Director-geral da Autoridade Tributária demite-se mas nega existência de lista VIP

Na carta enviada aos trabalhadores do Fisco, Brigas Afonso diz que se demitiu por causa das notícias sobre a alegada lista de contribuintes.

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Maria Luís Albuquerque e António Brigas Afonso durante a tomada de posse do último, em 2014 Nuno Ferreira Santos

O director-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), António Brigas Afonso, nega a existência de uma lista de contribuintes VIP e justifica a sua demissão com a publicação de notícias sobre a alegada existência dessa lista.

No e-mail que enviou aos funcionários, e a que o PÚBLICO teve acesso, Brigas Afonso garante que “essa lista não existe e nunca existiu” e que todos os processos disciplinares em curso “resultam exclusivamente de notícias publicadas nos jornais com violações consumadas do direito ao sigilo e de queixas de contribuintes individuais sobre acessos indevidos aos seus dados pessoais”. “Não foi aberto nenhum processo contra funcionários que efectuaram consultas no exercício das suas funções”, garante.

A percepção de que esta lista existia, acrescenta o até agora director-geral da AT, pode estar relacionada com procedimentos internos e Brigas Afonso reconhece a necessidade de adoptar medidas que previnam o acesso indevido aos dados dos contribuintes.

“A importância e a sensibilidade da protecção dos dados pessoais dos contribuintes exigem da AT a adopção de metodologias preventivas, e não apenas reactivas, contra a intrusão e o acesso ilícito, estando a ser ponderadas novas alternativas, mas sem que nenhuma tenha sido até agora implementada”, refere.

na carta de demissão que enviou à ministra das Finanças na manhã desta quarta-feira, Brigas Afonso reforça que a AT "nunca" recebeu qualquer lista por parte de "nenhum membro do Governo" nem "nunca recebeu quaisquer instruções, escritas ou verbais, de qualquer membro deste Governo" para elaborar aquela lista.

A carta de demissão, escrita de uma forma que aparenta ser concebida de modo a ser lida por pessoas exteriores ao gabinete da ministra das Finanças, adianta que a controvérsia criada à volta deste tema pode ter origem num conjunto de decisões internas da AT. Numa fase em que, diz Brigas Afonso, “a AT detém nos seus sistemas e arquivos informáticos informação cada vez mais pormenorizada, abrangente e actual acerca dos contribuintes”, é preciso garantir que “esses dados só são utilizados para o cumprimento” da missão do Fisco. E, uma vez que se verifica a “repetição de situações” que violam o sigilo fiscal, tornam-se necessários “mecanismos de prevenção e dissuasão” desse tipo de situações. Ora, diz Brigas Afonso, uma dessas medidas de segurança, “já experimentadas a nível internacional”, é precisamente “a identificação de segmentos ou grupos de contribuintes em que o risco de tentativas de acesso indevido seja mais elevado”.

Em Setembro do ano passado, houve então dois passos: quando surgiram notícias sobre a situação fiscal do primeiro-ministro, a área de segurança informática “propôs um procedimento de controlo de acesso aos dados, com mecanismos de alerta de determinados contribuintes em que o risco de tentativas de acesso indevido seja mais elevado”. Daqui, assegura, avançou-se para a elaboração de “uma proposta de implementação de uma medida definitiva de salvaguarda do sigilo fiscal”. No entanto, Brigas Afonso defende, na referida carta de demissão, que não se chegou a uma “proposta definitiva de concretização” de medidas de controlo e “nunca foi constituída qualquer lista de contribuintes para este feito”.

O que o até agora director-geral diz ter feito foi proceder à abertura de uma auditoria para apurar se tinha havido quebra de sigilo fiscal relacionada com Passos Coelho. Não refere número de acessos, mas avança que 69,7% das consultas aos registos do primeiro-ministro “foram feitas por mera curiosidade” e não por questões de trabalho. Todos os casos de processos disciplinares, assegura, surgiram por via de pesquisas posteriores à publicação de notícias que indiciavam possíveis quebras de sigilo fiscal.

Nessa auditoria, diz o próprio, havia referência à “implementação da referida medida de controlo”, ou seja, à lista VIP, mas, garante, devido a um erro.

“Tenho consciência de que, ao não ter informado a tutela destes procedimentos e estudos internos, possa ter involuntariamente contribuído para criar uma percepção errada sobre a existência de uma alegada lista de determinados contribuintes, razão pela qual coloco o lugar à disposição", diz na carta que enviou a Maria Luís Albuquerque.

