Indexar o valor das pensões à demagogia e aos ciclos eleitorais

Indexar o valor das pensões ao crescimento é politicamente fácil. Difícil é indexá-la à recessão.

Ontem os jornais todos, inclusive o PÚBLICO, resolveram especular. Num briefing informal no Ministério das Finanças, um elemento do Governo disse aos jornalistas que um modelo que está a ser estudado para tornar definitivo o corte de pensões passaria por indexar o valor das reformas ao crescimento económico e à demografia. E os jornais, que pelos vistos cometeram o erro de dar crédito àquilo que disse uma “fonte oficial do gabinete do Ministério das Finanças”, fizeram manchetes com o tema. Esse membro do gabinete da Maria Luís Albuquerque, que não quis dar a cara, mas concordou que a informação pudesse ser publicada, pelos vistos falou com os jornalistas sem antes consultar o gabinete do primeiro-ministro. E deu barraca. Passos Coelho, ao falar em “especulação” e ao pedir especificamente a membros do Governo que contribuam para um debate “mais sereno e mais informado”, está claramente a tirar o tapete a um colega seu do Governo. E Marques Guedes, antes de falar de uma forma extemporânea em “manipulação de informação”, deveria falar com o suposto manipulador, que é um colega seu do Governo, e não com o suposto manipulado, neste caso os jornais.

Não vá ser acusado de corporativismo, deixemos de lado a questão da forma e concentremo-nos no conteúdo, ou seja, na proposta de indexar o valor das reformas ao crescimento económico e à demografia. A ideia é simples e até faz sentido. Para garantir a sustentabilidade da Segurança Social, o valor das reformas aumentaria ou desceria consoante a economia produzisse mais ou menos riqueza e o valor das reformas seria ainda ajustado a indicadores demográficos. Nada disto é propriamente novo e até já cheira a velho. Desde 2007, quando Vieira da Silva fez uma grande reforma do sistema de Previdência, entrou em vigor uma lei (n.º 53-B/2006) que previa que o valor das pensões estivesse condicionado ao crescimento do PIB e à inflação. E desde 2008 começou a ser aplicado o "factor de sustentabilidade" que na prática implicava que a idade da reforma (ou o corte no valor das pensões) variasse em função do aumento da esperança média de vida.

A solução da indexação também é praticada noutros países como a Espanha ou a Suécia, sendo que nalguns existe (noutros não) uma cláusula travão que impede um corte no valor nominal das pensões. A Lei n.º 53-B/2006 do Governo de José Sócrates não tinha essa cláusula travão e tudo correu às mil maravilhas, enquanto a economia e a inflação estiveram a crescer. O problema foi quando em 2009 o Banco de Portugal previu uma inflação negativa e uma quebra do PIB de 3,5%, o que naturalmente iria implicar uma redução no valor das pensões em 2010. Estávamos em véspera das eleições legislativas de Setembro de 2009 e, como tal, o Governo congelou essa regra de indexação para não cortar nas pensões e perder o voto dos pensionistas. Se a lei fosse levada à letra, as pensões inferiores a 629 euros (1,5 x IAS) sofreriam em 2010 uma quebra de 0,2%, enquanto as pensões até 2515 euros perderiam 0,7% e as restantes 0,9%.

E é o que faria sentido, se quiséssemos realmente indexar as pensões ao desempenho da economia para garantia a sustentabilidade do sistema. Aliás, foi o próprio Vieira da Silva que na altura argumentou que a lei impede o poder discricionário dos ministros e a manipulação do valor das pensões com fins eleitoralistas. Só que em ano de eleições (no mesmo ano em que Teixeira dos Santos aumentou de forma despropositada em 2,9% os salários da função pública) o Governo considerou a inflação negativa como um cenário "excepcional" e não permitiu o corte. Desde então essa lei ficou congelada e mais congelada ficou quando chegou a troika, que só deu luz verde à actualização das pensões mínimas.

Pelos vistos, agora o Governo de Passos Coelho quer ressuscitar o espírito dessa lei, embora sem o querer assumir abertamente, já que estamos em véspera de eleições europeias. É por isso que Marques Guedes veio ontem dizer que as notícias que apareceram na imprensa “geram um alarmismo injustificado”. Mas ouvir Passos Coelho a dizer que “o Governo não tem, nesta fase, em cima da mesa nenhuma discussão sobre reduções adicionais seja para salários, seja para pensões" (a subtileza é a palavra “adicional” e “nesta fase”) ou Luís Montenegro a dizer que "não é verdade que venham aí mais cortes de salários e pensões" (a subtiliza é a palavra “mais”) geram em mim uma ideia de facilitismo injustificado. Isto para um governo que sabe que, além de ter de substituir os cortes temporários nas pensões e nos salários da função pública por cortes permanentes, ainda terá de desencantar onde cortar mais 1,7 a 2 mil milhões para cumprir a meta do défice de 2015.

Não me venham dizer que o problema da sustentabilidade da Segurança Social é das crianças que não nascem, dos reformados que não morrem ou dos desempregados que não descontam. A Segurança Social não tem um problema, tem vários. O problema da Segurança Social começou quando os sucessivos governos (já desde o tempo de Sousa Franco com o BNU) foram transferindo para a Segurança Social e para a CGA fundos de pensões de empresas públicas, semipúblicas e privadas para tapar o buraco do défice; estorricando o dinheiro no curto prazo e assumindo o compromisso de pagar as pensões da banca privada, dos CTT, da PT, da CGD, etc… durante décadas. O problema da nossa Segurança Social, que é redistributiva e não capitaliza as contribuições, é que ainda nenhum governo teve coragem de criar e assumir um verdadeiro sistema de indexação que fizesse depender o valor das pensões do valor das contribuições, mesmo que isso implicasse cortar as reformas em ano de eleições. Indexar as pensões ao crescimento é politicamente fácil. Difícil é indexá-la à recessão. O problema da nossa Segurança Social é que o dinheiro foi usado para pagar dívidas das autarquias e dos hospitais, numa lógica do chapa ganha, chapa gasta. E quando dava jeito as contribuições dos pensionistas até serviam para comprar dívida pública, numa lógica de reduzir artificialmente o endividamento do Estado. O problema da Segurança Social é que esteve sempre demasiado indexada à demagogia e aos ciclos eleitorais.
 

   

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