Francisco Louçã e o Pai Natal

A questão é: quem nos emprestaria dinheiro depois do calote?

Para todos os que acreditam que a reestruturação da dívida é uma loucura nos moldes em que ela tem vindo a ser discutida, o Natal chegou mais cedo pelas mãos de Francisco Louçã, Ricardo Cabral, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos.

A prenda no sapatinho – pela qual eu publicamente lhes agradeço – chama-se Um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa e é, sem dúvida, um brilhante esforço para nos mostrar quão lunático e insustentável é um programa de reestruturação da dívida portuguesa decidido a partir de Lisboa. Com um mérito acrescido: este maravilhoso documento irá provocar a implosão do célebre albergue económico-político conhecido como "Manifesto dos 74", já que a concretização de vagos desejos num programa muito prático fará com que boa parte daqueles 74 subscritores recuse enfiar-se neste navio felliniano.

O programa de reestruturação de Louçã et al. tem duas linhas mestras. Em primeiro lugar, propõe pontapear o pagamento das dívidas do Estado para o período 2045-2054, reduzindo os juros dessa dívida para uns generosos 1%. Em segundo lugar, aposta numa “resolução bancária sistémica” para “evitar o colapso simultâneo de toda a banca nacional”. É sempre giro defender a implementação de um plano que admite, logo à partida, existir o perigo de todo o sistema bancário entrar em colapso, mas em compensação teríamos a possibilidade de nacionalizar a banca de uma ponta à outra, correr com os actuais accionistas e afinfar um corte de 34% nos depósitos superiores a 100 mil euros, esses ricalhaços. É certo que receberiam acções do banco em troca. Mas imagine que o caro leitor era funcionário de uma empresa que levava um daqueles cortes de 34% na conta bancária e ficava sem liquidez no fim do mês – você não se importaria de receber o seu ordenado em acções, pois não? E pagar a escola dos miúdos em acções? A bicazinha matinal em acções? Tudo em acções.

Ou, então, imagine que eu sou o senhor Vintém e tenho 80 anos. Subscrevi uns Certificados de Aforro com as minhas poupanças, porque nos CTT me garantiram que era a coisa mais segura que havia. E eis que Francisco Louçã chega ao pé de mim e diz: “Lamento, sô Vintém, é preciso reestruturar a dívida. O senhor vai ter de esperar mais uns anitos para receber o seu dinheiro, tenha lá paciência.” “Quanto anitos?”, pergunta o senhor Vintém. “Isso ainda está em estudo, mas, na pior das hipóteses, em 2045.” “Ó sô Louçã, mas em 2045 eu vou ter 111 anos. Se calhar já faleci”, constata o senhor Vintém. “No estado em que se encontra o sistema nacional de saúde, não me espantava nada”, profetiza Francisco Louçã.

Este é um programa muito bem visto. Não há cá haircut. Nós pagamos a dívida toda. Só que pagamos a dívida daqui a 30 ou 40 anos, quando os credores já estiverem mortos. E, claro: estando a maior parte da dívida nacional em mãos portuguesas, isto significa que junto dos pequenos aforradores, da Caixa Geral de Aposentações ou da Segurança Social, o Estado teria que financiar com dívida a reestruturação da dívida. Não se tendo corrigido os problemas estruturais do país, mas apenas diminuído os encargos com juros, tudo indica que o dinheiro dos impostos continuaria a ser insuficiente para fazer face às necessidades do Estado, seja nas transferências para instituições deficitárias, seja no financiamento do investimento público. A questão é: quem nos emprestaria dinheiro depois do calote? Só mesmo o Pai Natal, que Francisco Louçã conhece tão bem.

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