Administradores de insolvências vão passar a ser nomeados por sorteio

Após dez anos de promessas, vai ser criado um sistema que permitirá distribuir os processos equitativamente pelos administradores que acompanham empresas e famílias em dificuldades.

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Entre Janeiro e Agosto deste ano, dez administradores tinham em mãos 20% dos processos de insolvência e de recuperação Nuno Alexandre Mendes

Jorge Calvete e Francisco Barreirinhas são administradores de insolvência. O primeiro tem em mãos 250 processos desde o início do ano. O segundo apenas três. O desequilíbrio nas nomeações destes profissionais que acompanham milhares de empresas e famílias em dificuldades financeiras está por resolver desde 2004 – ano em que foi anunciada a criação de um sistema de escolha aleatório e equitativo. Dez anos depois, e apesar de a decisão não ser consensual, vai finalmente nascer a plataforma que cumprirá a promessa.

O processo está a ser liderado pela Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ), criada em 2013 para fiscalizar a actividade dos administradores de insolvência e dos agentes de execução. Contactada pelo PÚBLICO, a CAAJ confirmou que o sistema está em preparação, adiantando que “o programa informático está pronto, estando em curso as consultas necessárias à contratualização do seu alojamento”. A comissão, presidida por Hugo Lourenço, adiantou que “a apresentação aos interessados terá lugar muito em breve”.

Na prática, vai tratar-se de uma plataforma informática a que os juízes terão acesso para escolher qual dos cerca de 280 administradores de insolvência que existem em Portugal serão destacados para os processos. De acordo com a CAAJ, vai permitir “registar as nomeações e efectuar o sorteio dos processos em cada uma das 23 comarcas da nova organização judicial”. Cada nomeação ficará registada no sistema e o algoritmo usado para sortear os processos terá em conta esse registo, explicou a comissão.

A aleatoriedade e equidade nas nomeações é uma bandeira que a associação dos administradores de insolvência tem defendido nos últimos anos. Até porque foi prometida ainda em 2004, constando nos estatutos destes profissionais desde então. Na lei 32/2004, de 22 de Julho, estabelecia-se que “a nomeação a efectuar pelo juiz processa-se por meio de sistema informático que assegure a aleatoriedade da escolha e a distribuição em idêntico número dos administradores de insolvência nos processos”.

Deixava, no entanto, margem para que o juiz tivesse em conta a necessidade de conhecimentos e competências especiais para acompanhar determinados casos e, com base na remissão para o código das insolvências, a possibilidade de o administrador poder ser indicado pelos devedores ou pelos credores.

Demasiadas excepções
O problema, diz o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ), é que “a excepção tornou-se a regra, existindo hoje uma disparidade muito significativa no número de processos” atribuído a cada profissional. Inácio Peres considera, por isso, muito positiva a criação deste sistema, que a CAAJ tinha indicado “que estaria pronto a 1 de Outubro [hoje]”. Uma data que a comissão, porém, não confirmou.

As estatísticas da APAJ falam por si: entre Janeiro e Agosto deste ano, dez administradores tinham em mãos 20% dos processos de insolvência e de recuperação – estes últimos, uma alternativa às falências judiciais criada em 2012, são designados por Processos Especiais de Revitalização (PER). E há quase 50 profissionais que têm menos de cinco processos em mãos. Só no primeiro semestre, houve mais de dez mil insolvências (de empresas e famílias) e PER.

Para a associação, a nova plataforma também poderá beneficiar os insolventes. “Por mais boa vontade e organização que tenham, é difícil a um administrador com tantos processos ser célere, sobretudo em processos que têm natureza urgente como estes”, defende o presidente da APAJ. Além disso, Inácio Peres entende que o sistema irá dar “mais transparência” aos processos, visto que nas indicações, seja por parte do devedor ou do credor, “podem colocar-se questões de imparcialidade”. A associação não quer pôr de lado a possibilidade de os juízes seguirem estas indicações, mas considera que essa decisão deve acontecer “em casos excepcionais”.

Mais nomeados criticam
Nem todos têm, porém, o mesmo entendimento. Jorge Calvete, o administrador de insolvência que mais processos tem em mãos (251 só este ano entre falências judiciais e PER) é peremptório: “se todos forem tratados de igual forma, deixarei de ser administrador de insolvência nesse dia”. Numa analogia ao mundo do futebol, afirma que “uns marcam e outros não”, justificando a disparidade nas nomeações com “a dedicação, o empenho e as competências de cada um”, para além da estrutura que montaram para dar resposta aos casos.

Calvete, que tem acompanhado alguns dos mais mediáticos processos do país (os supermercados Alisuper, a fábrica de cerveja Cintra ou o Estaleiro Naval do Mondego, por exemplo), explica que “em 90% dos casos tem sido nomeado pelos devedores e credores”. E acredita que o novo sistema “não vai correr bem”, antevendo um acumular de pedidos de substituição, com consequentes atrasos nos casos, porque nem todos os nomeados quererão ou conseguirão acompanhar os processos. 

Francisco Areias Duarte, segundo na lista dos mais nomeados (com 221 processos) partilha desta opinião. “Numa democracia evoluída, os mais escolhidos vem ser, a priori, os melhores. É porque devem ter algum valor”, diz. O administrador de insolvência, que tem uma estrutura de dez pessoas a trabalhar nos casos, teme agora pelas consequências da criação desta plataforma. “Se tiver menos processos, é óbvio que vou ter de despedir pessoas”.

A própria CAAJ admite que a alteração no método das nomeações “poderá causar problemas no decurso da transição (na medida em que algumas estruturas se revelarão sobredimensionadas para o número de processos sorteados e outras subdimensionadas”. Ainda assim, não recua na intenção. É que, no extremo oposto de administradores de insolvência como Jorge Calvete e Francisco Areis Duarte, estão profissionais como Francisco Barreirinhas, que foi nomeado para apenas três casos desde o início do ano. “Agora ficamos todos em pé de igualdade”, remata.

O PÚBLICO questionou o Ministério da Justiça sobre o tema, mas não obteve resposta a todas as questões – nomeadamente ao pedido de confirmação sobre o arranque do novo sistema. A tutela de Paula Teixeira da Cruz referiu apenas que, “considerando que este estatuto conta com pouco mais de um ano de vigência, afigura-se ainda prematuro retirar conclusões sobre o novo regime de nomeação dos administradores judiciais. Não obstante, pela importância que esta temática reveste, será uma das questões que o Ministério da Justiça irá avaliar”.

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