“A energia, só por si, justificaria este acordo” com os Estados Unidos

Vital Moreira acompanha pelo Parlamento Europeu as negociações da nova Parceria Transatlântica para o Investimento e o Comércio. É a oportunidade para devolver aos EUA e à Europa a sua influência sobre a economia mundial.

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Vital Moreira sublinha que acordo não pode deixar de fora o sector financeiro João Cordeiro

Vital Moreira, eurodeputado socialista, preside à Comissão para o Comércio Internacional do Parlamento Europeu, numa altura em que a União Europeia e os Estados Unidos estão a negociar uma Parceria Transatlântica para o investimento e o comércio de uma ambição nunca dantes vista. Acompanha directamente as negociações. Considera que um acordo pode mudar as regras do jogo do comércio mundial. Reconhece as dificuldades, mas lembra que se trata de uma oportunidade que seria um desastre falhar. Esteve no último seminário diplomático (na semana passada) para explicar a pareceria, muito pouco discutida em Portugal. Vê-a igualmente como uma grande oportunidade para a modernização da economia portuguesa.

No seminário diplomático do início do ano, onde foi convidado a intervir, disse que esta Parceria Transatlântica para o comércio e o investimento (TTIP, na sigla inglesa) tinha condições para ser aquilo a que os anglo-saxónicos chamam de game changer. Porquê?
Começaria por dizer que este acordo não é único. Faz parte de uma geração de novos acordos de comércio externo da União Europeia que se iniciaram em 2006 com um documento da Comissão que foi um verdadeiro policy paper: “Europa Global”. Nesse documento, que marcou uma viragem da política de comércio externo da União, estava exactamente previsto enveredar por acordos de comércio bilaterais com os parceiros comerciais estrategicamente mais importantes. Os Estados Unidos não figuravam aí, mas já figuravam países com os quais, entretanto, já concluímos acordos de nova geração ou estamos a fazê-lo agora.

Que tipos de acordo?
São acordos de liberalização comercial que vão muito além do comércio de mercadorias. Incluem investimento, contratos públicos, propriedade intelectual. O que têm também de novo é que vão muito mais além da Organização Mundial do Comércio (OMC). A OMC teve uma série de rondas comerciais antes de se chamar assim. Mas a última ronda, lançada em Doha em 2001, até agora ainda não produziu resultados.

Porquê os Estados Unidos agora? Os dois lados ainda representam metade da riqueza mundial e 1/3 de todo o comércio internacional.
Exacto. Nesse projecto de 2006 não se incluía os Estados Unidos, porque podia ser sentido pelos outros países como negativo. Se os dois principais protagonistas do comércio mundial avançassem numa negociação bilateral, essa decisão podia ser interpretada como um abandono definitivo da negociação multilateral.

E porquê agora?
Em primeiro lugar, porque já passaram doze anos sobre Doha e nada parece ter acontecido, embora este acordo de Bali (no final de 2013) alimente alguma ténue esperança, mesmo que só tenha significado um décimo da ronda de Doha. Mas, mesmo que a ronda de Doha fosse para a frente, a ambição nunca é equiparável a um acordo bilateral que pode ir muito mais além. E a parceria com os Estados Unidos vai muito mais além. A segunda razão é obviamente a crise. Precisamos ambos de um estímulo e este é barato e, ao mesmo tempo, muito grande. Um estudo encomendado pela Comissão a um centro de investigação de Londres prova o impacto muito significativo sobre o crescimento e sobre o emprego.

Há outros estudos ainda mais positivos.
Há vários estudos de países que querem avaliar o impacte na sua própria economia. Eu próprio, nesse discurso aos diplomatas, desafiei o Governo português a encomendar um estudo e penso que estou em vias de o convencer de que vale a pena: dará conforto ao Governo perante a opinião pública. Finalmente, é a emergência da China…

E das potências emergentes, que acabaram por tirar mais partido da globalização do que os países desenvolvidos. Este acordo também pode ser o melhor instrumento para voltar a estabelecer algum equilíbrio nas trocas mundiais?
Devemos relativizar as coisas. A única que tem um enorme peso na economia mundial é a China. Os outros, a Rússia, o Brasil, a Índia, ainda são economias relativamente atrasadas. O grande desafio é a China. Para a União e para os EUA, trata-se de reafirmar a liderança das duas grandes potências atlânticas em matéria de liberalização e de regulação. Hoje, grande parte do comércio internacional não é apenas a redução de tarifas.

