íamos de capa e batina e colarinhos engomados e dobrados, o d.r Salazar, onde íamos de camisa branca, gravata e capa e batina, e depois o ministro da Educação, Francisco de Paula Leite Pinto, muito contestado, e também íamos cumprimentar sempre o senhor director do Diário de Notícias, que se chamava Augusto de Castro.

E porquê?
Por que era uma pessoa muito importante no país. Que jornais havia: O Século, que tinha uma folha internacional muito boa, O Primeiro de Janeiro, que era mais aberto, O Comércio do Porto, do grupo Borges, o jornal da Igreja, o Novidades, o Diário da Manhã, o do regime, e havia os vespertinos, o [Diário de] Lisboa e o [Diário] Popular. E o DN, que era muito importante por não dar notícias, mas o que lá vinha escrito estava consagrado.

Mas se não dava notícias...
 ... as pessoas sabiam que aquilo que lá vinha estava certo, normalmente era com uma diferença de 24 horas.

Era um jornal oficial?
Não, não. Era da confiança do regime. Mas todos estavam submetidos à censura.

O encontro com o Salazar marcou-o?
Ele cumprimentou-nos um a um e quando chegou a mim disse: “Então os senhores vão contratar uma orquestra do estrangeiro? No meu tempo a Queima das Fitas era uns tambores, umas gaitas-de-foles… Os senhores não deixem a Academia de Coimbra ficar mal. As contas têm de ficar certas." A conversa foi praticamente comigo, que era o tesoureiro.

Ele estava preocupado era com as contas?
Sim. Porque realmente foi um atrevimento nosso querer fazer uma Queima à grande. E fizemos. E, por isso, é que nesse ano apareceu um relatório das contas da comissão que nunca se tinha feito.

Por sugestão de Salazar?
Foi resposta minha à intervenção do dr. Salazar. Eu disse ao Nuno Pimenta, presidente da Queima: “Ele pode não ler, mas vai receber o relatório.” Houve lucro e criámos cinco bolsas.

Apesar de terem contratado uma orquestra estrangeira?
Que estava a actuar muito bem. Na véspera tínhamos estado no cabaret Maxime, na Praça das Flores, onde a orquestra actuava, e aproveitámos bem a noite.

Qual era a sua relação com o regime?
Era a relação que o povo português tinha. Havia lucidez. 

Nunca pôs em questão o regime?
É preciso ver que eu fui estudante de 1954 a 1959. E o que é que deu oportunidade a que nos pudéssemos manifestar? A candidatura do Humberto Delgado. E aí tomámos posição. Mas nem era bem contra o regime, era para uma alteração do regime. Por que o general era um senhor que tinha crescido e desenvolvido a sua carreira no regime, era da alta confiança, e que depois teve aquela saída no Rossio: “O que se faz ao dr. Salazar? Demito-o.” E houve ainda a atitude de apoio ao bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que saiu do país com o propósito de não votar. Ora, nós pertencíamos ao grupo deste bispo. O dr. Salazar enviou-lhe então uma mensagem para regressar a Portugal e votar, a que ele respondeu: “Recebe-me?” O Salazar disse que sim. Mas o D. António Ferreira Gomes, sabendo como ele era, escreveu-lhe a informar que estaria em Portugal num determinado dia e explicou-lhe o que lhe ia dizer: defender a autodeterminação das colónias e a questão da mudança do regime. Não houve encontro.

O bispo personificava uma voz contra ao regime?
E diferente da hierarquia da Igreja, em que a maior parte das pessoas ainda vivia na memória de que depois dos republicanos tinha vindo o dr. Salazar e devolvido à Igreja um certo estatuto e a possibilidade de haver seminários. De tal modo que, quando o seminário dos Olivais abriu, o Cerejeira foi buscar sacerdotes holandeses para professores por não haver em Portugal. O Estado Novo devolveu uma certa dignidade à Igreja. Houve uma evolução que o D. António quebrou e que era preciso ir mais longe.

O livro destaca duas vertentes: a relação com a Igreja e com a sua mulher. Porque lhes dedicou tantas páginas?
A minha relação com a Igreja não é uma novidade. E o Luís Osório gostou muito da Assunção quando estivemos juntos pela primeira vez em 2006 na Madeira. Ele achou que, tendo sido ela uma excelente aluna de 17 e 19 valores e, sendo uma professora universitária, foi fundamentalmente mulher do Jorge. Está a rir-se?

Estou.
São vidas... Ele achou que ela foi alterando a sua vida de acordo com o Jorge.

E sente-se confortável com isso?
Eu? A opção foi dela. E quando eu fui para a guerra para Angola, no segundo barco de 1961, com 25 anos, achei que não devia ir sem a pedir. Como os meus pais estavam na Madeira, pedi ao meu irmão mais velho, que estava em Roma, que viesse, em nome de meus pais, pedir a mão da Assunção. Era uma atitude de compromisso para casar com ela. O meu sogro não achou muita graça, pois ela estava a fazer o exame de Estado. Mas, apesar disso, a primeira coisa que ela faz, quando eu parto para a Angola, foi escrever uma carta aos meus pais a dizer que gostava de os conhecer. E sozinha meteu-se num avião para o Porto Santo e depois foi de barco para o Funchal. Não havia então muitas raparigas que sozinhas deixassem a casa dos pais, no Porto, e fossem de avião conhecer os pais do Jorge. O meu pai, que pertencia a um grupo musical, fez-lhe uma serenata. E a minha mãe deu vários conselhos à futura nora: “O que é importante é que eles pensem que mandam.”

E depois lá se casaram…
Embora o meu sogro não tivesse achado grande graça. E a Assunção foi ter comigo a Luanda, aonde eu fui duas ou três vezes, em sete meses. Ela ficou preocupada porque não ficava à espera de bebé, porque não calhava.

O marido ia pouco a Luanda?
Eu ia pouco a Luanda.

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