"Houve durante muito tempo excesso de dinheiro fácil" para as empresas

Paulo Soares de Pinho, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova, diz que o país teria melhores empreendedores sem distribuição de fundos comunitários "por toda e qualquer start-up que lhes bata à porta".

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A Universidade Nova de Lisboa lançou na semana passada a Academia de Empreendedorismo Universitário, para fomentar a criação de negócios, numa altura em que uma licenciatura está longe de garantir emprego. Mas o responsável pelo projecto, Paulo Soares de Pinho, aponta muitos obstáculos com que os empreendedores portugueses se deparam. Entre eles, a burocracia e as políticas fiscais. Também professor visitante na Cass Business School, no Reino Unido, argumenta que o país está a tornar-se mais difícil para start-upse pequenos empresários.

Por que surge esta ideia da academia? É para colmatar uma falha curricular?

Não. Os currículos da universidade estão vocacionados para o empreendedorismo. O que pretendemos é ir mais além. A academia, que é constituída com o apoio da Optimus, tem por objectivo pegar em alunos que tenham um grande potencial empreendedor e que tenham projectos para realizar e fazer isto numa perspectiva multidisciplinar, colocando alunos vindos das diferentes faculdades a trabalhar uns com os outros. É uma iniciativa que é colocada acima da formação de base.

E essa formação tem as componentes necessárias para empreendedorismo?

Uma coisa é formar 400 alunos em empreendedorismo, outra é pegar em 30 que têm projectos de elevado potencial. As faculdades ensinam o que é ensinável. O que temos de fazer é de pegar nas pessoas, independentemente da formação, com uma atitude mental apropriada para tomar riscos. Pessoas que, em vez de fazerem aquilo que o doutor e o engenheiro português querem fazer, que é obter um bom emprego, estejam dispostas a criar o seu próprio emprego. Isso não é uma coisa que se ensine. É uma coisa que se estimula.

As pessoas candidatam-se à academia se acharem que têm esse potencial. A maioria tem projectos. Algumas são pessoas que querem fazer algo, mas não têm uma ideia concreta. Ou às vezes têm ideias concretas, mas não sabem como transformar uma tecnologia num projecto empreendedor.

Há problemas de articulação entre a tecnologia desenvolvida nas universidades e o meio empresarial?

Se há área em Portugal em que não conseguimos sair de uma zona protomedieval é na transferência de tecnologia. O sistema académico não está montado para a transferência de tecnologia. É a primeira dificuldade. Um professor universitário tem de publicar para sobreviver na carreira académica. Isso faz com que a maior parte das ideias interessantes seja publicada antes de estarem protegidas [enquanto propriedade intelectual]. Segundo: as pessoas não têm incentivo para comercializar tecnologias. Terceiro: cometeu-se um erro grave, que foi o de pensar que o problema de transferência de tecnologia se resolvia com fundos comunitários para contratar dois ou três recém-licenciados para trabalhar na transferência de tecnologia. Nas boas práticas internacionais, isto é gerido por grandes gabinetes que têm desde doutorados a pessoas com conhecimento dos mercados-alvo.

Este projecto também pretende fazer essa ponte entre tecnologia e empresas?

Não, aqui estamos a falar de projectos empreendedores, embora muitas vezes se chegue à conclusão de que aquilo que as pessoas têm não é algo que faça sentido para [criar] uma empresa, mas que faz sentido para uma empresa estabelecida. É bom que as pessoas apresentem ideias e as discutam. Em cada 100, há uma que chega à fase de comercialização. E o facto de alguém ter uma ideia que não chega lá não tem nada de negativo.

Mas não temos em Portugal um problema de pouca tolerância ao falhanço?