Entre os EUA e a União já são baixíssimas.
Uma média de 4%, embora haja alguns picos. Estas três razões justificam que esta necessidade se tenha afirmado agora. Se quiser, há uma quarta razão, que é haver em ambos os lados uma vontade política de o fazer.

Justamente, apesar de a Europa andar a falar disto há mais tempo, o Presidente Obama só apoiou publicamente a ideia no seu último discurso do Estado da União, em Fevereiro passado.
E no segundo mandato. Obama estava muito virado para o Pacífico. Aliás, iniciou em 2010 as negociações de uma parceria com um conjunto vasto de países e declarou que a Asia-Pacífico era o novo fulcro da economia mundial.

Isso também espicaçou a Europa?
Não direi que tenha sido decisivo. E também não vai haver qualquer comparação entre acordo com a União e o acordo com os países do Pacífico, onde há economias muito assimétricas. Esse mercado do Pacífico demorará muito tempo antes de atingir a maturidade e a imbricação que o mercado transatlântico já tem. Aliás, é um “game changer” porque vai muito além daquilo que se fez com a Coreia do Sul, o Canadá ou Singapura. Basta ver que uma parte importante do comércio bilateral é dentro das mesmas empresas: a BMW investe nos EUA e a General Motos investe na Europa.

E a Airbus está a construir uma fábrica no Alabama.
Esta parceria vai ter também um capítulo de investimento, que era, até ao Tratado de Lisboa, reservado aos Estados da União e que agora passou também para a Comissão. Este acordo vai ter tudo o que diga respeito ao comércio - mercadorias, agricultura, serviços, compras públicas, investimento -  e vai ter uma coisa nova: a chamada convergência regulatória.

Que é o aspecto mais difícil e, ao mesmo tempo, mais importante. São as chamadas barreiras não tarifárias.
Exacto. Se eu sou uma empresa europeia que quer exportar para os EUA, já sei que tenho de fazer um rótulo diferente. É tempo e despesa. O caso dos automóveis é paradigmático. Podemos imaginar que um automóvel americano e um automóvel europeu são iguais, mas não são. As diferenças são tantas que os torna dois produtos diferentes. Mas podiam ser diferentes e vendidos nos dois lados, desde que cada parte reconhecesse as normas da outra. Não é o caso e tem de haver duas certificações, duas inspecções, dois testes de choque. Está calculado que essas normas equivalem a uma tarifa adicional de 20%.

A dificuldade está em que essa convergência embate contra imensas ideias-feitas como a protecção do consumidor ou “princípio de precaução” europeu. Prevêem-se resistências muito grandes?
Sim, vai haver. Vai exigir um grande esforço negocial mas também muita vontade política. Mas atenção: há várias maneiras de encarar esta questão. Uma é tentar harmonizar: onde há duas normas, chegar-se a uma norma comum. É possível mas difícil porque os reguladores de cada lado são muito ciosos do seu poder. A segunda via é reconhecer mutuamente as certificações. Isso é possível desde que se possa provar que são de efeito equivalente. Mas vai toda a gente começar a dizer que a segurança alimentar não é a mesma.

Mas não há aí também muito preconceito?
É muito difícil mudar as concepções das pessoas. Se elas estão convencidas que os organismos geneticamente modificados são maus, que as hormonas no bife são más, que as galinhas lavadas com clorídio são más… Mas há uma visão menos ambiciosa que é manter diferente a certificação mas harmonizar as regras e os procedimentos: as certificações podem ser diferentes mas os métodos podem ser aproximados. Podemos harmonizar os elementos de aprovação para, pelo menos, obter uma convergência nos resultados.

As dificuldades podem ser superadas?
Há dificuldade e há limites. Temos de ser ambiciosos mas realistas para irmos tão longe quanto for possível e para sabermos que nunca será a 100%. O estudo de Londres mostra que, mesmo que ficássemos muito longe do óptimo, o que está envolvido continua a ser altamente interessante para os dois lados. Mesmo assim, vai ser possível ir muito longe, mais longe do que se foi até hoje em algum lugar. Mas, se disséssemos que, daqui por diante, os OGM aprovados nos Estados Unidos valem cá, seríamos linchados.

