Eurozona proibida

No ano de 1937, em plena Grande Depressão e antes de escrever o famoso As Vinhas da Ira, John Steinbeck escreveu Ratos e Homens. Trata-se de um livro no qual os personagens se sentem muitas vezes impotentes face às circunstâncias económicas e sociais que os impedem de concretizar os seus sonhos e onde se manifesta a luta com a solidão, o valor da solidariedade e a ânsia por uma vida digna.

Tal como em 1937 os personagens de Steinbeck eram impelidos para a impotência da sua acção pelo contexto da grande depressão, também na Eurozona de 2013 a esperança foi-nos proibida. E essa proibição resulta não das condições materiais (económicas e financeiras de partida nos nossos países) mas sim das ideias que nos proíbem a acção. Curiosamente, as mesmas ideias que nos proíbem a esperança não são produto de uma crença qualquer mas sim da própria ciência económica.

Sejamos claros, as ciências não são infalíveis, pois quem pratica ciência sabe sempre que o erro espreita na investigação, mas as pessoas em geral encontram conforto em imaginar que na medicina, no direito, nas engenharias, nas ciências sociais (onde incluo a economia) não se falha.

Como normalmente acreditamos na infalibilidade da ciência, esta torna-se uma arma de combate político extremamente eficaz – que político deitaria fora a oportunidade de utilizar um argumento infalível para fazer valer a sua posição e os seus objectivos eleitorais? Foi isso que aconteceu com as análises de Keneth Rogoff e Carmen Reinhart e com os adeptos da política de austeridade na Eurozona.

Mas pode a Ciência Económica destruir o desejo de uma vida digna? Que a ciência pode destruir os sonhos matando através das armas baseadas no seu saber é algo que sempre aconteceu – basta pensar no temor global que causa a retórica de guerra da Coreia do Norte e das suas armas nucleares. Mas que a ciência, apenas fazendo uso das suas ideias, possa destruir os sonhos e desejos é algo menos esperado. No entanto, foi isso mesmo que se passou connosco nestes últimos três anos.

Tal como os terrenos de Chernobyl continuam impregnados de radiações, também as análises de decisores e comentadores da Eurozona continuam contaminadas pelo desejo de acreditar que aquilo que foi dito por Rogoff e Reinhart (e que lhes foi útil) poderá continuar a fazer lei, mesmo estando errado.

O que Rogoff e Reinhart concluíram – mas que se veio a constatar que partia de dados errados – era que diferentes países com diferentes políticas fiscais obteriam diferentes níveis de dívida e que a dívida alta levava obrigatoriamente ao crescimento baixo.

Tal afirmação tornou-se uma verdade incontestável – pois não falavam os dados por si próprios? E tendo surgido no momento em que diferentes correntes políticas em diferentes países abraçavam a ideia da austeridade como ideologia política, ofereceu-lhes o argumento perfeito para publicamente assegurarem a sua vitória incontestável: só havia um caminho e esse era marcado pela ideia de que para crescer tinha que se cortar gastos, reduzir défices até que a actividade económica regressasse.

No entanto, como se descobriu este mês, a ciência estava errada e os autores (embora nos seus trabalhos académicos nunca tivessem afirmado directamente que “dívida alta = baixo crescimento”) haviam repetidamente actuado nas suas intervenções sobre política económica como se existisse causalidade na análise. E uma parte substancial dos actores políticos europeus simplesmente adorou poder repetir tal mantra, porque ela ia de encontro às suas crenças, ideologias e práticas políticas.

Mas, tudo bem, este é um artigo sobre a Eurozona, etc., pode ser interessante para algumas pessoas falarem disto, mas o que interessam Rogoff e Reihardt, o excel errado, as séries "manipuladas" e as suas análises a Portugal? A resposta é, porventura, muitíssimo. Mas para o compreender temos de regressar a 2010, criticá-los pela contribuição que tiveram para o desastre do resgate português mas também agradecer-lhes, porque o que escreveram nos oferece uma outra opção de saída para os nossos problemas actuais.   

