Manuel Castro Almeida: "Os municípios vão poder atribuir dinheiro à criação de empresas"

Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional garante que as primeiras verbas dos fundos estruturais vão chegar às empresas em Setembro e acredita que o “banco de fomento” está prestes a resolver os últimos entraves burocráticos para abrir - quase um ano depois do previsto.

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Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional Miguel Manso

Autarca por devoção e secretário de Estado por circunstância, Manuel Castro Almeida é o cérebro do Portugal 2020, o programa que vai gerir o novo ciclo de fundos da União Europeia. A aposta do programa é a competitividade e nesse esforço até as autarquias vão participar. Para começar, através das comunidades intermunicipais, “uma nova realidade política que está a nascer no interior do país”, nas quais as câmaras serão “cada vez menos empreiteiras e cada vez mais agentes de desenvolvimento”. Nessa visão que pretende assegurar que em 2020 “os portugueses tenham mais dinheiro no bolso”, a palavra-chave é a descentralização.

PÚBLICO: No princípio deste ano anunciou que “em Junho vamos ter dinheiro fresco a chegar à economia”. Quanto dinheiro é que já foi entregue a promotores de projectos? 
Manuel Castro Almeida: Nós tivemos a primeira entrada de fundos do Programa 2020 em Dezembro de 2014, conforme era o nosso objectivo. Neste momento já há muitas acções em curso financiadas no âmbito do 2020. No caso do sistema de incentivos às empresas há já centenas de concursos abertos, milhares de projectos aprovados que estão em execução e o dinheiro para as empresas há-de chegar durante o mês de Setembro. O dinheiro para instituições públicas já cá está, para bolsas de estudo, os estágios que o IEFP promove, são medidas mais do interior da administração.

Isso quer dizer que o Estado deu prioridade a si próprio em detrimento do sector privado?
Não, é mais fácil de tratar do financiamento a serviços públicos de que promover concursos para empresas privadas. 

Há uns meses previa que fossem executados 5% dos fundos do programa (este ano?). Estamos a falar de mais de mil milhões de euros. Vai ser possível cumprir esse objectivo?
Sim, vai ser possível.

O prazo para a entrega dos planos estratégicos de desenvolvimento urbano sustentável (PEDU) acabou no dia 11, mas foi adiado para 30 de Setembro. Para que servem esses planos? Quantas cidades já os apresentaram?
Nós temos muitos territórios urbanos e temos centros urbanos. Os centros urbanos de nível superior, como tal classificados nos PROT, as maiores cidades, cerca de 100 municípios, têm políticas e recursos próprios dirigidos aos problemas próprios das cidades, ao nível da mobilidade urbana sustentável, ao nível da regeneração urbana e ao nível das comunidades desfavorecidas. Há ilhas urbanas fortemente excluídas. Para estas três áreas, as cidades são convidadas a apresentar uma estratégia e terão acesso a verbas que não andam longe dos 800 milhões de euros. Cada região tem a sua dotação própria e as cidades vão concorrer entre si para essa dotação que existe.

As cidades vão ser responsáveis pelos planos e pelo uso do dinheiro que receberem?
Têm uma subvenção que lhes é alocada, não para um microprojecto, mas para um projecto integrado. As cidades ficam responsáveis pela sua execução, num regime de contratualização. Uma das marcas importantes do 2020 é o reforço da descentralização na gestão dos fundos europeus.

Mas isto não vai trazer muitas contas mal feitas?
Não, acho que não. A descentralização tem riscos, mas o saldo da descentralização é do meu ponto de vista positivo. O centralismo tem maiores riscos do que a descentralização, sem dúvida nenhuma. Há uma aposta muito grande na descentralização no 2020. Por isso vamos contratualizar com os municípios a dois níveis: o primeiro nível de contratualização é com as comunidades intermunicipais (CIM) e as áreas metropolitanas (AM) e para essa contratualização, através dos pactos para o desenvolvimento e coesão, vai haver 1100 milhões de euros. E agora vamos ter um segundo momento de contratualização com os tais centros urbanos de nível superior. Cada município vai apresentar a sua proposta e dizer o que pretende fazer. Em função da proposta vai haver uma negociação e uma dotação global. E depois o município é responsável por executar o seu programa. Vai dizer que vai fazer uma ciclovia para ligar dois pontos, mas não tem de nos dizer qual vai ser o percurso da ciclovia. Não tem de apresentar desde já o projecto de execução, como acontecia no passado. Portanto, os municípios têm uma margem de autonomia maior. Há uma delegação de competências e uma delegação de confiança.

