Miró em tempos de cólera

Foto
Nuno Ferreira Santos

1. Andamos todos um bocadinho zangados. Com o Governo, com a Oposição, com a guerra fratricida da galáxia do Bloco em torno da unidade, com o futebol ou com o tempo, andamos zangados. É por isso que se cai de ânimo leve na tentação de pedir mais leis para proibir as praxes quando se devia apontar o dedo aos que cobarde e alegremente se sujeitam a todo o tipo de humilhações. É por isso que a venda de um conjunto de 85 quadros de Miró para tornar o buraco do BPN um pouco, muito pouco, menos doloroso dá lugar a uma discussão que promete revelar a profunda identidade do Governo e o derradeiro destino do país – a barbárie, como se imagina.

O longo e penoso calvário da austeridade parece ter sujeitado Portugal a um estado de transe que só a exaltação de combates em trincheiras bem definidas pode abalar. Como bem escreveu Henrique Monteiro no Expresso, “todo o debate político no conjunto do país parece mais digno de uma tertúlia da Casa dos Segredos ou do Big Brother, onde tem de haver vencedores e vencidos (nem que seja a murro e a pontapé), mas nunca conclusões ou consensos”. Não se esperaria que um debate sobre o que fazer ao espólio de Miró exemplarmente adquirido por essa nata da cultura e do cosmopolitismo que foram Oliveira e Costa e Dias Loureiro escapasse a esse destino. Como se sabe, o perímetro mais vasto do que se considera Cultura é sempre tema de paixão irredutível a questões comezinhas como a do dinheiro.

Ainda assim, este debate revela o transe em que vivemos porque acontece tarde e fez-se desfocado. Desde sempre se soube que havia um lote de obras de Miró no obscuro activo do BPN. Desde que todo o escândalo se tornou público se deu por adquirido que o Estado teria de se ressarcir do dinheiro gasto no banco com a liquidação do seu património e nunca ninguém separou desse património a arte do pintor catalão. Se só agora se inicia o debate sobre se os quadros deviam ser trocados por 35 milhões de euros ou se deveriam enriquecer os museus nacionais é porque os apologistas da inquestionável valia da arte para o futuro da nação andaram distraídos.

Ou talvez não. Talvez o que tenha feito emergir toda a discussão é uma tentativa forçada de retomar a agenda do ataque sistémico a tudo o que se aproxime da órbita da austeridade ou da esfera da governação. Encaixados os socos dos impostos, dos cortes de salários, dos cortes de pensões, dos cortes dos direitos laborais, consolidados temas novos que, por milagre assinalam melhorias no desemprego, no crescimento ou no défice, torna-se necessário inventar novas narrativas. Em tempos, essa obsessiva necessidade de ter uma agenda levou-nos para as questões sociais fracturantes, como as que José Sócrates soube cavalgar, mas como agora esses temas acabam em referendo por cobardia dos eleitos, há que encontrar novos pretextos. Lugar em que a arte surrealista encaixa na perfeição.

Não, nem os quadros de Miró são determinantes para a nossa cultura e o nosso cosmopolitismo, nem estamos ainda numa situação de estabilidade financeira que nos permita encarar com displicência o gasto ou, se preferirem, o investimento em arte. Todos gostaríamos de ter em casa de cada um Miró ou um Bacon, mas há pelo meio das nossas vidas coisas prosaicas como dívidas, contas e aflições afins. Portugal, um sujeito que luta em desespero pela sobrevivência financeira, que vai andando porque se sujeitou a ordens impostas com a pistola na cabeça (como o lembrava a manchete do PÚBLICO desta sexta-feira) tem muito mais com que se preocupar.

Tem, isso sim, de pensar na forma como todo o processo de expedição dos quadros foi feita. Porque se não há lugar para manter os anéis (se é que uma série desgarrada de obras de Miró se pode considerar um anel de um tesouro nacional), é imprescindível conservar a dignidade do Estado severamente afectada com a sobreposição de competências entre uma empresa pública e o Governo e ainda mais com uma revoltante violação das leis do Património. Não é pois a perda potencial deste espólio artístico que transformará o país numa coutada de incultura; é a tolerância do Governo aos expedientes de chicos-espertos sempre prontos a contornar a lei que aproxima o país de um lugar bárbaro.

2. O Governo quer a todo o custo um porto novo em Lisboa. No princípio do ano passado, o ex-ministro Álvaro Santos Pereira anunciava ao mundo a construção de um terminal na Trafaria capaz de acolher “navios gigantes”, mas como a proposta tinha tanto de voluntarismo como de insensatez técnica e financeira (um relatório de Julho de uma consultora internacional acabaria por o revelar), a ideia acabou convenientemente por cair no esquecimento. Por pouco tempo, porém. O recente relatório final do grupo de trabalho para as infra-estruturas de elevado valor acrescentado não caiu na tentação de recuperar o seu cadáver – até porque, no geral, o documento se esforça por ser credível -, mas reinventou a megalomania de Santos Pereira de outra forma: através da construção de um novo terminal de águas profundas para navios de contentores.

Olhando para os dados do próprio relatório, não se percebem as razões que levam o grupo de trabalho a propor o avanço de um projecto que custa 600 milhões de euros, ou seja um quarto dos investimentos previstos para as 15 obras portuárias previstas. Não se percebem as razões que levam a criar um pólo de concorrência a Sines, não se entendem as necessidades prementes de um porto que cresce pouco (em boa parte devido às greves sucessivas) e que está ainda longe de utilizar toda a sua capacidade no acolhimento de contentores. Olhando para a base exportadora da cintura da capital, custa a entender como é que a segunda e a terceira prioridades dos projectos portuários do grupo de trabalho (a expansão do terminal de contentores XXI de Sines e a melhoria do canal de Setúbal para acolher os tais navios gigantes de que falava Santos Pereira) se concilia com a quarta prioridade, o investimento em Lisboa.

Gastar 600 milhões numa infra-estrutura é nos dias que correm uma temeridade. Mas percebe-se que há obras que têm de ser feitas em favor da competitividade. A maior parte das análises do grupo de trabalho, bem como as suas prioridades, são, como tudo discutíveis, mas congregam um mínimo de racionalidade. Com o porto de Lisboa parece que há o claro propósito de inventar uma necessidade para justificar o investimento na região da capital. Claro que, depois, se suspeita da independência do grupo de trabalho criado pelo secretário de Estado dos Transportes, que deliberadamente excluiu todos os agentes económicos (e a CCDRN) do Norte e do Centro do debate. Claro que depois se ouvem autarcas, académicos e empresários a reclamar contra o excessivo proteccionismo concedido a Lisboa pelas políticas públicas de investimento. Com tanta fragilidade argumentativa, é fácil chegar a essas atitudes de protesto. E não é provincianismo nem bairrismo, não. É simplesmente inteligência e preocupação com os interesses nacionais.

Sugerir correcção
Comentar