Estado deve indemnizar trabalhadores da Air Atlantis, diz tribunal da UE

Em causa está uma decisão do Supremo que validou despedimento de perto de centena de antigos trabalhadores da empresa dissolvida em 1993.

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Daniel Rocha

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu nesta quarta-feira que o Estado português deve indemnizar cerca de uma centena de antigos trabalhadores da Air Atlantis, uma antiga filial da TAP que foi dissolvida há mais de duas décadas. Em causa está a interpretação errada de um conceito previsto numa directiva europeia por parte do Supremo Tribunal de Justiça português.

No acórdão agora proferido, no Luxemburgo, o tribunal europeu sublinha que o Supremo, que em 2009 declarou que o despedimento colectivo não sofria de qualquer ilicitude, estava obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial sobre o conceito de "transferência de estabelecimento" e não o fez.

Na sequência da decisão do Supremo, que não era susceptível de recurso, os trabalhadores intentaram uma acção de responsabilidade extracontratual contra o Estado, alegando que o acórdão daquela instância superior era ilegal e lhes tinha causado danos, que deveriam ser compensados. Foi no âmbito deste processo intentado nas Varas Cíveis de Lisboa, que o tribunal de justiça foi chamado a pronunciar-se. Foi-lhe pedido que esclarecesse três questões distintas: o conceito de "transferência de estabelecimento" ; se o Supremo estava obrigado a pedir uma clarificação ao TJUE sobre a forma como esse conceito devia ser interpretado e ainda se o direito da União se opõe à legislação portuguesa que exige, como condição prévia à declaração da responsabilidade do Estado, a revogação da decisão danosa, quando essa revogação não é possível.

O acórdão divulgado pelo TJUE esta quarta-feira responde a estas questões, tendo considerado que o caso em análise estava abrangido pelo conceito de "transferência de estabelecimento", logo os trabalhadores não podiam ter sido despedidos. O professor especializado em Direito da UE, Fausto Quadros, realça a importância desta decisão já que é a "a primeira vez que o tribunal de justiça cria condições para responsabilizar o Estado português por um acto dos tribunais, neste caso do Supremo". O especialista nota ainda que esta decisão abre a porta à possibilidade do Estado português ser condenado mesmo sem que haja a revogação prévia do acto ilegal (neste caso a decisão do Supremo), uma exigência da lei portuguesa.

A Air Atlantis (AIA) foi dissolvida em 1993, o que levou ao despedimento colectivo de 97 trabalhadores, tendo a TAP passado a realizar parte dos voos daquela companhia e a utilizar parte do equipamento que a AIA utilizava nas suas actividades, designadamente quatro aviões, bem como equipamento de escritório e outros bens móveis, tendo ainda contratado alguns trabalhadores da extinta companhia.

Em 2009, na sequência de um recurso interposto pelos trabalhadores, o Supremo Tribunal de Justiça observou que, para haver transmissão de estabelecimento, não basta a "simples prossecução" da actividade, sendo ainda necessário que se verifique a conservação da identidade do estabelecimento. O TJUE considerou a interpretação incorrecta, defendendo que apesar da questão da manutenção do nome da companhia ser importante, tal não deve ser analisado isoladamente. Sublinhou, por isso, que só uma análise conjunta de todos os elementos do caso permite chegar a uma conclusão: neste caso que houve de facto uma transferência do negócio para a TAP, que está, por isso, obrigada a manter as relações laborais existentes.

Alguns dos trabalhadores tinham requerido ao Supremo que submetesse ao tribunal europeu um pedido de decisão prejudicial, mas o Supremo entendeu que não existia dúvida relevante na interpretação do direito que implicasse o reenvio. O TJUE considerou que, neste caso, o Supremo  estava obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao tribunal europeu, devido ao facto de haver interpretações diferentes sobre o conceito de "transferência de estabelecimento" nas diversas instâncias nacionais e de este conceito levantar dificuldades de interpretação nos vários Estados-membros.

"O Tribunal de Justiça recorda que, numa situação relativa ao sector dos transportes aéreos, a transferência de equipamento deve ser considerada um elemento essencial para apreciar a existência de uma transferência de estabelecimento na acepção da directiva", lê-se num comunicado do Tribunal. Na mesma nota, sublinha-se que a TAP assumiu ainda "a posição da AIA nos contratos de locação de aviões e os utilizou efectivamente, o que comprova que recebeu elementos indispensáveis à prossecução da actividade anteriormente exercida pela AIA".

Quanto à terceira questão, o tribunal de justiça considera que o facto de a legislação portuguesa exigir, como condição prévia à responsabilização do Estado, a revogação da decisão danosa, pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos, uma vez que as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo são extremamente limitadas. Por isso, sustenta que o direito da UE impede a existência de uma regra desse tipo nas legislações nacionais. 

O acórdão do tribunal de justiça não resolve de forma directa este litígio. Agora caberá ao tribunal cível de Lisboa decidir o processo em conformidade com a decisão do TJUE, que o vincula. Terá, por isso, que ser o tribunal cível de Lisboa a condenar o Estado português a pagar uma indemnização ao trabalhadores da AIA e a determinar o montante concreto dessa indemnização.

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