Por que razão houve então tanta polémica e contestação com os pactos de desenvolvimento e coesão?
Eu acho que houve muito pouca contestação. Não é normal que, em período eleitoral, com municípios governados por diferentes forças políticas, nós tenhamos assinado acordos com todas as CIM e todas as AM.

Há um autarca independente, por sinal o presidente da segunda mais importante câmara do país, Rui Moreira, que se recusou a assinar o pacto em protesto contra as dotações orçamentais previstas.
Mas nós não fazemos acordos com câmaras, fazemos acordos com CIM e AM. Este é um outro ponto que tem sido pouco evidenciado no Portugal 2020. Há uma nova realidade política que está a nascer em Portugal que são as CIM e as AM, que até aqui eram apenas espaços de contestação e discussão e hoje são centros de decisão. A Área Metropolitana do Porto ou a CIM de Trás-os-Montes passaram a ter poder para afectar verbas. Foi a AM do Porto que decidiu dizer sim ao pacto e se votou por maioria. Como é normal em processos democráticos, não tem de haver unanimidade. É preciso olhar para esta realidade onde há dez ou mais presidentes de câmara à volta de uma mesa.

Mas fica-se com a ideia de que os autarcas se limitaram a repartir o bolo entre si sem se preocuparem em criar políticas à escala intermunicipal.
É diferente a realidade ao longo do país. Há situações em que os municípios conseguiram identificar projectos intermunicipais e deram-lhes prioridade; noutras situações verificámos que houve mais um somatório de iniciativas locais do que uma visão supramunicipal. Esse é um caminho que demora tempo a fazer. O pior de tudo era não tentar. Quisemos criar esta oportunidade para os municípios pensarem as suas prioridades à escala supramunicipal: uns usaram-na mais, outros usaram-na menos.

Que dinheiro vão ter para gerir as CIM e as AM, por um lado, e os centros urbanos de nível superior?
Há três níveis. Na desagregação entre programas temáticos e os regionais há um aumento de 31% da dotação dos programas operacionais regionais – e há uma diminuição dos programas temáticos geridos em Lisboa. Segundo, na contratualização com os municípios, seja directamente, seja através das CIM e AM, há um aumento na contratualização relativamente ao passado de 32%...

Mas nesse termo de comparação está o Fundo Social Europeu (FSE)…
Sim, está o FSE.

Mas nos programas anteriores não havia verbas do FSE para as câmaras?
Há claramente uma reorientação das dotações que estão a cargo das autarquias e é preciso dizer com todas as letras que vai haver menos dinheiro para obras públicas. Isso é uma opção absolutamente assumida e absolutamente inquestionada do Portugal 2020. Vai haver menos dinheiro para obras públicas, quer obras do Estado central, quer das autarquias. Mas em contrapartida as autarquias passam a ter acesso a dotações do FSE que não tinham e serão chamadas a ter uma intervenção muito maior na área social e também na área do desenvolvimento económico de base local. Vou dar um exemplo: nunca aconteceu os municípios, reunidos nas CIM ou nas AM, terem dotações financeiras para o apoio ao empreendedorismo de base local. Os municípios vão poder atribuir dinheiro à criação de empresas.

Estão preparados para isso? Acredita que vai funcionar?
Acredito. Os municípios vão ser cada vez menos empreiteiros e cada vez mais agentes de desenvolvimento económico e social. É esse modelo novo que queremos ajudar a construir. Há um novo ciclo, uma nova visão do trabalho das autarquias. As obras públicas não estão todas feitas, mas a maioria esmagadora está. Já não é esse o nosso problema. Ao nível das infra-estruturas públicas nós estamos acima da média europeia. Quem vem da Europa visitar as nossas escolas fica boquiaberto.

Que competências têm as autarquias para gerir processos de empreendedorismo ou o apoio social? Não há o risco de as verbas do FSE ficarem serem mal usadas?
Não, não há. Hoje, os municípios têm uma acção de apoio social que não tem financiamento. E passa a haver financiamento para as coisas que eles já fazem e podem expandir. Um exemplo muito concreto: o combate ao abandono escolar. Portugal tem ainda níveis muito altos de abandono escolar, que queremos reduzir quase para metade, passando de 20 para 10%. Há aqui medidas que têm de ser tomadas pelo ministro da Educação e que são universais para o país inteiro. Mas depois há um momento em que é precisa uma acção concreta para levar o menino Joaquim à escola ou para impedir que ele a abandone. É preciso tratar do caso concreto do menino A ou do menino B. E isso aí não pode ser o ministro a tratar. Até hoje não havia dotações para apoiar essas iniciativas como essa, que podem passar por tirar a mãe do alcoolismo, de tirar o pai da droga, de arranjar emprego para o irmão mais velho ou simplesmente alimentar a criança.