Mas disse-me recentemente que esse já não era o problema mais importante.
Mesmo havendo linhas vermelhas, sabemos que é possível ir muito longe. Neste caso não é verdade que a Europa não permita. Certificámos dois OGM, quando, nos EUA e no Brasil, são centenas. Mas já aprovamos 48 autorizações para a alimentação animal que serve para a alimentação humana. Por exemplo, a soja geneticamente modificada. E os negociadores americanos sabem que podemos tornar o processo mais rápido mas não podemos alterá-lo. No caso da carne com hormonas, eles sabem que não podemos convencer os cidadãos europeus a comê-la, embora a comam quando vão aos EUA. A União já foi processada pela OMC por causa da carne com hormonas e os EUA foram autorizados a retaliar contra nós. E o que é que fizemos? Negociámos com eles uma solução simples: nós estamos dispostos a pagar muito bem pela carne americana sem hormonas, basta que eles criem uma nova linha de carne livre de hormonas. Hoje, já temos nos nossos talhos carne americana, de resto da mais cara para os standards americanos. Como vamos eliminar tarifas, eles ficam com a possibilidade de produzir carne de grande qualidade para a Europa comprar. 

É a questão agrícola que é sempre o calcanhar de Aquiles?
Os europeus são sempre muito desconfiados de qualquer acordo que envolva a agricultura. Queremos preservar o campo, temos uma dimensão de propriedade muitíssimo inferior à americana…

E temos também a França.
Sim, mas porque é hoje possível outra solução? Porque podemos fazer um trade-off: liberalizar até um certo ponto a importação de commodities americanas – soja, milho, carne de porco, de frango, ovos etc. - a troco da nossa agricultura gourmet – vinhos, queijos, azeites, conservas -, que são de um muito maior valor acrescentado. Os EUA têm quase 300 milhões de pessoas com um elevado poder de compra, ansiosas por esses produtos. Há sempre moeda de troca com os EUA, enquanto provavelmente não a teríamos com o Brasil e a Argentina.

Já participou em três sessões negociais. Dessa experiência, como avalia o lado europeu da negociação. Mudou?
Mudou. Primeiro, este não é um acordo como os outros e, portanto, haverá maior ambição. Segundo, a França conseguiu excluir das negociações uma coisa que, para eles, é de grande simbolismo: o chamado audiovisual, garantido pela lei europeia que permite subsídios e quotas. Terceiro, a França tem uma grande moeda de troca no sector gourmet: são eles que têm os queijos, o vinho, as conservas da maior qualidade. Não tiveram muita dificuldade em entender a importância de um mercado como o americano.

Há-de haver um dia em que os parlamentos nacionais e o Congresso americano vão ter de ratificar este acordo. Como encara isso?
Um acordo comercial tem sempre de ser visto pelo lado da floresta. Se for pelo da árvore, haverá sempre alguém a dizer que vai perder. O que é preciso é ter um equilíbrio em que a apreciação global seja positiva, as perdas não sejam demasiado grandes e que haja tempo para fazer a adaptação. Um acordo comercial mede-se por quê? Pelo crescimento e emprego e pelo bem-estar dos consumidores. Se, para além de poder ter mais crescimento e emprego, somar uma baixa de preço de muitos produtos, então as coisas parecem razoáveis. Ganhamos por dois caminhos, podendo usufruir das commodiities americanas, que são matéria-prima para a economia europeia

Incluindo a energia.
Ainda bem que fala nisso. A energia, só por si, justificaria este acordo. Qual a grande vantagem americana sobre a União em termos de competitividade? Os custos da energia, que devem ser de menos 30%. Se tivermos acesso a essa energia ao mesmo preço, é uma enorme vantagem. A Europa tem um terrível problema que não é só de preço, é também de segurança, na medida em que estamos dependentes dos humores da Rússia. Os EUA não podem exportar energia para países com os quais não tenham um acordo, que , no caso europeu, passam a ter.

