Do carrinho cheio à marmita no trabalho

Com o cinto apertado desde 2011, os portugueses passaram a ir menos aos supermercados e a trazer menos comida para casa. O crédito malparado cresceu 14%.

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Cerca de 40% dos portugueses levam comida para o trabalho. Em 2009, a percentagem era de 29% Joana Freitas

Em tempo de restrições financeiras, nada será como dantes na casa dos portugueses. As famílias apertaram o cinto durante os anos de governação da coligação PSD/CDS e a crise alterou de forma radical a modo como, hoje, se escolhe e se compra.

Em 2011, os aumentos na taxa do IVA de 21 para 23% (ainda com Sócrates na liderança) fizeram aumentar a factura do supermercado em mais 38 euros (dados da Kantar Worldpanel) e foi nesta altura que as promoções começaram a fazer uma entrada estridente nos espaços comerciais. Os portugueses começaram, então, a comprar mais produtos de marca própria, a aproveitar os descontos e a optar por produtos mais baratos. Em vez de carne de vaca, compravam frango, por exemplo.

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Contudo, a maior revolução aconteceu a partir de 2012. Passos Coelho comprometeu-se com a troika a alterar a lista de bens no IVA e a restauração passou a aplicar um imposto de 23%, em vez de 13%. Os consumidores riscaram da lista os almoços fora e passaram a levar comida de casa para o trabalho (40% dos portugueses nesse ano ficaram adeptos da marmita: eram 29% em 2009), reduzindo drasticamente as idas aos restaurantes.

Os dados publicados pelo INE mostram isso mesmo: o peso dos produtos alimentares nas despesas totais das famílias aumentou de 18,1% em 2011, para 19,1% em 2014 (e já vai nos 19,2% este ano), reflectindo a aposta nas refeições em casa. Pelo contrário, todos os outros gastos com bens considerados supérfluos, como vestuário, livros ou electrodomésticos, recuaram. As vendas de automóveis desceram 7% durante o mandato de Passos Coelho. E nunca se bebeu tão pouca cerveja: 46 litros per capita no ano passado, o valor mais reduzido dos últimos dez anos. Ao mesmo tempo, o crédito malparado das famílias disparou 14% entre 2011 e 2014.

A campanha de 50% de desconto do Pingo Doce, no dia 1 de Maio de 2012 (que já tem direito a uma entrada da Wikipédia), fez instalar a verdadeira sociedade das promoções, atenta e ávida da mínima redução de preços. Neste cenário, as marcas de fabricantes, mais caras, passaram a ganhar terreno graças às ofertas constantes de “pague um leve dois”, enquanto as da grande distribuição diminuíram a sua quota de mercado.

Em 2014, os portugueses mantiveram os cortes nas idas aos restaurantes mas reduziram ainda mais as despesas com alimentos, comprando menos pão e menos leite. Passaram a estar “em modo de sobrevivência”, como diziam os estudos de mercado, no ano em que se reintroduziu a sobretaxa de 3,5% sobre os rendimentos acima do salário mínimo e ainda se sentiam os cortes nos subsídios de férias dos funcionários públicos e reformados – medida depois chumbada, em Abril, pelo Tribunal Constitucional. 

Esta nova forma de estar afectou de forma particular os pensionistas, que, fruto das medidas do Governo, levaram cortes profundos nos rendimentos. Contudo, com uma sociedade cada vez mais envelhecida, o Estado foi incapaz de poupar nos gastos com reformas, que dispararam 18%.

Por outro lado, nos últimos quatro anos, nunca tantas famílias pediram insolvência: de 1876 no primeiro trimestre de 2011, para 4237 no mesmo período de 2015. 

Este ano, a queda consecutiva no volume de compras mantém-se. No primeiro trimestre, os portugueses continuaram a reduzir o número de idas aos supermercados e a comprar menos produtos de mercearia ou detergentes. As promoções continuam a marcar o passo mas, lentamente, o discurso parece estar a mudar. Não é só pelo preço que se motiva o consumo. A qualidade e a inovação dos produtos começa a estar, de novo, na ordem do dia. Com A.B., J.P.P, R.A.C., R.M. e R.S.

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