Quando assisto a eventos nos EUA, é comum um empreendedor falar e alguém lhe perguntar como ficou milionário. E ele responde: "Eu tentei dez vezes, fali nove e a última correu muito bem". Há aqui uma componente de risco muito elevada. Ter falhado e ter voltado a tentar é visto como currículo nos EUA. Cá, a mentalidade do Sul da Europa penaliza muito o falhanço empresarial. Quando vemos uma empresa falir, não sabemos qual das três causas tradicionais está por trás disso: má gestão, má sorte ou fraude. Mas há outra razão mais de fundo. Em Portugal, o empreendedor tem currículo. Se é gestor de uma empresa e tem um problema com a Segurança Social e o fisco, isso fica registado. Mais grave: se tem um problema com a banca, fica marcado na central de riscos de crédito gerida pelo Banco de Portugal. Qualquer instituição financeira do país tem acesso ao seu cadastro bancário. Isto significa que em Portugal não temos o direito a falhar. É diferente um incumprimento ser devido a má gestão, fraude ou simplesmente tomada de risco. Ora, o direito a falhar é um ingrediente fundamental no progresso económico de qualquer sociedade desenvolvida. Infelizmente, temos um sistema que prefere proteger os bancos acima de tudo. Isto desincentiva a tomada de risco.

A predisposição para o risco é uma das características sempre apontadas quando se fala de empreendedores. Mas que outras características procuram?

Pessoas que gostem de tomar riscos, que sonhem em mudar o mundo, mas que tenham os pés assentes no chão e os olhos em cima dos clientes. Pessoas com uma orientação total para o mercado. O Jeff Bezos criou a Amazon não por fazer coisas novas, mas porque o foco foi perceber o que os clientes querem.

Com a crise e a falta de empregos, vê nos estudantes maior propensão para o empreendedorismo?

O problema de Portugal é como extrair o retorno do investimento que se fez nesta geração. Tradicionalmente, as pessoas procuravam um bom emprego. Mas o emprego bem pago começa a não existir. A segunda alternativa que damos a estas pessoas é emigrar. Mas quem é que faz um investimento e depois diz "agora vão para fora, vão criar valor para outros, vão pagar segurança social noutro país"? Só há outra maneira de os fixar em Portugal: ajudá-los a criar o seu próprio negócio. Mas a dificuldade de ser um pequeno empresário em Portugal aumentou sistematicamente. A dificuldade burocrática e fiscal aumentou imenso. Temos um fisco todo-poderoso que cria toda a espécie de regras e obrigações. Que cobra primeiro e, quando tem de devolver, devolve muito tarde. Uma empresa paga impostos, mesmo que tenha prejuízos. Ora, esta é a situação natural de uma start-up nos primeiros anos. Estou a ver cada vez mais gente a ser obrigada a mudar a empresa para fora do país. O Estado, que põe hoje a receita fiscal à cabeça, está a prejudicar a receita fiscal futura.

Tivemos um secretário de Estado do Empreendedorismo, Carlos Oliveira, que tinha sido um empreendedor. Não mudou nada para melhor?

Trabalhei com o engenheiro Carlos Oliveira no início da reestruturação do capital de risco público [o processo culminou na criação da Portugal Ventures, a sociedade de capital de risco do Estado]. É uma pena que alguém que foi empreendedor, e que é um dos poucos empreendedores tecnológicos portugueses que têm uma história de sucesso para contar, não tenha conseguido levar para a frente o seu projecto.

Numa entrevista ao PÚBLICO, Carlos Oliveira disse que não havia capital de risco em Portugal à altura do que o país precisa.

Há dois grandes problemas no capital de risco em Portugal. Um é a falta de bons projectos. Houve durante muito tempo excesso de dinheiro fácil. Antes da Portugal Ventures, o capital de risco público financiava qualquer projecto. Com isso, era difícil impor a uma empresa, que achava que havia dinheiro fácil, o género de disciplina que uma boa empresa de capital de risco internacional impõe. A estrutura de investimento típica de uma capital de risco em Portugal é extremamente rudimentar, porque concorre contra o Estado. Um Estado não tem fins lucrativos e não tem vocação para disciplinar as start-ups onde investe e ajudá-las a ser bem-sucedidas. O Estado vê o capital de risco como dinheiro. O negócio do capital de risco não é dinheiro; é acrescentar valor, conhecimento, ligações, contactos, é ajudar a empresa a acontecer. É muito difícil [ao capital de risco privado] impor às start-ups um modelo exigente quando estamos a concorrer com quem não tem fins lucrativos e que tem um modelo de investimento que não é minimamente exigente.