Mal as negociações começaram houve logo uma reacção internacional. O Brasil descobriu de repente que afinal o acordo do Mercosul com a União era uma coisa fantástica, depois de anos e anos de impasse.
É verdade. No discurso que fiz no seminário diplomático, defendi que esta parceria pode suscitar reacções virtuosas ao nível da OMC. Quando é impossível seguir a via multilateral, os países são obrigadão a seguir a via bilateral, aproveitando a vantagem de ser mais simples, mais fácil e preferencial. A reacção do Brasil é interessante porque estamos a negociar com o Mercosul um acordo comercial desde o final do século passado. Foi interrompido em 2004, retomado em 2010 mas sem resultados. Subitamente, o Brasil passou a estar interessado. E, aparentemente, também a Argentina. Deram-se conta que este acordo pode desviar comércio do Brasil para a Europa e para os EUA. Por exemplo, o Brasil é o nosso principal fornecedor agrícola, se não conseguir um acordo connosco vai ser um perdedor.  O mesmo vai acontecer com outros países, por exemplo, na energia. Temos um mercado de 800 milhões e continuamos a ser os mais ricos do mundo. Se harmonizarmos, mesmo que em parte, as nossas regras técnicas, já imaginou que o Brasil ou a Índia já não têm de produzir dois produtos diferentes – um para os EUA e outro para a Europa? Isso vale para o automóvel, os serviços e os bens agrícolas. Para esses países este acordo também pode ser altamente virtuoso.

E poderá ter um efeito positivo nas próprias negociações de Doha.
Exactamente. Porque mostra as virtudes da liberalização regulada. Se quiser um título para este exercício, ele pode ser: estamos à procura da liberalização regulada e não da desregulação. É um exercício de regulação da globalização.

Há outras reacções interessantes. A Turquia acaba de pedir aos EUA que a incluam na negociação.
A Turquia tem uma situação diferente porque tem uma união aduaneira com a União Europeia. Sofre automaticamente as consequências dos acordos comerciais da União mas, se não fizer um acordo paralelo com quem nós negociámos, não pode obter vantagens.Mas há aqui uma questão da qual as pessoas não se dão conta e que é o valor acrescentado da União Europeia. Algum país da União, incluindo a Alemanha ou a Grã-Bretanha, teria a força suficiente para negociar com os EUA ou até com o Japão? O grande activo que pomos em cima da mesa é um mercado de 500 milhões de pessoas. Continuamos a ser a maior economia do mundo, o maior actor comercial do mundo, temos um excedente comercial que está a crescer… A ideia de que a Europa está em declínio.

É uma ideia bastante razoável.
Em termos relativos é, e esta crise ajudou. Mas não acompanho a ideia de que a Europa seja irrelevante. O que penso é que este acordo é a boa utilização da potência económica que a Europa ainda é. Se quer manter-se na liderança, precisa dos EUA para tirar sinergias. O terceiro pilar deste acordo é regular domínios que, até agora, não são regulados: energia, investimento, matérias-primas, concorrência, contratos públicos. Se as duas maiores economias do mundo chegarem a acordo para um código de regulação, criam uma liderança que os outros vão ter de tomar em conta.

O Presidente dos EUA disse que o sector financeiro poderia ter de ficar de fora deste acordo, porque os americanos estão preocupados com as diferenças na regulação financeira, principalmente com o Dodd-Frank Act (2010, que coloca a regulação da indústria financeira nas mãos do governo, impondo transparência e protecção do consumidor) e a Volcker rule (separação entre os bancos de investimento e os comerciais). Isso faz algum sentido, quando as transacções financeiras entre os dois lados representam 70% das transacções mundiais?
A posição da União Europeia é que este acordo não pode deixar de fora o sector financeiro. Se queremos afirmar a nossa liderança, obviamente que ela tem de passar pelo sector financeiro, onde Londres e Frankfurt têm um lugar importante. A grande dificuldade é a atitude muito ciosa do regulador americano, que não quer integrar esta matéria no acordo geral. Mas a verdade é que a questão está a ser negociada no âmbito do TTIP. Se não estiver no acordo global, estará num acordo paralelo. Mas está adquirido. Apesar das dificuldades, creio que se avançará muito, se não na harmonização total da regulação, pelo menos na definição de critérios.

Acha isso possível, mesmo com a separação americana entre os bancos de investimento e comerciais? Se calhar vamos ter de conviver com essa diferença, como já vimos atrás. A questão é saber até onde podemos ir. Se podermos ficar com tudo o resto e abrir uma excepção nessas duas questões que referiu, será um enorme avanço. O departamento do Tesouro americano quer que os negociadores não sejam os mesmos. Quer negociadores dos departamentos financeiros de cada lado e quer um acordo à parte. Podemos viver perfeitamente com isso, desde que se avance.