Em Dezembro de 2010, alguns meses antes do resgate de Portugal, Rogoff publicava um artigo de opinião traduzido para várias línguas intitulado O Euro a Meio da Crise. Nesse artigo, Rogoff declarava que “há mais resgates a caminho, Portugal está no topo da lista. (…) os níveis de dívida portuguesa são ainda muito problemáticos face aos comparativos históricos (baseado na minha pesquisa com Carmen Reinhart). Com um cenário de recessão ou crescimento muito fraco e orçamentos de austeridade nos anos vindouros, Portugal irá provavelmente procurar ajuda mais cedo que tarde.”

Ora, um economista de renome, que se havia distinguido profissionalmente à frente do FMI e oriundo de Harvard, que havia pela sua opinião baseada numa pesquisa – lembrem-se, errada – legitimado práticas políticas de austeridade, possuía uma credibilidade e capital social tremendos, as suas palavras em 2010 eram vistas pelos mercados e, consequentemente, pelos media e pelas populações, como previsões para lá de qualquer do erro. Este foi o contributo de Rogoff para o desastre do resgate português, ajudou a que a profecia do resgate se tornasse inevitável fruto das suas visões avalizadas, como as difundidas em artigos de opinião como aquele, e reforçadas pelos políticos europeus.

O problema com Rogoff foi, ao mesmo tempo, científico e político. É certo que temos o erro científico mas, por outro lado, temos a sua opinião pessoal sobre os resultados do seu trabalho como estando para além de qualquer dúvida.

Tal, reforçou as certezas dos que antes de conhecerem a sua pesquisa já acreditavam no ideal da austeridade e legitimou o banir da opinião pública e a proibição tácita – pela sua irrelevância científica – de todas as visões científicas produtoras de outras opções económicas e políticas na Eurozona.

Como costuma lembrar João Caraça, quando a ciência deixa o seu domínio e entra na esfera do político (e dos media) perde o seu carácter de interrogação sobre o mundo e adquire o de uma afirmação, como se fosse uma verdade absoluta. 

Mas, pode-se também dizer que Rogoff foi vítima da sua própria retórica, um pouco como Fausto que vendeu a sua alma ao diabo (só que neste caso foi vendida aos decisores políticos e financeiros que eram já fiéis da austeridade). Isto, porque Rogoff não possuía obrigatoriamente as mesmas visões fundamentalistas dos políticos que usavam as suas ideias.

Pois, no mesmo artigo onde dissertava sobre o resgate de Portugal, Rogoff sugeria que o que havia a fazer com a dívida era perdoá-la, uma vez que “(Portugal, Irlanda, Grécia, e Espanha) estão face a 'uma década perdida' da mesma maneira que a América Latina a viveu nos anos oitenta. (…) O renascimento e a dinâmica de crescimento só começou depois de 1987 e do 'Plano Brady' com o seu perdão massivo da dívida. O cenário de uma reestruturação similar é sem dúvida também o mais plausível para a Europa.“

E Rogoff não está(va) sozinho, Mark Blyth, George Soros e, também, Carmen Reinhart, dão pontos de partida semelhantes: só podemos resolver os nossos problemas taxando-os.

Mas, atenção, taxando onde o problema está e não onde os salários e reformas das pessoas estão, ou onde os serviços públicos necessários estão. A resolução está nas taxas inteligentes e não na austeridade estúpida.

Às opções que temos pela frente, se não quisermos continuar o caminho do precipício austeritário, aplica-se a mesma máxima de Churchill sobre a democracia: as opções não são boas, mas são as melhores quando comparadas com todas as outras.

Para além de actualizar o 'Plano Brady' há outras opções à disposição para convencer os diferentes actores políticos a pensarem de modo economicamente diferente a resolução da Crise Europeia e o desastre do resgate português.

Por exemplo, temos os instrumentos de “Repressão Financeira” sugeridos por Blyth e Reinhart, ou seja, os Estados encorajarem, através de controlo sobre os capitais, imposição de tectos nas taxas de juro e outros mecanismos, para que os bancos, fundos de pensões e outros detentores de dívida de longo prazo a mantenham nas suas mãos.