Essa concorrência não existe nos outros países?

Noutros países onde há capital de risco público, o modelo é muito diferente do que se implementou em Portugal. Em França, o capital de risco público foi obrigado a levantar [conseguir] dinheiro junto do sector privado. Esse é o segundo problema: como levantar dinheiro em Portugal. Em Israel, um caso extremamente bem-sucedido, o dinheiro público foi colocado em capitais de risco privados. O modelo que se seguiu em Portugal foi entregar os fundos comunitários ao capital de risco público e foram entregues pequenas quantias aos privados.Temos um problema no capital de risco público: praticamente não há histórias de sucesso para contar. É a falta de disciplina, o facto de o principal operador ser o Estado (que não se envolve nas empresas em que investe), a falta de parcerias com empresas internacionais... Foi isso que o engenheiro Carlos Oliveira tentou e que ficou por fazer: reforçar a ligação do capital de risco português a operadores internacionais.

Não lhe parece haver no empreendedorismo português, particularmente em áreas como a Web e o sector móvel, uma fascínio provocado por exemplos como Silicon Valley ou Israel?

Quando vejo os portugueses falarem do modelo de VC [venture capital, capital de risco] americano, não fazem a mais pequena ideia do que estão a falar. Em primeiro lugar, não existe a busca pró-activa de projecto. Não estão à procura de projectos, não precisam. Em segundo lugar, em 90% dos casos de investimento feito em Silicon Valley, o CEO é nomeado pelo capital de risco e não é um dos fundadores. Em terceiro, a disciplina imposta no contrato de investimento é completamente diferente da que é imposta em Portugal.

Mas há mais dinheiro para investir.

Há mais dinheiro, mas há mais gente inteligente que percebe o que é montar uma empresa completamente voltada para o mercado. Aqui, levanta-se com a maior das facilidades dinheiro numa capital de risco pública. Lá, o mercado é extremamente exigente e disciplinador. Portugal teria melhores empreendedores se tivéssemos a possibilidade de ter um sistema de capital de risco mais exigente, sem os fundos comunitários a distribuir dinheiro às migalhas por toda e qualquer start-up que lhes bata à porta.

Já falei com start-ups que se queixaram de que o capital de risco em Portugal é de difícil acesso e não está disposto a arriscar. Concorda?

Discordo absolutamente. O capital de risco em Portugal tem um enorme problema: anda há 20 anos a perder dinheiro. Como é que uma sociedade avessa ao risco perde dinheiro?

Perde dinheiro porquê? Má gestão?

Nós temos pessoas que são más empreendedoras quando vão falar com as capitais de risco, que acham que têm o direito constitucional de serem financiadas por fundos comunitários. Em Portugal, há sempre um programa que dá 50 mil euros a cada um. Depois aparece outro programa que dá mais 100 mil euros. Portugal tem sido o país da migalha. E a migalha tem permitido a proliferação de empresas sem qualquer espécie de viabilidade. Algumas até tinham alguma viabilidade no início, mas, como o dinheiro apareceu de forma fácil, não sentiram aquela pressão de uma capital de risco internacional em cima deles todo o tempo.

Contacto com muitos responsáveis por políticas públicas que sempre me disseram que o capital de risco é para perder dinheiro. Já tive responsáveis pelo QREN a dizerem-me que o capital de risco era para perder dinheiro. Isto choca-me! Se o capital de risco não ganhar dinheiro, a economia não progride. Se não é para ganhar dinheiro, é para deitar fundos comunitários à rua.
 
 
 
 

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