Em Portugal, o tema não tem sequer um lugar no debate público. Disse-me que os empresários estão atentos ao que se está a passar. Este silêncio deve-se aos traumas anteriores, que vivemos quando a China entrou na OMC ou quando do alargamento?
Essa rememoração é importante. Portugal não encarou com a devida atenção à entrada na União Europeia, cuja pauta aduaneira era muito mais baixa que a nossa, e fomos invadidos por produtos que estavam antes protegidos. Mais tarde, também não soubemos antecipar a entrada da China na OMC – que passou logo a beneficiar da pauta europeia em sectores que deixaram de estar protegidos, com o têxtil e o calçado.

Mas esses já deram a volta com imenso sucesso.
Era para aí que eu ia. Depois de anos de sofrimento, soubemos enfrentar a situação. Compreendemos que não podíamos competir com a China ou com o Bangladesh e que só nos restava subir na escala de valor. Mostrámos, mesmo que com muito sofrimento, que podíamos dar a volta. Esta aprendizagem está feita e acabou por ser virtuoso: os governantes e os empresários convenceram-se de que não há outra forma de concorrer senão no mercado global. Ganha-se com qualidade e com diferenciação.É por isso que muitos empresários estão hoje muito mais preparados para encarar positivamente este acordo. Há 10 anos, não teríamos a agricultura gourmet que hoje temos, não tínhamos a indústria de sapatos que é a segunda mais cara, a seguir á italiana. Mesmo a cortiça, mesmo a celulose deram a volta. As dificuldades que passámos produziram duas reacções positivas: que, para triunfar, é preciso ser competitivo, não no mercado interno de 10 milhões de habitantes, mas à escala global; a segunda  é que valeu a pena.

Tem falado com muitos empresários?
Como sabe, organizei uma conferência sobre o TTIP em Novembro passado e convidei as confederações patronais e as centrais sindicais, para além do Governo e de especialistas. Fiquei agradavelmente surpreendido com duas coisas: o assunto não era desconhecido, pelo menos nas cúpulas, que vai ser preciso mudar algumas coisas mas que o resultado pode ser bom.

Percebem que têm ali um mercado que não têm em mais parte nenhuma.
Deixe-me dar alguns exemplos. No sector da agricultura, exportamos para os EUA cortiça, pasta de papel, vinhos, azeite e azeitonas, conservas de peixe, queijo. Importamos soja, bacalhau, milho e amêndoas da Califórnia. Por exemplo, no caso das conversas de peixe, as tarifas nos EUA são 20%. Imagine eliminá-las. No caso do atum, chegam a 35%. As nossas maçãs e peras não entram nos EUA por causa das normas sanitárias imensamente exigentes. Se conseguirmos reduzir as tarifas e aproveitar a harmonização das regras fitossanitárias, veja a dimensão do mercado americano para duas coisas em que somos bons. Não vamos poder responder imediatamente à procura americana, mas vamos tirar proveito dela. Também temos alguns pontos fracos. O tomate, por exemplo, em que os EUA são muito competitivos. Mas terá a mesma qualidade do nosso? Foi isto que o presidente da CAP percebeu. 

E na indústria?
Os sectores em que somos bons - vestuário, roupa de cama, calçado – têm todos picos tarifários nos EUA, que podem ir até 15%. No calçado vão até 19%. Passam a ter tarifa zero. A ideia que temos do nosso país é errada e miserabilista. Já exportamos automóveis para os EUA e já lá estão as empresas das tecnologias de informação.

Fala-se pouco disso mas fala-se muito do Brasil e de Angola, mercados que são menos exigentes. Como responde a isto?
Vejo com bons olhos que as exportações portuguesas consigam estar em Angola e no Brasil.  Mas tenho duas más notícias: Angola acaba de subir a sua pauta aduaneira; o Brasil está a fazer isso nos últimos anos. Corremos o risco de se tornarem mercados menos atraentes com esse aumento. Nós, neste acordo, estamos a eliminá-las. Mas não os coloca em alternativa. Só digo que este acordo com os americanos é fundamental para a modernização da nossa economia.

E há condições para fazermos isso?
A respostem tem três partes. Há vontade política de apoiar este acordo, obviamente tendo em conta os nossos interesses defensivos. Por exemplo, fazer valer as denominações de origem nos EUA. Nestes últimos quatro anos tenho reparado que há uma nova geração de empresários e de associações empresariais muito mais preparados e, sobretudo, com a consciência de que hoje não se sobrevive fora da competição externa.