Ao nível da inovação e criação de empresas, que papel cabe aos municípios? Nos municípios rurais há competências para essas políticas?
Ao nível do apoio ao emprego, das microempresas ou da criação do próprio posto de trabalho as competências não são do presidente de câmara, isso que fique claro. A competência é da CIM e a CIM vai ter de se capacitar do ponto de vista técnico. Vai nascer uma nova realidade política. As CIM vão ter capacidade de distribuir recursos que não tinham até agora. Vão tomar decisões. E, portanto, não é ter um técnico, um especialista em cada uma das câmaras. É ao nível das CIM que tem de haver um suporte técnico.

O Governo insiste que o problema fundamental é competitividade. E o reforço da competitividade nacional faz-se, de acordo com o 2020, através das empresas. Como vai ser possível garantir essa estratégia no interior, onde, como se sabe, o tecido empresarial é muito frágil ou inexistente?
O grande foco do Portugal 2020 é aumentar o rendimento, a riqueza dos portugueses e do país. O indicador de resultado do programa é chegar a 2020 com os portugueses a terem mais dinheiro no seu bolso. Como é que isto se faz? É preciso produzir mais e, por outro lado, gastar melhor. Qual é a chave para produzir mais? Competitividade e internacionalização. Tornar as empresas mais competitivas. Por isso apostamos tanto no apoio na inovação, na internacionalização, ao reforço da transferência do saber que existe nas universidades para as empresas…

Há um ponto fundamental no Portugal 2020 que é a criação anunciada do banco de fomento. Mas nada se sabe até agora. O que se passa?
A Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), conhecida como banco de fomento, teve o percurso de criação tão complexo como o da criação de qualquer banco, do ponto de vista burocrático, formal, com tramitação junto do Banco de Portugal e da Comissão Europeia. E foi preciso ultrapassar muitos obstáculos. Estamos agora a chegar à fase final.

Chegou a prometer-se a sua entrada em funcionamento no segundo semestre de 2014, faz um ano. Que problemas não estavam previstos?
Foi preciso demonstrar à Comissão que não havia violação das regras de concorrência. Foi um trabalho exigente e estamos a criar instrumentos financeiros novos. Não havia experiência anterior semelhante dentro da administração pública. Mas estou confiante que muito brevemente haverá resultados práticos de acção da IFD. Já tem fundos à sua disposição, já tem autorização para usar fundos europeus também. O processo vai sentir-se fortemente ao longo do próximo ano.  

Nos dez primeiros anos em que Portugal recebeu fundos conseguiu convergir 12% com a média europeia e depois, nos 18 anos seguintes, com a ajuda de dezenas de milhares de milhões de euros, afastou-se, regredindo 1%? O que correu mal?
Portugal concentrou-se excessivamente, quase exclusivamente, na construção de equipamentos e infra-estruturas. Exagerámos na dose, deixando degradar a componente rendimento no bolso e temos de corrigir esse desequilíbrio agora. Há um ciclo novo que se abre com o Portugal 2020, há uma correcção de trajectória. Saímos da componente infra-estruturas e equipamentos, saímos do enfoque no investimento público e passámos agora para o enfoque no investimento privado, que é aquele que gera riqueza, que gera emprego. É isso que vai permitir corrigir estes indicadores que mostram que nos últimos 20 anos, 70 mil milhões de euros depois dos fundos europeus, quase tanto como o que a troika meteu cá dentro, estamos ao nível que estávamos por comparação com a média europeia.

Independentemente de não termos convergido com a média europeia, divergimos imenso dentro do nosso país. Como é que o Programa 2020 vai permitir um maior nivelamento de riqueza entre as diferentes regiões do país?
Tem razão quando diz que nos últimos anos não houve aproximação do nível de rendimento das regiões portuguesas. A correcção das assimetrias regionais não aconteceu, falhámos como país ao longo de todos estes anos. E agora como vamos fazer diferente? Tomámos medidas que estão no regulamento geral dos fundos e na regulamentação específica para garantir, sem margem para erro, que a esmagadora maioria dos fundos vai ser investida nas regiões menos desenvolvidas. É possível fazer um investimento em Lisboa que beneficie Bragança. Mas se se fizer, os fundos europeus não pagam a componente Lisboa, só pagam na medida em que beneficiarem territórios da convergência [com rendimentos per capita abaixo de 75% da média da EU]. É absolutamente vedado usar fundos destinados aos territórios da convergência – e são quase todos [com excepção de Lisboa e Vale do Tejo, Algarve e Madeira]. No final, em 2020, 92 a 93% dos fundos vão ser usados em regiões da convergência. Lisboa Algarve e Madeira vão ter entre 7 e 8% dos fundos, e se as regras forem cumpridas, garanto-lhe que quando for fazer as contas em 2022 vai ver que Lisboa, Algarve e Madeira não terão mais de 8%. O Feder e o FSE, que são os grandes fundos financiadores do Portugal 2020, vão estar ao serviço das regiões menos desenvolvidas, para diminuir esta assimetria de desenvolvimento. Lamentavelmente, no passado, não foi assim.  

