Há 30 anos

É possível recuperar a independência do sistema financeiro.

1. “Jorge, recorda-se? Há 30 anos, justamente, estávamos a ser nacionalizados. Coincidência!” – dizia-me António Castelo Branco em março de 2005 na minha última Assembleia Geral enquanto presidente executivo do BCP. Preparava-se o Banco para os próximos 20 anos e estávamos longe de prever que uma espécie de nacionalização se repetiria, e que chegaria mais cedo ao BCP do que ao setor, dessa vez sem coincidências.

Em 2008 o BCP é instrumentalizado e em 2012 a Banca portuguesa saudável recebe auxílio de Estado. A economia encolheu e as grandes empresas portuguesas desapareceram. Os Bancos penaram mas agora que podem efetivamente dar crédito, apenas o crédito a particulares reage. O fim do projeto europeu foi anunciado e a incerteza macroeconómica teima em não acabar.

Resta recuperar o que tínhamos há 30 anos.

2. Após as nacionalizações de 1975 ingresso no Popular em Espanha, ex-acionista do Banco da Agricultura, mas, incentivado pelo Presidente da República e pelo governo de então, regresso em 1977 para trabalhar na Banca nacionalizada. Recordo dessa época mais do que a controvérsia – fazia-se política a pensar num povo, num ideal, com uma visão e uma estratégia de futuro para Portugal. Perante condições económicas e financeiras também adversas, havia mais cidadania e sentido de Estado do que hoje em dia. Havia verdadeira ideologia.

Era uma época em que se pensava e se debatia. Podia discordar-se ideologicamente, mas as razões subjacentes a uma nacionalização ou, mais à frente, a uma privatização eram perceptíveis e transparentes, tinham um sentido público.

3. Dez anos depois da nacionalização, abre-se em 1985 o setor bancário à iniciativa privada. Nascem o BCP e o BPI, os únicos bancos hoje ainda ativos que se criaram a partir de vontades exclusivamente nacionais. Dois projetos que vieram a contribuir muito para o desenvolvimento do País, claros e independentes de um acionista ou de uma família.

Mas apesar das condições de mercado favoráveis, o caminho não foi fácil. Às restrições regulamentares, como os limites impostos à concessão de crédito e à abertura de sucursais, juntavam-se outras, estruturais, que dificultavam o estabelecimento de uma rede de retalho moderna em Portugal, como por exemplo as infra-estruturas de telecomunicações - outro setor onde tanto se investiu para se deitar tudo a perder gratuitamente.

Tanto o BCP como o BPI foram precursores da consolidação do setor absorvendo outras instituições como o Atlântico, o Pinto & Sotto Mayor e o Mello, no caso do BCP, e o Fonsecas & Burnay, Fomento Exterior e Borges & Irmão no caso do BPI. Muitos problemas surgiram, mas respeitando as Casas adquiridas e com muito trabalho conjunto com o regulador, tudo se resolveu. Ganhou-se massa crítica em Portugal que permitiu a internacionalização.

4. A Banca foi útil ao país, como aliás era seu dever, apoiando empresas e famílias nos seus projetos. O setor financeiro português que em 1975 contava com 17 bancos comerciais, dos quais 3 estrangeiros, veio a atingir patamares de excelência na Europa. Tornou-se efetivamente presente de norte a sul do país e nas ilhas, e, pelo menos até 2007, soube ganhar eficiência sem entrar na desumanidade.

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5. O que veio a acontecer ao BCP já é sabido. Só acrescento que perante a crise global fez muita falta a Portugal um BCP forte, com capacidade de coesão e de defesa dos centros de decisão nacionais. Um parceiro independente que pudesse debater, confrontar e trabalhar em conjunto com os agentes económicos nacionais para solicitar em tempo uma ajuda externa digna e mais tarde para confrontar o porquê do ir além da troika.

A crise foi devastadora para a economia europeia. Portugal sofre mais e no pós-crise afasta-se da tendência da área do euro. O crédito, que antes da crise financeira crescia 10% ao ano em paralelo com a área do euro, passa a contrair-se mais acentuadamente. As imparidades constituídas desde 2008 em Portugal atingem cerca de 30,9 mil milhões de euros, representativas de 7% do ativo e 19% do PIB, níveis apesar de tudo inferiores aos reconhecidos na Irlanda (~70% do PIB), Grécia (~47%) ou Espanha (~27%), com a Alemanha a ser menos afectada (<5% do PIB).

