Governo quer limitar acesso interno a dados dos contribuintes

Representantes dos trabalhadores da AT temem que as restrições condicionem as investigações tributárias. Finanças querem aproximar procedimentos ao sistema de acesso aos dados do E-Factura.

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Enric Vives-Rubio

Identificadas as principais falhas na protecção do sigilo fiscal dos contribuintes, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tem até 19 de Junho para traçar um plano para controlar o acesso dos funcionários da administração fiscal. O Governo quer que a consulta passe a ser justificada e fundamentada para cada trabalhador. A ideia passa por aproximar os mecanismos informáticos dos procedimentos de acesso aos dados do E-Factura, em que a consulta é restrita a um grupo mais pequeno de funcionários da AT. A medida está, no entanto, a gerar perplexidade junto dos representantes dos funcionários, que temem que seja criada uma barreira no acesso à informação, nomeadamente para quem faz inspecção tributária.

A orientação partiu do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, num despacho assinado na terça-feira, o mesmo dia em que foram publicadas as conclusões do inquérito da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) ao caso da lista VIP. No despacho, a que o PÚBLICO teve acesso, o governante estabelece seis prioridades, entre elas, assegurar que “os acessos realizados a dados pessoais de contribuintes por utilizadores internos são devidamente justificados e fundamentados, tendo designadamente como referência o procedimento já adoptado no desenho e concretização do sistema E-factura”.

O presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Inspecção Tributária e Aduaneira (APIT), Nuno Barroso, considera necessário discutir a criação de perfis diferentes no acesso às informações fiscais, “de acordo com as funções que cada funcionário executa, independentemente da carreira e do título que cada um tem”. Mas sublinha que isso é diferente do procedimento que hoje existe para proteger os acessos às bases do E-Factura, o sistema informático, validado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), onde constam as facturas comunicadas pelas empresas (ou pelos contribuintes).

No despacho, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais identifica como um dos problemas a resolver o facto de não haver um registo prévio que “legitime e fundamente o acesso aos dados dos contribuintes por parte dos cerca de 11 mil utilizadores internos, sem que os mesmos estejam devidamente autorizados, nomeadamente por determinação superior ou por acto administrativo”. A orientação do governante não é, porém, clara sobre a forma como se deve desenvolver este controlo.

Para o presidente da APIT, criar um sistema em que os acessos têm de ser justificados vai gerar dificuldades. “Obrigar a um registo sistemático pode criar alguns empecilhos na forma rápida como se pretende que a AT trabalhe. Iria criar, sobretudo nas carreiras inspectivas, uma barreira que não se compreenderia no acesso à informação”. Nuno Barroso alerta ainda para aquilo que diz ser o perigo de restringir o âmbito da actividade dos funcionários. “Dentro da AT foram espoletadas algumas das investigações mais complexas das últimas duas décadas. Essas operações foram realizadas com um acesso livre. Se restringirmos isto a pequenos grupos de pessoas, dificilmente alguma vez voltaremos a ter uma Operação Furacão no país”.

O que a APIT propõe em alternativa são tipos de perfil informático, mas sem que os utilizadores precisem de um registo prévio: “Se sou inspector e estou num serviço de secretaria, se calhar não preciso de ter as mesmas permissões que um inspector com o mesmo título mas que está numa função de investigação”.

No documento, Paulo Núncio pede que a directora-geral da AT, Helena Borges, dê seguimento à recomendação da IGF para que sejam avaliados “todos os actos, factos e declarações relevantes” dos funcionários e dirigentes do fisco com responsabilidades no caso da lista VIP, para se ponderar eventuais procedimentos disciplinares. A AT está também incumbida de rever a contratação de entidades externas com acesso às bases de dados do fisco e criar mecanismo de certificação e auditoria informática.  O plano de acção tem de respeitar as recomendações da IGF e da CNPD, a quem a AT tem de dar conhecimento destas medidas até ao fim de Setembro.

228 alertas emitidos
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), Paulo Ralha, que considerou que o relatório da IGF “não é isento, nem idóneo” pelo facto de esta entidade ser tutelada pela ministra das Finanças, rejeita completamente qualquer sistema de restrições de acesso. “Esse controlo vai impossibilitar a casa [fisco] de fazer qualquer investigação séria em termos de combate à fraude e à evasão fiscal”, diz Paulo Ralha, acrescentando que “não há tradição absolutamente nenhuma de quebra do sigilo fiscal, todos os processos que indiciavam devassa estão a ser arquivados”.

Nos cerca de cinco meses em que esteve a funcionar (entre 29 de Setembro de 2014 e 10 de Fevereiro deste ano), o sistema desenhado pela AT para detectar quem acedia aos dados fiscais dos contribuintes da lista VIP gerou 228 alertas, concluiu a IGF, no relatório que o PÚBLICO consultou. A auditoria não indica, porém, se estes acessos levaram à quebra do sigilo fiscal. Refere-se que foram instaurados 33 processos disciplinares que resultaram, não dos alertas do sistema VIP, mas das averiguações feitas pela AT depois de o jornal i ter publicado a 26 de Setembro do ano passado dados fiscais de Passos Coelho.

O vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, veio considerar que o relatório levanta “questões sérias” sobre o funcionamento da AT. “Todas estas matérias têm de ser objecto de regulação firme e impedimento de abusos”, afirmou, citado pela Lusa.

No relatório, a IGF considera que há uma “insuficiente sensibilização dos trabalhadores, pela AT, sobre os princípios que norteiam as funções públicas, em especial o da persecução do interesse público e o da transparência, bem como das normas éticas e de conduta indispensáveis à conformação da acção de uma entidade com as competências da AT”. A APIT diz que, “mesmo na eventualidade de alguns comportamentos de um número extremamente reduzido de elementos da AT poderem ser enquadrados como infracções funcionais (e necessariamente penalizáveis), não se pode permitir que uma instituição com a qualidade e responsabilidade da IGF conclua por generalizações perigosas”.

O relatório da IGF, ordenado pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não foi divulgado na íntegra pelo Ministério das Finanças. O PÚBLICO pediu o acesso ao documento, mas o ministério não respondeu, embora as 50 páginas do relatório tenham acabado por chegar ao Parlamento, porque na semana passada foi pedido expressamente à ministra Maria Luís Albuquerque que o documento fosse enviado à Comissão de Orçamento e Finanças quando o inquérito estivesse concluído. Na terça-feira, a IGF só divulgou cinco páginas do relatório, com as “conclusões e recomendações”, o que levou a associação que representa os inspectores do fisco a estranhar a publicação parcial. “A transparência não deve ‘assustar’ nenhuma instituição e é necessário contextualizar algumas das conclusões que apresenta”, referiu a APIT em comunicado.

A IGF só deu a conhecer a última parte do inquérito (o ponto número oito, relativo às conclusões e recomendações), justificando-o com um despacho do secretário de Estado, de segunda-feira. Recorde-se que o Ministério das Finanças alterou, em Dezembro de 2013, a política de divulgação de relatórios da IGF, restringindo a publicação das informações e passando a publicitar apenas esta última parte dos documentos.

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