Galp obrigada a revelar contratos para Estado avaliar ganhos com o gás natural

As novas regras europeias permitem à ERSE exigir acesso aos contratos de aprovisionamento de gás natural sobre os quais a petrolífera recusa pagar taxa de 150 milhões.

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O presidente da Galp, Carlos Gomes da Silva, já disse que a perfuração no Alentejo só poderá ocorrer em 2017 Ricardo Campos/Arquivo

Há três anos que o Governo anda a pedir à Galp os contratos de aprovisionamento de gás natural celebrados com a Argélia e a Nigéria e obtém sempre a mesma resposta negativa. O executivo quer saber quanto é que a empresa ganhou com a revenda de gás natural por via dos contratos que assinou quando detinha a concessão pública de importação. Mas a empresa recusou-se sempre a esclarecer, justificando essa acção com a confidencialidade do negócio. Agora, há novos desenvolvimentos, com o regulador (a ERSE) a juntar-se ao Governo, tendo como apoio um novo quadro legal a nível europeu.

Com a entrada em vigor das novas regras, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) passou a ter o poder de exigir o acesso a estes contratos. A ERSE “já requereu toda a informação” e a empresa arrisca a “abertura de um processo de contra-ordenação” se não cumprir, confirmou ao PÚBLICO fonte oficial do regulador.

Em causa estão os contratos que, em 2015, motivaram a imposição à Galp de uma taxa extraordinária de 150 milhões de euros (que a empresa recusa pagar), com o objectivo de fazer baixar os preços do gás natural.

O Governo anterior estimou que, entre 2006 e 2012, a Galp obteve mais-valias “de cerca de 300 milhões de euros, no mínimo”, com a revenda do gás da Nigéria e da Argélia aos mercados asiáticos, que nunca foram partilhadas com os consumidores portugueses. Por isso avançou com uma contribuição de 50 milhões de euros por ano (até 2017) destinada a baixar as tarifas. Porém, o valor preciso dos ganhos da Galp não chegou a ser determinado, porque o executivo de Passos Coelho não conseguiu aceder aos contratos.

Agora, ao abrigo do novo regulamento europeu destinado a assegurar a transparência dos mercados grossistas de energia, a ERSE diz que já requereu à Galp toda a informação relativa aos contratos de aprovisionamento, “incluindo os seus termos completos, adendas e alterações em vigor”, disse fonte oficial do regulador.

Isto porque o regulamento (conhecido por Remit) definiu que, a partir de 7 de Abril, os contratos grossistas de electricidade e gás natural passam “a ser obrigatoriamente reportados para efeitos de supervisão”. A ERSE, que diz estar a aguardar que a Galp “cumpra com esta obrigação de reporte”, revelou também que, na passada segunda-feira, recebeu “um pedido formal” do Secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, para que lhe “disponibilizasse os contratos de abastecimento de gás natural de longo prazo”. O PÚBLICO contactou a Galp, mas não foi possível obter um comentário.

Até à data, a empresa tem-se resguardado na confidencialidade dos contratos com a argelina Sonatrach e a nigeriana NLGN para rejeitar cedê-los (segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO, a última recusa ocorreu em Maio), mas agora a tutela tem o suporte dos novos regulamentos europeus, que têm força de lei.

O Governo de António Costa não é o primeiro a indagar sobre o paradeiro destes contratos assinados quando a Galp actuava em nome do Estado português porque tinha a concessão do serviço público de importação, transporte, armazenagem e fornecimento de gás natural. O primeiro, com a Sonatrach, data de 1997, quatro anos depois de a antiga Transgás (que então era pública) ter assinado o contrato de concessão.

De facto, quando o ex-ministro e o ex-secretário de Estado da Energia, Jorge Moreira da Silva e Artur Trindade, respectivamente, quiseram determinar o valor dos ganhos que, no seu entender, a empresa deveria partilhar com os consumidores, viram-se confrontados com o facto de os documentos não estarem depositados nem no Ministério da Economia, nem na Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), apesar de serem contratos que vinculavam o Estado português, enquanto concedente.

Seguiu-se o primeiro pedido à Galp, em Outubro de 2014, e a primeira recusa. O segundo pedido, em Julho de 2015, não teve melhor desfecho, porém a CESE do gás avançaria mesmo assim. Estes contratos – chamados take or pay porque obrigam a comprar uma quantidade pré-determinada de gás, mesmo que as necessidades de consumo sejam inferiores – vieram abrir mais uma frente de batalha jurídica com a empresa, já que, à semelhança do que fez com a CESE dos activos de distribuição e refinaria, a Galp recusou-se a pagar e pôs o caso em tribunal. Ainda assim, os preços do gás desceram no ano passado e neste, em parte porque a ERSE utilizou um valor de 66 milhões de euros que tinha cativado à companhia para reduzir as tarifas.

Em 2006, quando houve a possibilidade de plasmar na lei um mecanismo de partilha de ganhos entre a Galp e os consumidores, o Governo de José Sócrates – que tinha Manuel Pinho na pasta da Economia – impediu que isso acontecesse. Na realidade, esse modelo de partilha de 50% dos ganhos que a Galp viesse a ter com a venda a terceiros (depois de cobertas as necessidades do mercado português) chegou a estar aprovado, no Verão de 2006, sob a forma de regulamento da ERSE, mas o Governo nunca permitiu que entrasse em vigor.

Com a transposição, no início desse ano, das directivas que obrigaram à revisão do sistema nacional de gás natural (separando-se as actividades de transporte, distribuição e comercialização), foi necessário alterar o contrato de concessão da Transgás. Um decreto-lei publicado em Julho (já depois do regulamento da ERSE estar em consulta pública) definiu o modelo de reestruturação e liberalização do sector do gás, retirando as actividades de transporte à Galp e o monopólio da comercialização às suas distribuidoras. Porém, garantiu à empresa o “direito à reposição do equilíbrio económico e financeiro da concessão”, ou seja, o direito a ser compensada através das tarifas, e manteve-a como titular dos contratos take or pay.

Finalmente, uma resolução do Conselho de Ministros, de Agosto de 2006, definiu as condições de modificação do contrato entre o Estado e a Transgás, estabelecendo que a Galp (que nesse mesmo ano entrou em bolsa) continuaria a exercer a actividade de aprovisionamento de gás natural, embora com liberdade para “vender as quantidades disponíveis no âmbito da sua actividade de comercialização de gás natural em regime de mercado livre”. Ou seja, a empresa poderia fazer o que entendesse com o excedente de gás natural – daí que tenha desenvolvido a actividade de trading, que se converteu numa importante fonte de receita -, mas o risco das obrigações de consumo mínimo continuou a ser transferido para os consumidores.

Contudo, quando ocorreu esta negociação com a Galp, o Governo terá tido que avaliar todos os activos associados à concessão – entre eles, os contratos take or pay. Daí a estranheza de que nem esses contratos, nem as respectivas avaliações, estejam, à data de hoje, nos arquivos do Ministério da Economia, motivando os pedidos de acesso a cópias a que a Galp tem conseguido, pelo menos até agora, esquivar-se com sucesso.

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