Egina

Se uma sociedade permite a escravatura, como é que não há de permitir outros abortos jurídicos contra a dignidade humana?

Diógenes Laércio, um historiador do início do terceiro século, conta que Platão (428-347 aC), em consequência de uma aventura infeliz na Sicília, terá sido posto à venda no mercado de escravos de Egina, cerca de 387 aC.

Valeu-lhe nessa situação difícil Aniceris (fl. séc. IV aC). Este filósofo epicurista, que se encontrava lá de passagem no seu regresso dos Jogos Olímpicos, reconheceu-o e, pagando as vinte minas pedidas, pô-lo em liberdade. Platão terá tentado repagar monetariamente este favor ao colega: tendo recolhido quantia equivalente de entre os seus amigos atenienses tentou entregá-la a Aniceris, mas este sempre a recusou, insistindo que lhe era bastante ficar com o prazer e honra de ter podido ajudar outro amante da verdade e da sabedoria. Diz a lenda que Platão usou depois as vinte minas para comprar o jardim onde veio a estabelecer a Academia. E as más-línguas acrescentam que se sentiu de tal modo agravado de não ter podido saldar a sua dívida para com Aniceris que, apesar de fazer liberalmente referência nas suas obras a qualquer pardal que tivesse encontrado na ágora, nunca nelas mencionou o seu benfeitor.

Egina era um importante mercado de escravos da antiguidade por onde, para além de Platão, passaram muitos outros nomes famosos como Diógenes o Cínico (c.412-323 aC) que, depois de lá ter sido vendido, morreu escravo em Coríntio. O modelo de negócio envolvia as seguintes etapas: primeiro, piratas e salteadores capturavam viajantes, mercadores e pescadores em terra e no mar; estes eram depois postos à venda, diretamente ou através de agentes, na praça; no entanto, para melhor capturar o excedente do consumidor, os vendedores tentavam fazer discriminação de preço: aos capturados mais famosos e ricos era-lhes dada a possibilidade de enviarem mensageiros a contar o seu infortúnio a familiares & amigos; a assunção era que estes estariam dispostos a pagar mais que os outros compradores; quando os familiares & amigos chegavam à ilha redimiam o cativo contra dinheiro; se não chegavam dentro de um prazo razoável o cativo era licitado na praça pública.

No entanto, acontecia frequentemente familiares & amigos não trazerem dinheiro bastante para o preço. Isto deu azo ao desenvolvimento de outra linha de negócio: a concessão de crédito. Na praça havia sempre banqueiros dispostos a facilitar a quantia em falta. Os banqueiros deviam estar cartelizados, a avaliar pelas condições praticadas: a quantia em dívida duplicava ao fim de um mês, e os credores tinham discricionariedade na execução da garantia na pessoa do antigo cativo, familiares & amigos, tomando posse deles. Como? Através dos tribunais? Claro que não. Através dos piratas.

Que o negócio de escravos é contra a lei natural sabiam-no os Gregos. Mas que dizer sobre o negócio financeiro? Mesmo tendo em conta a possível cartelização, pode-se por a questão de se a taxa de juro praticada não seria excessiva. Poder-se-ia tentar justificá-la com o risco do negócio: que a taxa deve refletir o risco de crédito é sabedoria antiga. Mas o risco era limitado tendo em conta que os credores obtinham excelentes garantias pessoais: ficavam com o controlo de facto sobre as pessoas do liberto, familiares & amigos até receberem notícia de um correspondente em Atenas, Coríntio ou Tebas de que a quantia em falta tinha sido depositada, e que eles se podiam considerar ressarcidos. Se não é o risco que explica a exorbitância da taxa, o que será? Chamar-lhe assimetria de mercado seria um eufemismo. O que de facto é, é a exploração nua e crua de uma situação de infortúnio e necessidade absoluta. Exploração que os Gregos sabiam ser injusta e consideravam execrável. Então porque é que a permitiam? Pela mesmíssima razão que permitiam a escravatura.

A justiça é um estilo de vida, e a vida é una. Não é fácil ser ladrão e não ser mentiroso, e ser mentiroso e não ser infiel à mulher. Se uma sociedade permite a escravatura, como é que não há de permitir outros abortos jurídicos contra a dignidade humana?

Professor de Finanças, AESE

Sugerir correcção
Comentar