Na mensagem que enviou esta manhã aos trabalhadores, Brigas Afonso diz que se demite para “proteger” a instituição e os seus funcionários. “O meu pedido de demissão destina-se apenas a proteger a AT da polémica que já se situa fora do âmbito da protecção de dados pessoais e do patamar institucional da AT”, sublinha.

Demissão pedida e aceite de manhã
A demissão de Brigas Afonso, anunciada esta manhã pelo Ministério das Finanças, ocorre um dia após a Procuradoria-Geral da República ter comunicado que estava a reunir informação para avaliar da “necessidade de iniciar procedimentos que se mostrem pertinentes, no âmbito das atribuições do Ministério Público". Na segunda-feira, tinha sido a vez de as Finanças avançarem com o pedido de abertura de um inquérito à Inspecção-Geral de Finanças (IGF), de modo a verificar, na sequência de “notícias vindas recentemente a público”, a existência de uma “lista VIP", que pretenderia proteger a consulta de dados fiscais de pessoas importantes.

Após ter sido divulgada a nota do ministério, que nada dizia sobre as razões para o pedido de demissão, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), Paulo Ralha, em declarações à TSF, ligou esta decisão à alegada lista VIP. Para Ralha, o director-geral foi surpreendido pela existência da mesma. "As provas vão-se acumulando e, se calhar, [Brigas Afonso] chegou à conclusão que a lista existe. Esta é a nossa leitura." O sindicalista considera que o responsável foi "apanhado de surpresa".

Para Ralha, desde o momento em que foi nomeado até agora, o "único facto" realmente relevante foi o da lista VIP. Recorde-se que, quando Brigas Afonso foi nomeado, o sindicato teceu rasgados elogios. Esta quarta-feira, Ralha insistiu que o director-geral "é uma pessoa que mostrou sempre grande frontalidade. Sempre transparente, directo e uma honestidade a toda a prova". Alguém com quem o sindicalista teve "prazer" em trabalhar.

A instauração de processos disciplinares a cerca de 140 funcionários da administração fiscal que terão acedido ao cadastro fiscal de determinados contribuintes, incluindo o primeiro-ministro, levou o STI a pedir a intervenção do provedor de Justiça. Então, o STI referiu a coincidência dos processos disciplinares aos trabalhadores terem começado em Dezembro, depois das notícias sobre a situação fiscal do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

Recorde-se que a notícia de que teria sido criada a lista VIP — que faria disparar um alarme e perceber que funcionários estariam a consultar as informações fiscais de forma injustificada relativamente a alguns contribuintes conhecidos ou que ocupam cargos públicos — foi desmentida pelo próprio primeiro-ministro no início deste mês.

Para prestar mais esclarecimentos sobre a alegada lista, o PS requereu esta segunda-feira a presença no Parlamento do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, e do presidente do STI, Paulo Ralha. Esta manhã, a maioria parlamentar aprovou a audição do secretário de Estado, do director-geral da AT e dos sindicatos.

Discreto e conhecedor
Licenciado em Direito na Universidade de Lisboa, Brigas Afonso é professor no Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal, e era até à sua nomeação o homem-forte das alfândegas e dos impostos especiais sobre o consumo, tendo presidido ao grupo do Conselho de Questões Fiscais nas presidências portuguesas da União Europeia de 2000 e 2007. Antigo subdirector-geral, é visto como alguém que actua de forma discreta, com um enorme conhecimento dos corredores da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Quando subiu ao cargo de director-geral, passou pelo crivo da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (Cresap) e do próprio Governo. De 33 candidatos, a Cresap indicou três ao Ministério das Finanças, que acabou por escolher Brigas Afonso. Os outros dois eram Abílio Morgado, consultor do Presidente da República, e José Maria Pires, actual subdirector-geral para a área de justiça tributária e aduaneira. Agora, um deles poderá suceder a Brigas Afonso.

Para já, o Governo será obrigado a lançar um novo concurso público para escolher, em definitivo, um novo director-geral da AT. Este procedimento, que é conduzido pela Cresap, tem um carácter urgente, mas obriga à abertura de um prazo para candidaturas e à avaliação de candidatos, sendo que os seis melhores ainda passam por uma entrevista.

Findo o procedimento, que regra geral demora menos de um mês, a Cresap envia à tutela, neste caso o Ministério das Finanças, uma lista final com os três melhores nomes, hierarquizada por ordem alfabética. Caberá à ministra Maria Luís Albuquerque e ao secretário de Estado Paulo Núncio escolher um dos três candidatos que constem na proposta da comissão de recrutamento, não existindo actualmente um prazo máximo para que concretizem a nomeação. com Raquel Almeida Correia

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