Mas o mercado americano é altamente competitivo.
É verdade. Mas creio que temos já as bases para que essa chicotada seja bem-vinda. Finalmente, a opinião pública. É preciso uma reapreciação do que podemos fazer. Penso que este acordo, sendo competência da União, deve ser apropriado a nível nacional.

Há a ambição de fechar este acordo antes do final deste ano. É razoável?
Não estou assim tão convencido. Este acordo representa uma potencialidade enorme e seria estúpido se o falhássemos. Mas não vai ser fácil. Existem nichos protegidos que vão reagir muito mal e existem também divergências de interesses. Mas o clima é favorável. Se este ano se avançar com a parte técnica, mesmo que ainda com várias interrogações, creio que o primeiro semestre de 2015 será crucial. Há uma nova Comissão, um novo Parlamento, um novo Presidente do Conselho europeu e as eleições europeias já terão passado. Obama entra na fase final do seu segundo mandato e quer obter este triunfo.

No PS nota-se hoje uma tentação proteccionista. Muita gente diz que a abertura europeia deu maus resultados. É falta de informação?
Essa crítica tem uma certa razão de ser. Creio que adoptámos algum angelismo, quando decidimos pelo desarme unilateral nos anos 90 e já no princípio deste século. E que não nos preparámos para o choque da China. Creio que estes tratados bilaterais são a resposta a esse angelismo. Primeiro, são recíprocos: as duas partes abrem-se mutuamente. Em segundo lugar, são acordos que trazem também a compatibilização das regras. Têm um capítulo de desenvolvimento sustentado, que inclui o domínio laboral e ambiental e em que cada parte se compromete a observar, pelo menos, os direitos fundamentais dos trabalhadores tal como são definidos pela Organização Mundial do Trabalho. Já não é só o comércio. É a ideia de que não podemos liberalizar o comércio sem garantir um nível mínimo do nosso modelo social para não haver dumping social e ambiental.

Embora se tenha de dar aos países menos desenvolvidos o tempo suficiente para se adaptarem a essas condições. As economias ocidentais não nasceram já com esses direitos todos.
Dai que o capítulo tenha apenas as quatro liberdades básicas dos direitos dos trabalhadores: trabalho infantil, trabalho forçado, não discriminação, liberdade sindical.

Os cidadãos europeu, descrentes de muita coisa e mais acessíveis a um discurso proteccionista e nacionalista, podem olhar com cepticismo para este novo acordo.
Isso acontece em épocas de crise e esta crise não tem precedentes. Creio que estamos a sair dela, mesmo que lenta e penosamente e mesmo que a crise social se vá prolongar. Mas tomámos medidas que corrigem algumas das deficiências do euro, com mais coordenação das políticas económicas, com a união bancária e o pacto orçamental. Provavelmente vai ser preciso mexer no Tratado para se criar uma verdadeira união económica, e falta o pilar social que tem sido subestimado. Como membro do Grupo dos Socialistas no Parlamento Europeu,  sempre disse que a penalização social da crise ia ser tão grande que seria necessário um pacto de crescimento.

Isso não aconteceu e vamos enfrentar eleições europeias que vão mostrar isso mesmo.
Não ganhámos essa batalha. O próprio pacto de crescimento que François Hollande apresentou acabou em muito pouco. Vamos para estas eleições com o risco claro de organizações antieuropeias terem um bom resultado. Mas acredito que não vai colocar em causa a maioria confortável que existe no Parlamento Europeu. O que há também de positivo é que esta aposta da União em tratados bilaterais ambiciosos tem o apoio de um espectro muito largo, desde os conservadores britânicos ao PPE, passando pelo PSE e pelos liberais.

O problema não é só do PE. A nível nacional o impacte destas forças pode condicionar as políticas dos governos. Hoje, por exemplo, a xenofobia alastra, envolvendo mesmo alguns governos. É mais um elemento de complexidade…
A expressão é essa, de complexidade. Mas em situações complexas devemos tentar ver o quadro inteiro e não apenas um pormenor. Por mais dificuldades que enfrentemos, não podemos ceder nos princípios que fizeram a União. Essa cedência aos populismos é inaceitável.
 
 

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