Habermas no país das desigualdades estruturais

O título deste artigo tem algumas semelhanças com o título da obra de Hergé, Tintin no país dos sovietes, mas a semelhança termina aí. Jurgen Habermas não é um repórter personagem de banda desenhada, mas sim um filósofo e sociólogo, e ao contrário de Hergé, que não esteve na Rússia quando desenhou essa primeira obra do seu herói Tintin, Habermas esteve na passada semana em Lisboa e conhece bem o nosso país, a Alemanha e a Europa.

Portugal é hoje tão conhecido na Europa, como destino turístico, como o é por ser um país onde as reformas estruturais, guiadas por Bruxelas, Frankfurt e Washington (embora aqui com menor peso e vontade), devem ser aplicadas para reduzir o déficit do Estado e reequilibrar o sistema bancário.

No entanto, apesar das cimeiras, das coberturas televisivas e artigos de jornal, a Europa não se conhece bem a si mesma. Não se conhecendo a si mesma, a Europa vive o presente omitindo o seu passado longínquo – isto é a última guerra mundial e o motivo porque nos juntámos nesta União. Continua a olhar o presente a partir de um passado mais recente – o dos anos noventa quando acreditava poder ser relevante a nível global. E olha para o futuro de uma forma auto-centrada, isto é, pensa o que será amanhã em função dos seus interesses nacionais e não do interesse nacional enquanto partilha de interesses comuns.

Porque não se conhece a si mesma, a Europa também continua a acreditar, estranhamente, mas não em contradição com uma visão auto-centrada, que todos os países são parecidos e que as singularidades são desprezíveis. Daí que não se aperceba de como há países extremamente desiguais e países extremamente menos desiguais.

E que em muitos desses países, como em Portugal, o que os caracteriza, são desigualdades estruturais (que em dado momento a Europa havia decidido ajudar a corrigir) e cujas actuais propostas de reformas estruturais estão a acentuar. Isto porque a ordem é para manter as desigualdades, porque as políticas que guiam a acção estão assentes numa normatividade neoliberal na qual a desigualdade é a norma, e a norma resulta da ideia de que apenas os que tiverem sucesso no mercado merecem melhorar a sua vida.

Resumindo, estamos hoje neste local incerto porque a ideia de um modelo social europeu se perdeu algures quando muitos acharam que deveríamos, de algum modo, assumir comportamentos ou expressar valores neoliberais no nosso dia a dia e   quanto ao nosso futuro.

A ideia de que nos podemos todos ter tornado neoliberais é poderosa e não é da autoria de Habermas, mas sim de Colin Crouch no seu livro Making Capitalism Fit for Society. Mas porque acha Crouch que mesmo os que votam à esquerda sem ter partido, ou que se consideram socialistas no sul da Europa, ou sociais-democratas no norte da Europa, ou são verdes ou mesmo comunistas, se podem ter tornado, sem o perceber, neoliberais? E, se tal aconteceu, de que modo tal explica o porquê da Europa estar hoje como se encontra? E o que fazer se não gostamos da imagem que surge quando nos olhamos ao espelho?

Como sugere Crouch, embora a Terceira Via, protagonizada pelos trabalhistas de Blair, possua claras limitações, também possuirá pelo menos uma virtude: a de nos alertar para a exaustão e impossibilidade de regressar aos velhos projectos.

Mas a mais importante limitação, presente nas diferentes terceiras vias experimentadas, reside em ter-se aceite, durante largos períodos governativos, o capitalismo de forma acrítica. E, ao fazê-lo, termos ignorado os problemas criados aos cidadãos pela acumulação desmesurada de poder por parte de empresas globais, na tentativa de remunerar sempre cada vez mais os seus accionistas e conselhos de administração – basicamente, dando corpo à receita para a criação de crises como aquela em que nos encontramos hoje.

Segundo Crouch tornámos-nos "todos" neoliberais quando acreditámos que algo que em teoria parecia fazer sentido, isto é, que podemos ter estados fortes com um papel limitado na garantia da operacionalidade dos mercados, podia ser aplicado na prática. E que, apenas por via da aplicação política de uma teoria, se garantiria que a esperança, que faz com que a vida valha a pena ser vivida, continuasse a guiar as sociedades europeias.

