Equívocos sobre o Tratado com os EUA

Nada garantia que, mesmo tendo-se mantido Vital Moreira como deputado europeu, a presidência da Comissão coubesse a um português e a um socialista.

1. Neste fim de semana, em especial por causa de mais uma sessão na Culturgest, vários observadores privilegiados da nossa política externa lançaram um olhar crítico sobre o modo como Portugal, em particular no Parlamento Europeu (PE), acompanha e pode vir a acompanhar a negociação da Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento (conhecida pela sigla inglesa TTIP). Esse olhar crítico arranca todavia de premissas erradas, decerto imputáveis a um desconhecimento do funcionamento efectivo do PE.

2. Merece reparo a ideia de que, nesta fase, o acompanhamento das negociações do TTIP se faz ao nível parlamentar europeu. Como é óbvio, a negociação decorre essencialmente ao nível da Comissão e do Conselho e, por isso, hão-de ser os governos nacionais – através das suas chancelarias – a seguir de perto o trilho negocial e a fazer valer, em cada momento, a influência e a pressão necessárias para acautelar os seus interesses vitais. Cada governo tem de fazer o seu trabalho de casa e de usar todos os canais diplomáticos de política europeia (e não só…) para “impor” a sua agenda. Os deputados europeus, que terão uma palavra decisiva numa aprovação final de sim ou não, têm aqui um papel relevante, mas ainda discreto. Não se trata, note-se, de desvalorizar o PE, mas de contextualizar o seu lugar na “separação de poderes” existente na União.

Não deixa, aliás, de ser curioso que, quando Portugal negoceia tratados, ninguém pergunte pelo papel de acompanhamento e fiscalização das negociações da Assembleia da República… Mas ao invés, quando a União Europeia o faz, parece haver uma fé quase inabalável no papel determinante que o PE e os deputados do PE podem desempenhar.

3. Reconhecendo o lugar que efectiva e realisticamente o PE pode ter nesta fase negocial, a toada crítica incorre num erro factual: a ideia de que não haverá deputados portugueses na Comissão do Comércio Internacional do PE (designada por INTA). Há, na verdade, dois deputados, um do PSD e outro do PS, ambos suplentes (Fernando Ruas e Silva Pereira). O estatuto de suplente em nada inibe o deputado de ter uma participação plena nos trabalhos da Comissão, intervindo nas reuniões, sendo titular de relatórios e podendo até ter o posto crucial de coordenador do respectivo grupo parlamentar. No caso do PSD, dá-se até o caso de se manter, para aquela Comissão e para aquele assunto, o elemento do “staff” que vinha da legislatura anterior e que é muito importante para conservar o acervo de conhecimento e de rede já adquirido.

Há a este respeito um verdadeiro desconhecimento do modo como funciona o PE. Cada deputado é titular em duas comissões, numa como membro efectivo e noutra como membro suplente. Ora, basta pensar que os 21 deputados portugueses se repartem por vários partidos nacionais e europeus, para perceber que é virtualmente impossível ter um membro efectivo por Comissão. E que a forma de maximizar a representação do interesse nacional, na escolha das comissões, é jogar com essa possibilidade de ser residente em duas comissões. A entrada nas comissões, note-se, não se faz por mero voluntarismo nacional, não é imediata nem automática. Decorre, isso sim, de um complexo mecanismo de repartição e distribuição entre partidos europeus e delegações nacionais, que toma em conta a dimensão de cada qual e que obriga a um refinado jogo de influência e de definição de prioridades. Nem sempre se conseguem os postos ou os lugares que se almejam à partida e é necessário ter uma visão de como pode ser maximizada a realização das prioridades políticas. O óptimo é inimigo do bom.

4. Ao que se junta que, para acompanhar um assunto, não é estritamente necessário ser membro da respectiva Comissão. Se assim fosse, partidos como o Partido Comunista ou o Bloco de Esquerda (com três e um deputados, respectivamente) não acompanhariam grande parte dos dossiês. E pela experiência anterior, será injusto dizer que estes partidos não cobriram, com a sua visão própria, a parte de leão das matérias europeias.

No que ao PSD diz respeito – e agora também ao PS –, acresce ainda que dispõe de um deputado na direcção do grupo parlamentar (vice-presidente), que é uma estrutura de composição muito restrita (não proporcional às nacionalidades) e de peso político real no PE. A esse nível, há um importante acesso antecipado à informação; é aí que são tomadas as decisões estratégicas de cada grupo e que são seguidos, item por item, os dossiês mais relevantes (entre os quais se mantém o TTIP). O PSD, de resto, terá (como já tinha) um membro na delegação interparlamentar para os Estados Unidos, que também acompanhará de perto os desenvolvimentos da parceria. E terá ainda a presidência do think tank do PPE, que congrega uma rede das mais amplas do mundo e que dedica desde sempre grande parte da sua actividade à parceria transatlântica (estando intimamente integrado com thinks tanks dos EUA e com as principais universidades norte-americanas). Tudo o que garante que o assunto – de resto, eleito como uma das cinco prioridades europeias na campanha eleitoral da coligação PSD/CDS – não será menosprezado.

5. Há, sem dúvida, uma desvantagem relativamente à legislatura anterior, em que o presidente da INTA era um português, Vital Moreira. Para lá da sua alta qualificação e competência, o facto de ser presidente da dita Comissão dava-lhe um acesso privilegiado à informação e ao acompanhamento das negociações. Já aqui, neste espaço, se fez o elogio do seu trabalho e do activo que ele significou para Portugal e para a Europa. E parece ser essa desvantagem que em grande parte explica as críticas surgidas. Mas, mais uma vez, nada garantia que, mesmo tendo-se mantido Vital Moreira como deputado europeu, a presidência dessa Comissão coubesse a um português e a um socialista. E, em bom rigor, o activo de conhecimento e de prestígio que ele acumulou continua aí. Oxalá o saibamos aproveitar.

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