“Liquidação do BPP não vai permitir pagar a todos os credores”

O presidente da comissão liquidatária do banco, cujo fundador começa nesta quarta-feira a ser julgado, diz que o risco de condutas fraudulentas "nunca está totalmente eliminado".

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Máximo dos Santos acredita que o Estado vai recuperar o valor que colocou no BPP Enric Vives-Rubio

João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital, os três principais executivos do Banco Privado Português (BPP) até à intervenção estatal, em Dezembro de 2008, começam nesta quarta-feira (se a agenda for cumprida) a ser julgados em Lisboa por burla qualificada, em co-autoria, na Privado Financeiras, veículo criado pelo banco para comprar acções do BCP. Em causa estão prejuízos de cerca de 40 milhões de euros causados a cerca de uma centena de investidores.

“O risco de ocorrerem condutas fraudulentas” em bancos, como as registadas no BPP, “nunca está totalmente eliminado”, defende em entrevista ao PÚBLICO o presidente da comissão liquidatária da instituição fundada por João Rendeiro. Luís Máximo dos Santos acredita que o Estado vai recuperar os 450 milhões de euros que injectou no banco, mas não tem “ilusões”: a liquidação não vai gerar recursos [os créditos reconhecidos são de 1,5 mil milhões] “para pagar integralmente” a todos os credores.

O gestor de falências, quadro do Banco de Portugal, defende que “os grandes poderes” não querem alterar “o actual padrão da globalização financeira”, que “conduziu a uma espécie de anarquia” e que impede “medidas de controlo dos movimentos de capitais”. Sobre o sector financeiro diz que “os riscos continuam a ser muito grandes”.

O que é que sentiu a 4 de Maio de 2010 quando chegou ao BPP?
Um peso sobre mim de grande responsabilidade e cujos contornos se foram desenhando à medida que o exercício das funções se foi colocando. Reconheço que não antecipava de forma alguma todas as questões que aqui se têm colocado.

Tais como?
É a primeira liquidação de um banco em Portugal sujeita a este enquadramento jurídico. A legislação está a ser aplicada pela primeira vez. E não há, portanto, uma experiência anterior. Há outra questão, temos um regime jurídico que se nos aplica em primeira linha que é o regime jurídico das instituições financeiras, mas ele só regula meia dúzia de questões e depois manda aplicar o código da insolvência com as necessárias adaptações. E saber quais são as necessárias é um desafio permanente para quem aqui está e para o tribunal que as tem de aplicar.

Qual o balanço que faz de quase quatro anos à frente da comissão liquidatária do BPP?
Há ainda muito para fazer. Já se publicou a lista de créditos reconhecidos (1,5 mil milhões de euros) e não reconhecidos (900 milhões). Entretanto, houve impugnações. Mas, para um universo de 6000 mil credores, apenas 300 contestaram, o que mostra que houve uma larga aceitação do trabalho que foi realizado. Seguramente que a sentença de verificação e graduação de créditos que há-de ocorrer, talvez no decurso de 2014, será muito exigente para o tribunal. Na verdade, o resultado final está profundamente dependente da eficácia e do acerto [o tribunal ordenou há quatro anos a suspensão da liquidação do BPP] das decisões do nosso sistema judicial.

Quanto é que comissão liquidatária já recuperou para a massa falida?
As disponibilidades líquidas da massa insolvente [o conjunto de bens e valores, em disponibilidades líquidas constituídas em depósitos e obrigações do tesouro que já existem e que servirão para pagar aos credores] são da ordem dos 362 milhões de euros. Os activos [do BPP] são superiores, mas têm de ser realizados. Para além dos 362 milhões, há mais 64 milhões na disponibilidade do BPP, mas que são liquidez segregada da massa falida [da titularidade de clientes], sendo provável que parte reverta para a massa através da necessidade que os titulares desses valores vão ter de solver responsabilidades do BPP. Há ainda 100 milhões já realizados, mas falta saber se são considerados do BPP ou do Estado português.

Como é que está o processo de liquidação da dívida de 450 milhões do BPP ao Estado?
Consideramos [a comissão liquidatária] que tem a validade do penhor, enquanto penhor comum, e nesse sentido foi reconhecida como crédito garantido. O Estado será o primeiro a ser pago, pois na graduação está à frente. Aliás, o próprio Estado acha que tem direito a receber algumas quantias extras às reconhecidas pela comissão liquidatária.

A sua expectativa é que o Estado recupere a totalidade dos 450 milhões?
Se se mantiver o reconhecimento do crédito do Estado como crédito garantido, diria que o Estado vai recuperar o valor que colocou no BPP.