Tornámos-nos neoliberais, sem o escolher, quando assumimos que tínhamos de aceitar alguma forma de capitalismo neoliberal; mas errámos quando confundimos esta aceitação com a sua transposição para a esfera da governação e enquanto valor de governo das sociedades.

No entanto, o “neoliberalismo” presente na governação de uma parte substancial dos países europeus é muito mais um neoliberalismo de favores, em que tanto as elites económicas quanto as políticas estão em concertação para proteger interesses por si definidos, do que um puro neoliberalismo promotor de um  contexto de liberdade de escolha e de acesso aos produtos dos mercado à maioria das populações.

Os pensamentos de Habermas ou Crouch mostram-nos que as ideias e a sua ligação com a actuação política na economia, sociedade e fiscalidade não desapareceram. Estão activas e em combate com outras formas de pensar. Por outras palavras, a tecnocracia, no contexto da governação europeia, surgida como forma de fazer política, fazendo de conta que as ideias políticas estão ausentes e que há apenas teorias de gestão e de relações públicas, a serem aplicadas por pessoas que as sabem aplicar, não se tornou ainda na única forma de fazer política.

De alguma forma as propostas tecnocráticas, mesmo quando legitimados nas urnas europeias sob a forma de programas de reestruturação e austeridade, estão essencialmente imbuídas de uma lógica programática neoliberal. O neoliberalismo político não é sobre dar aos consumidores maiores escolhas em mercados competitivos, mas sim sobre como aumentar o poder dos mais poderosos no mercado e também da concentração de privilégios em poucos indivíduos. Daí que, em vez de ser a aplicação à realidade de um conjunto de ferramentas baseadas em uma pura teoria económica, seja efectivamente um movimento político.

Um capitalismo sem um Estado para o salvaguardar dos seus excessos, cria as condições para o seu próprio falhanço e crises duradouras, as quais, por sua vez, minam a própria credibilidade dos estados e dos sistemas políticos e económicos.

O capitalismo viciou-se no neoliberalismo mas, como em todos os vícios, a euforia do momento acaba sempre por comprometer a sustentabilidade do médio prazo.

Daí, que Crouch sugira que devemos lutar por uma versão de capitalismo de coordenação económica de mercado em vez de uma ortodoxia incapaz de reduzir as desigualdades e promover crescimento económico. Essa é a forma de capitalismo que melhor serve os cidadãos e, se quisermos ir mais longe, também é aquela que vai ao encontro do interesse da maioria dos actores económicos porque sustém a viabilidade do próprio capitalismo.

Um capitalismo de coordenação económica de mercado que, aceitando o valor e a prioridade dos mercados na economia, aceite também as suas limitações e deficiências. O que implica igualmente fazer a pergunta: quando e como se torna o Estado necessário? E, consequentemente, uma tentativa de resposta: o Estado é necessário para assegurar a possibilidade de todos viverem uma vida decente e em dignidade, mesmo se não puderem ter muito sucesso no mercado, e também a possibilidade de os cidadãos gerirem com sucesso as tarefas partilhadas e colectivas que entenderem. No fim de contas, o que Crouch sustenta é a necessidade de um reactivar dos movimentos políticos existentes perante a necessidade de serem capazes de representar a parte da sociedade com menor distribuição de rendimento e riqueza, ou seja, a maioria da população europeia.

É essa a escolha política que os governos precisam de encarar e responder: estar do lado dos interesses individuais de pessoas e de algumas organizações ou dos interesses dos indivíduos e da sua liberdade de organizar o seu futuro? É também essa a escolha dos governos Europeus a que Habermas se refere quando diz que precisamos de sair da lógica de interesse próprio de curto prazo que marca o comportamento de quase todos os governos.

No geral, o que podemos concluir sobre a Europa e o seu futuro é que a voz popular talvez tenha alguma razão, ou seja, a culpa é mesmo dos políticos. Como sugere Habermas, a culpa é dos que hoje, ocupando lugares de poder, não apelam à mudança usando o melhor de nós; e apenas buscam manter-se no poder apelando ao que de pior há em cada um de nós.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.
 

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