Argentina forçada a negociar com os investidores a que chama "abutres"

Tribunais norte-americanos dão razão aos credores que recusaram a reestruturação da dívida pública argentina. Especialistas dizem que as consequências para uma eventual reestruturação portuguesa devem ser reduzidas.

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O Governo argentino colocou anúncios em alguns dos principais jornais do Mundo, defendendo a sua posição REUTERS/Enrique Marcarian

Entre um novo incumprimento no pagamento das dívidas nos mercados internacionais e a humilhação de ter de ceder aos investidores a que chama de “abutres”, as autoridades argentinas enfrentam nos próximos dias uma escolha difícil.

A história está agora a chegar à fase decisiva, mas teve o seu início em 2001. Foi nesse ano que o Estado argentino entrou em falência e deixou de pagar aos seus credores. Substituiu os títulos de dívida pública que não conseguia amortizar por outros de muito mais baixo valor. Alguns investidores aceitaram a troca, tentando garantir que recebiam pelo menos uma parte do dinheiro, outros decidiram manter nas suas mãos os títulos antigos.

Um pouco depois, alguns hedge funds – entre os quais o NML Capital do bilionário Paul Singer – decidiram realizar uma aposta que à primeira vista parecia arriscada: compraram títulos que não foram trocados por um preço baixo e recorreram aos tribunais para tentar forçar o Estado argentino a amortizar a dívida por inteiro ou pelo menos numa parte substancial.

Os tribunais a que recorreram foram os de Nova Iorque e, após diversos acórdãos e recursos, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos deu-lhes razão. Os títulos não trocados têm de ser pagos por inteiro ou então a Argentina não poderá amortizar quaisquer outros títulos de dívida que tenha emitido.

Perante esta decisão, o Governo do país, que chama “abutres” aos hedge funds que compraram a dívida para conseguir lucros pela via judicial, fica com um espaço de manobra muito reduzido. Ignorar a decisão dos tribunais americanos será difícil porque além de a Argentina perder na prática o acesso ao mercado de dívida internacional, ficaria impossibilitada de continuar a pagar os títulos de dívida reestruturados, entrando novamente em situação de falência. Aceitar a dívida por inteiro de forma rápida também é complicado porque o valor da dívida não reestruturada que lhe pode ser exigida é de 15 mil milhões de dólares, um valor que é cerca de metade das reservas cambiais do país.

Na segunda-feira, o Governo argentino tentou junto dos tribunais americanos obter um adiamento da aplicação da sentença, de modo a que possa realizar pelo menos uma amortização de dívida reestruturada que tem agendada para 30 de Junho, comprometendo-se a iniciar negociações com os fundos “abutres”.

Ontem, o Governo voltou a mostrar a sua versão mais combativa e colocou anúncios em alguns dos principais jornais do Mundo, defendendo a sua posição e acusando a decisão dos tribunais norte-americanos de empurrarem o país para outra falência.

 Impactos internacionais

A decisão dos tribunais não provocou apenas a fúria da presidente argentina Cristina Kirchner. Causou também apreensão em entidades como o Fundo Monetário Internacional que, habituado a ver países sobrecarregados com dívida e que precisam de a reestruturar, vê aqui uma dificuldade acrescida na concretização destes processos. A partir de agora, um país sobreendividado terá mais dificuldades em convencer os credores a aceitarem uma reestruturação da dívida.

Dois especialistas em reestruturações de dívida - um norte-americano, outro argentino - concordam, em declarações ao PÚBLICO, que a decisão judicial pode ter algum impacto em futuras reestruturações, mas frisam que este caso tem características únicas e que poderia ter sido evitado pela própria Argentina.

“Acho que se está a exagerar em relação às implicações que este caso pode ter para o mercado em geral. A Argentina foi agressiva na sua recusa em respeitar os tribunais americanos e em negociar com os credores. Mas é verdade que isto irá mudar a forma como os países terão de negociar e pode aumentar ligeiramente o problema criado pelos credores que se recusam a aceitar a reestruturação da dívida. Isso pode ser um problema político para alguns países”, afirma Robert Kahn, membro do think tank Council on Foreign Relations.

Rodrigo Olivares-Caminal, um argentino que é professor na Universidade de Londres, partilha a mesma opinião. “Temos de ver que a Argentina tem sido realmente muito radical na sua abordagem aos credores”, afirma, assinalando que, ainda assim, poderá haver mudanças na forma como os Estados a partir de agora vão definir à partida os contratos que fazem com os credores.

E Portugal? Se precisar de reestruturar a sua dívida poderá sentir os mesmos problemas que a Argentina? Robert Kahn diz que “como a dívida portuguesa está principalmente abrangida pela lei nacional e com cláusulas de acção colectiva (CAC) que obrigam os credores que se recusam a aceitar uma reestruturação a aderir, pouco muda com esta decisão”. E dá a Grécia como o exemplo “daquilo que se consegue fazer mesmo quando há credores que não querem aceitar a reestruturação”. “O caso da Argentina mostra-nos o valor de confrontar os credores em boa fé quando se precisa de fazer uma reestruturação”, afirma Robert Kahn.

 Rodrigo Olivares-Caminal também acha que Portugal está bastante mais seguro com as CAC, mas avisa que “é preciso ter cuidado”, uma vez que com títulos de dimensão reduzida, um investidor pode deter uma parte grande da dívida o que lhe daria o direito a recusar uma reestruturação.

Em relação ao que irá agora fazer a Argentina, este economista diz que “não há grandes opções”. “Agora tem de se sentar com os credores que recusaram a reestruturação, sendo certo que estes passaram a ter um muito maior poder de negociação”, afirma. O Governo argentino recusar negociar, é visto por Rodrigo Olivares-Caminal como um cenário pouco provável, mas não impossível. “A Argentina é muitas vezes irracional”, afirma.     

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