A repressão financeira é basicamente uma taxa sobre os detentores de dívida e que funciona bem quando o próprio sistema bancário nacional está dependente da ajuda do Estado – como é o caso actual em Portugal e na Europa toda. Aliás, relembra Blyth, foi assim que similar problema foi resolvido nos EUA e Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial.

Há igualmente que quebrar o tabu e assumir que temos de deixar os bancos nacionais em má situação falhar, passar os activos de qualidade (depósitos e outros) para novos bancos, abandonar os de má qualidade nos bancos falidos e introduzir os controlos de capital que pudermos – mas definitivamente não continuar a pagar os seus problemas que são endógenos e não sistémicos.

E, também, prosseguir com uma política expansionista seguida de uma política de consolidação fiscal que distribua por todos as contribuições justas para o bem comum (incluindo nessas, por exemplo, as contribuições das empresas detidas por portugueses que gerem os seus impostos sobre os lucros de forma criativa através de empresas sediadas na Holanda, Malta e Irlanda).

Uma política que também, por outro lado, se centre nos apoios às famílias de médios e baixos rendimentos. Tornando-nos, assim, numa sociedade mais saudável e com rendimento distribuído de forma mais justa pelos seus dez milhões de habitantes.

Se quisermos ir ainda mais longe no quebrar de tabus, temos os instrumentos necessários para pesquisar os paraísos fiscais onde há muito dinheiro que não pode regressar legalmente a Portugal. E há igualmente áreas cinzentas absurdas, como o muito dinheiro que está hoje em outros países na Eurozona do norte – sim há liberdade de movimento de capitais, mas se as dívidas na Eurozona continuarem nacionais os depósitos de cidadãos da Eurozona do sul feitos em outros países da Eurozona do norte têm de ser repensados fiscalmente de forma a não beneficiarem o norte em detrimento do sul da Eurozona.

E convenhamos, estar sempre a taxar os salários e reformas é fiscalmente aborrecido, para além de injusto, pois como em 2009 não tivemos um crash bolsista, como o de 1929, os rendimentos financeiros provenientes dos mercados para os particulares e empresas não contribuíram nos últimos três anos grande coisa para o que devia ser a responsabilidade equitativa de todos.

Por fim, no mundo das opções temos ainda as tomadas colegialmente por todos ou quase todos (se não convidarmos a Alemanha a juntar-se a nós) como as protagonizadas por George Soros. Ou seja, os problemas estruturais do Euro só podem ser resolvidos colectivamente, pois não se pode diminuir o peso da dívida através do diminuir o défice dos orçamentos nacionais – quanto mais se corta nos orçamentos, menos procura há, menos riqueza, logo mais dívida.

Daí que para Soros a opção colegial para abandonar a crise seja a introdução de Eurobonds – a emissão conjunta de dívida pelos 17 ou 16 países do Euro, pois talvez tenhamos de prescindir dos alemães nesta parte da construção europeia.

No entanto, os Eurobonds não serão uma panaceia, nem sozinhos serão capazes de assegurar a recuperação económica, pelo que estímulos fiscais e monetários serão necessários. No entanto, terá de haver também mudanças estruturais na Eurozona do sul, pois os Eurobonds não eliminarão as divergências de competitividade, pelo que só com uma união bancária poderá haver acesso ao crédito em igualdade entre o norte e o sul da Eurozona.

É verdade que a Alemanha é fortemente contrária aos Eurobonds, mas também não pode impedir os restantes países de se juntarem e emitirem-nos. Ou seja, a Alemanha também pode ter de abandonar o Euro – o que aliás resolveria o problema da Eurozona do Sul criando uma desvalorização da nossa moeda e aumentando a competitividade do resto da Europa.

Como vemos, seja a partir da periferia (Portugal) ou do centro (Alemanha) da União Europeia, nesta Primavera a ciência económica derrotou a intolerância económica política, pois roubou-lhe em definitivo o poder de nos fazer aceitar que só há uma verdade económica. No fim de contas fez renascer o desejo e a possibilidade de voltar a viver uma vida digna na até agora Eurozona proibida.

Gustavo Cardoso é investigador e coordenador do Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE

 

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