Com as receitas condicionadas, o potencial de redução de custos a esgotar-se e as imparidades em crescendo, a rentabilidade dos Bancos foi rapidamente esmagada. Os ROE de dois dígitos que vigoravam antes da crise, passaram a negativos ou nulos durante a crise, mantendo-se desde então em níveis inferiores ao Cost of Equity.

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Situar o ROE acima do custo do capital é o grande desafio do setor. Mas como superá-lo, quando a economia e a regulação não ajudam?

6. Não tenhamos ilusões. Alcançado um mix de financiamento mais ou menos equilibrado, e reembolsadas as ajudas de Estado, o futuro do negócio bancário continuará a ser macroeconómico. Sem (bom) crédito e sem estabilização macroeconómica não há conta de exploração que perdure. Mas a retoma económica após crises financeiras é lenta e a recuperação desta crise têm-no sido particularmente.

No cenário atual, regressar aos dois dígitos de rentabilidade obriga a que aumentem desesperadamente as margens e a eficiência, ou seja, à transformação profunda do modelo operativo e de negócio dos Bancos. Para um Banco da Europa Ocidental trata-se, em média, de aumentar a margem (após custo do risco) em mais de 50% e os rácios cost-to-income para níveis abaixo dos 50%.

Mas a regulação interfere neste caminho. A preocupação com o risco sistémico dos grandes bancos globais exige mais e mais capital, voltando a incentivar a segregação das diferentes atividades bancárias. Em paralelo, propõem-se medidas restritivas na comercialização de produtos financeiros de risco que poderão permitir o contornar da obrigação de uma supervisão competente – que acabará por não se constituir – e vêm “evitar” o engano ao cliente obrigando a outra segregação, mas esta no interior da própria sucursal bancária. Faz lembrar o passado, quando vários serviços eram prestados em edíficios diferentes do mesmo Banco.

A regulação interfere ainda no custo do capital quando faz pender sobre o setor o risco do cooperativismo trazido pelos novos mecanismos de resolução de Bancos. Mesmo após o acumular do nível objetivo à escala europeia, não se espere grande cooperação nestas matérias – veja-se a solidariedade europeia à Grécia (que vazio de reflexão vive a Europa, à mercê de reuniões de tecnocratas onde, faltando a política, o poder do dinheiro acaba sempre por prevalecer). De resto, num cenário de gravidade que exceda os recursos disponíveis, também não esperemos que os contribuintes sejam poupados. A propósito, veja-se a posição do Tribunal de Contas sobre a resolução do BES em Portugal.

Terei sido o primeiro a criticar em público a forma de resolução do BES. O fundo de resolução, entrando com 6% do capital, tem plenos poderes de gestão. Enquanto “instituições participantes” do fundo, os Bancos portugueses partilharão as perdas da venda do NovoBanco, sem serem acionistas, sem opinarem sobre a sua gestão, sem sequer terem acesso à informação relevante.

7. O setor bancário português, na estrutura que se apresenta atualmente, enfrenta um estreito caminho. Satisfará as exigências de capital e a nova legislação com óbvia penalização da eficiência operacional, impedindo-se a recuperação desejada da conta de exploração.

E do lado do negócio, ainda é necessário investir. Os Bancos parecem esquecidos, mas é urgente pensar na revolução digital que está a acontecer do lado do consumidor. Têm de voltar a apanhar o comboio da inovação, para conseguir saber onde está, o que quer e para onde vai o consumidor de serviços financeiros. A sucursal, embora mais focada na resolução de problemas, aconselhamento e vendas de produtos complexos, não poderá deixar de existir.

8. É tempo de repensar a combinação das atividades bancárias. Foquem-se as atenções. Organizem-se as Casas. Finda a “segunda nacionalização” da Banca em Portugal será tempo de reunir novamente vontades e eliminar clivagens. Sim, é tempo de colocar os egos de lado, de reunir acionistas e equipas independentes. E dispensam-se falsos Rockefeller. Não abunda grande capital em Portugal, mas a talento português que se apresente com verticalidade acorrerá sempre capital, seja ele nacional ou estrangeiro.

É possível recuperar a independência do sistema financeiro. Lembremos que na génese de um projeto como o BCP estiveram mais de 200 acionistas, unidos por uma vontade firme e determinada desde o primeiro minuto, que souberam distinguir entre propriedade e gestão.

Precisamos de unir a experiência do passado, a audácia do presente e o futuro promissor. Foi assim há 30 anos.

Ex-presidente do BCP

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