Especialistas questionam eficácia do "despedimento conciliatório" proposto pelo PS

Os socialistas querem restringir os contratos a termo e criar um mecanismo de cessação do contrato individual mais célere, mas juristas e constitucionalistas duvidam da eficácia das medidas no combate à dualidade do mercado de trabalho.

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Mexidas nos despedimentos arriscam esbarrar no Constitucional, alertam os especialistas Adriano Miranda

O diagnóstico está feito há muito e é unânime. Em Portugal, as empresas usam excessivamente a contratação a termo para contornarem a suposta rigidez da lei laboral. Para resolver o problema, o grupo de economistas liderado por Mário Centeno acredita que se deve restringir os contratos a termo e criar um mecanismo de cessação do contrato individual mais célere. O objectivo é convencer as empresas a recorrer a vínculos permanentes e acabar com o reinado da contratação a termo. Porém, especialistas ouvidos pelo PÚBLICO questionam a eficácia destas medidas. E alertam que o resultado pode ser o inverso, correndo-se o risco de um aumento da informalidade e dos falsos recibos verdes.

No relatório Uma Década para Portugal, os 12 economistas convidados pelo PS propõem que se limite o uso da contratação a prazo apenas à substituição de trabalhadores, bem como a criação de um regime conciliatório de despedimento por razões económicas, para todos os novos contratos. A ideia é criar um modelo semelhante ao alemão, em que o empregador propõe um acordo ao trabalhador, oferecendo-lhe uma compensação mais elevada do que prevê a lei e que ficará isenta de impostos. Em troca, o trabalhador abdica de contestar o despedimento em tribunal.

“Em Portugal temos mais de um milhão de contratações e mais de um milhão de separações por ano, temos uma rotação enorme por via dos contratos a prazo. Precisamos de mais flexibilidade? Não. Precisamos é que essa flexibilidade seja sustentada por razões económicas e não por razões contratuais”, justifica ao PÚBLICO Mário Centeno, garantindo que nada se alterará no conceito de justa causa.

Fora de questão está também qualquer alteração às normas do Código do Trabalho. “Simplesmente vamos fazer uma proposta de um novo procedimento de cessação do posto de trabalho, com um conjunto de passos obrigatórios, com o mesmo tempo de aviso prévio e com tudo o que existe hoje na lei”, adianta.

Sendo assim, a solução proposta é suficiente para alterar as práticas das empresas? Juristas, especialistas em legislação laboral e constitucionalistas consideram que não. Para que isso acontecesse seria preciso ir mais longe ou então tornar efectivo o cumprimento da lei, travando o uso ilegal de contratos a termo, sem alterar o seu âmbito.

Luís Pais Antunes, advogado e antigo secretário de Estado do Emprego, lembra que actualmente já existem rescisões por acordo e mesmo noutras situações há sempre a possibilidade de empregador e trabalhador acordarem a saída. “Isso acontece todos os dias e em todas as empresas. Se a proposta é apenas formalizar o procedimento conciliatório, o impacto prático vai ser muito pequeno”, antecipa.

“A nuance que existe parece ténue mas não é. Dá segurança ao empregador [que tem a garantia de que o processo não vai para tribunal], e mais rendimento ao trabalhador [que recebe uma compensação mais elevada]”, contrapõe Mário Centeno.

Pais Antunes não tem dúvidas de que a ideia, não assumida, que está por detrás da proposta é “alargar os motivos do despedimento individual”. Embora também diga que, no final, “a montanha vai parir um rato”.

Pedro Furtado Martins, professor de direito na Universidade Católica e especialista em legislação laboral, segue a mesma linha de raciocínio. “O que parece estar em causa não é uma nova forma de despedimento, é usar as razões que já existem e prever que o despedimento com base nessas razões possa ser mais rápido.”.

O resultado será, na sua opinião, pouco relevante: “Não se consegue travar a segmentação do mercado de trabalho sem mexer nos despedimentos”. E mesmo o agravamento da TSU paga pelas empresas com maior rotatividade de mão-de-obra - outra medida proposta pelo relatório do PS - pode também não ser eficaz: “As empresas preferem pagar o preço por terem os contratos a prazo e fazerem reflectir isso no salário do que investir em contratos permanentes”, diz.