Foi uma subversão do espírito dos fundos comunitários?
Os fundos que deveriam ter sido exclusivamente destinados a regiões de convergência não serviram para convergir. Um exemplo: pegue-se no sistema científico. Se eu financiar Lisboa com Orçamento do Estado e puser fundos europeus nas regiões da convergência, formalmente estou a cumprir as regras - só estou a pôr fundos europeus nas regiões de convergência. Mas faz algum sentido que os impostos cobrados em Bragança, Braga, Évora sirvam para financiar investigação só em Lisboa? Então aqui não há adicionalidade. Os fundos europeus têm de servir para adicionar aos do Orçamento do Estado. Não ajuda à superação das assimetrias do desenvolvimento regional, distinguindo apenas a origem do dinheiro. Tem de haver um na adicionalidade e isso não estava a ser feito e vai ter de ser feito.

 Uma citação sua: “Sempre que escrevo uma carta para Lisboa tenho noção que me estou a meter no inferno ou no mínimo no purgatório”. Pensava assim quando era autarca, agora que está em Lisboa ainda pensa assim?
A burocracia é um monstro com muitas cabeças e por isso e muito difícil de vencer. Ontem ouvia dizer que a burocracia é a ‘arte de tornar o fácil em difícil através do inútil’. Exige um combate permanente. Mas garanto que o Portugal 2020 quebra muitas barreiras da burocracia. Também aí há um caminho novo na relação de confiança entre a administração e os particulares. O Portugal 2020 está proibido de pedir aos cidadãos documentos que já estão na posse da administração. Acabou a prova de que não tem dívidas ao fisco e à Segurança Social. Vamos ter os resultados publicados no site do Portugal 2020 mas também na imprensa regional, para que se saiba em Vimioso quais as empresas desse concelho que foram apoiadas. Há uma lógica de maior transparência. Houve uma grande preocupação de simplificação. O número de regulamentos que era quase cem, passou a cinco. Isto é complicar a vida aos burocratas. O princípio é confiar nos cidadãos até prova em contrário. Quem abusar da confiança tem de ter a sanção equivalente.

Subscreve a proposta do PS que prevê a eleição das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR)?
A solução de as presidências das CCDR serem eleitas pelos presidentes de câmara foi adoptada no governo de Durão Barroso. Depois veio o governo Sócrates, do qual era ministro com tutela das autarquias locais o dr. António Costa, e nesse governo foi revogado o decreto-lei do governo Durão Barroso. No preâmbulo desse diploma dizia-se que eram cargos de grande importância e que obrigava a grande confiança política e que era um absurdo fazê-los eleger pelos autarcas e que, portanto, deviam ser pelo governo. Quem escreveu isto foi o governo do dr. António Costa.

Está a dizer que é uma contradição?
Estou a dizer os factos. O dr António Costa agora que está na oposição quer voltar ao governo diz que vai voltar a fazer o que desfez no passado. Se precisar de um exemplo de incoerência, de contradição entre os factos e as palavras, entre as proclamações e a obra feita, aqui tem um bom exemplo das convicções do dr. António Costa.

Entre o papel de autarca e secretário de Estado, em qual se sente melhor?
Para quem gosta de serviço público, não há melhor lugar do que presidente de câmara. O meu ministro tem um grande respeito pelos autarcas. O pai dele foi autarca e eu, às vezes, digo ao meu ministro ‘se continuar a portar-se bem, ainda chega a presidente de câmara’. Digo-o com muita amizade e é bem o sinal de como encaro a função de presidente de câmara. Pode planear, pode sonhar, fazer, pode ver os resultados da sua acção e olhar para os olhos das pessoas que dela beneficiam, mexe no concreto. Os governantes, os ministros, secretários de Estado estão muito longe do processo da tomada de decisão. Até ao benefício concreto vai uma teia enorme, um percurso tremendo que muitas vezes adultera as intenções e que não consegue ver os resultados.

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