E os restantes credores também vão receber as quantias a que têm direito?
É prematuro responder a essa questão, pois só quando a juíza fixar [montantes] através da sentença de fixação e gradação de créditos é que, no fundo, fica juridicamente consolidado o conjunto de responsabilidades do banco para com os seus credores. Mas não vale a pena ter ilusões, porque dificilmente a liquidação do BPP vai gerar recursos para pagar integralmente os créditos reconhecidos – o que é, aliás, o habitual em qualquer liquidação. O que estamos a fazer é procurar por todos os meios [legais ou outros] minorar os prejuízos das pessoas. Ou seja: maximizar os activos que têm, recuperar o crédito, fazer aplicações correctas, vender os activos bem e garantir que são vendidos em boas condições. Daí termos exercido o direito de preferência nos imóveis-sede do BPP em Lisboa. Esta é a linha de orientação desta comissão e o nosso dever.

Considera justas as acusações do fundador e ex-presidente do BPP, João Rendeiro, ao Banco de Portugal (BdP), apontando para falhas na supervisão?
Essa pergunta não se enquadra no âmbito do meu trabalho e, por isso, não vou responder. Não quero imiscuir-me nesse debate. Além disso, pertenço aos quadros do BdP. Uma coisa é certa: não faz qualquer sentido, em qualquer área da vida, procurar diminuir o desvalor de uma conduta que violou a lei alegando que quem tinha a função de vigiar o seu cumprimento não agiu bem. Diria até que é caricato.

Para a defesa de João Rendeiro [citada pelo jornal i] os accionistas e clientes que contestam o ex-banqueiro foram “vítimas das suas ambições”. Não tem nenhum comentário a fazer?
Pelas razões que expliquei, não respondo a estas duas perguntas.   

Problemas como os que ocorreram no BPN (do foro policial) e no BPP (riscos assumidos sem controlo e também questões criminais) ainda se registariam hoje?
É difícil responder de modo categórico. Os casos BPP [foi retirada a licença bancária, entrando em liquidação] e BPN [nacionalizado e no qual o Estado injectou entre cinco a seis mil milhões de euros] não são comparáveis, nem na sua génese, nem na sua magnitude, incluindo nos danos que provocaram. Mas quando alguém na gestão de um banco está determinado a incorrer em condutas ilícitas e, consequentemente, adopta uma estratégia de deliberada ocultação de informação  às autoridades, o trabalho destas fica bastante dificultado. É um facto que os bancos estão hoje mais sensíveis para a necessidade de cumprir rigorosamente as regras. Toda a área de compliance, por exemplo, está mais valorizada. No âmbito das políticas de whistle-blowing, têm sido introduzidos, sobretudo nos Estados Unidos, e não apenas para o sector financeiro, mecanismos de protecção de quem denuncia irregularidades. Mas o risco de ocorrerem condutas fraudulentas nunca está totalmente eliminado.

O que é que falhou na supervisão de bancos, como o BPP, muito alavancados e com grande exposição ao mercado de capitais?
Em primeiro lugar, o que falhou foi um determinado modelo de gestão das instituições financeiras. A primeira responsabilidade é necessariamente de quem gere. Diria até que, por vezes, se tenta fazer da supervisão o bode expiatório, como se o sistema económico e político também não tivesse responsabilidades. A supervisão exerce-se num contexto. E o contexto foi, um pouco por todo o lado, adverso. O balanço difere de país para país. O Canadá, por exemplo, apesar da proximidade dos EUA, não teve grandes problemas por ter uma cultura financeira diferente. Um dos grandes problemas  do nosso tempo é o de saber como fazer uma supervisão eficaz num contexto de globalização financeira. Não por acaso, alguns autores reputados começam a apontar para a necessidade de introduzir alguma "repressão" financeira, incluindo medidas de controlo dos movimentos de capitais. Mas isso significaria uma alteração muito grande no padrão prevalecente da globalização financeira. Os grandes poderes não estão interessados nisso. 

A supervisão financeira, nomeadamente a do BdP, dá hoje maiores garantias de controlo da actividade (bancos e gestores) do que antes da falência do Lehman Brothers?
Creio que sim. A crise financeira colocou-nos em 2008 à beira de um colapso económico global. Ninguém quer que isso se repita. A crise financeira teve consequências económicas e sociais devastadoras. Na sequência, houve um reforço inegável, a vários níveis, dos mecanismos de regulação e de supervisão. Alguns falam mesmo de um tsunami regulatório, tal é a avalanche de legislação. Um dos melhoramentos introduzidos é a melhor delimitação do plano macroprudencial e microprudencial da supervisão. Percebem-se também os objectivos da criação do mecanismo único de supervisão, muito embora se trate de um passo delicado e que não é isento de riscos, inclusive em termos políticos. Aliás, os riscos continuam a ser muito grandes. Hoje não há uma ordem económica internacional, como antes se aprendia nas faculdades. A globalização financeira conduziu a uma espécie de anarquia. Há um poder económico global, mas não há – nem pode haver – um poder político global. O caminho que está a ser seguido é muito perigoso. Começa a haver sinais de que os povos podem reagir politicamente a esse impasse pela via do extremismo. Em boa verdade, mantendo-se este caminho, não nos devemos espantar por isso.     
 
 
 
 
 
 
 

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