Luís Gonçalves da Silva, professor na Universidade de Lisboa,também tem dúvidas sobre a eficácia das medidas propostas. “Ou temos um regime mais aberto de cessação - o que vejo com dificuldades face ao artigo 53.º da Constituição da República [que proíbe os despedimentos sem justa causa] e face à jurisprudência constitucional - ou a eliminação dos contratos de trabalho a termo, salvo para a substituição de trabalhadores, como pretende a proposta, não terá aceitação”, alerta.

Contrato a termo substituídos por recibos verdes
O risco é que o feitiço se vire contra o feiticeiro e os contratos a termo sejam substituídos por falsos recibos verdes e por relações de trabalho informais. O alerta é transversal aos juristas que falaram com o PÚBLICO.

Gonçalves da Silva alerta que poderemos assistir a “um aumento do mercado subterrâneo, com a inerente desprotecção do trabalhador e afectação de contribuições fiscais e de segurança social”. Um receio partilhado pelo constitucionalista Jorge Pereira da Silva: “Ao reduzir as possibilidade de celebrar contratos a prazo, as empresas ou sobem para o nível do contrato sem termo ou descem para os contratos de prestação de serviços [recibos verdes]”.

Também António Monteiro Fernandes, antigo secretário de Estado do Emprego e especialista em direito laboral, tem dúvidas. “O abuso dos contratos a termo – que, como bem observa o relatório, acarretou a legalização do despedimento sem justa causa – não depende hoje da lei, mas da efectivação desta”, sublinha.

“A ligação dos contratos a termo a quaisquer necessidades objectivamente temporárias de trabalho, que é necessário concretizar com precisão, está certa e não deve ser mexida”, defende. Reduzir a “apetência dos empresários pelos contratos a termo, é simples. Só há que pôr em prática a penalização em TSU que o ministro Bagão Félix pôs na lei e que nunca passou daí”, sugere o professor. “São medidas dessas que podem abalar a "cultura" do contrato a termo que se instalou”.

Também Jorge Leite, professor jubilado da Universidade de Coimbra, considera  a restrição dos contratos a termo uma medida "injusta", porque “há empresas com necessidades temporárias e que ficam sujeitas ao mesmo regime punitivo”.

Mário Centeno afasta os receios: “O conjunto de incentivos que estamos a montar vai no sentido de uma maior formalização da economia. Eles são suficientemente distribuídos entre empresas e trabalhadores para terem um impacto contrário [que as críticas apontam]”.

Quando aos sectores mais dependentes do trabalho sazonal, lembra que “actualmente na lei portuguesa é possível fazer a cessação de um contrato de trabalho quando a empresa deixa de ter laboração na área em que o trabalhador estava ocupado”. O modelo que está a ser pensado “vai dar mais trabalho às empresas”. “Temos que exigir mais às empresas portuguesas do ponto de vista da gestão. As empresas acomodaram-se ao que é fácil”, critica.

Constituição trava mudanças mais profundas
Embora o economista que liderou o relatório afaste alterações ao conceito de justa causa, Jorge Pereira da Silva nota que mexidas nos  despedimentos têm sempre riscos e o Tribunal Constitucional (TC) “é muito conservador nessa matéria”.

Basta pensar na tentativa de alargar o período experimental em 2009 (quando Vieira da Silva era ministro do Trabalho de um Governo PS), que foi chumbada por 13 a zero, porque punha em causa a garantia do emprego. “Não houve uma única voz no TC que tivesse dito que um período experimental mais longo poderia dar a alguns a possibilidade de terem um contrato sem termo”, lamenta.

Também em 2013, quando confrontado com a eliminação dos critérios de selecção dos trabalhadores em caso de despedimento por extinção de posto de trabalho, o TC chumbou o diploma do actual Governo por considerar que violava a proibição de despedimento sem justa causa.

 “O TC tem sido conservador e exigente no que respeita à determinabilidade da lei. Ou seja, a lei tem de ser precisa para que as consequências da sua aplicação sejam claras para empregadores e trabalhadores”, frisa Pereira da Silva.

Sem conhecer a redacção legislativa das propostas do PS, Pais Antunes não arrisca dizer se há ou não riscos constitucionais. De uma coisa tem a certeza, “o processo tem de ser bem gerido”. É que se o TC dá luz verde à redução do âmbito dos contratos a prazo e chumba as medidas relacionadas com os despedimentos “fica pior a emenda que o soneto”. “Não se resolve a dualidade do mercado de trabalho e empurra-se os trabalhadores para a informalidade”.

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