Dez medidas para libertar Portugal e a Europa

Este artigo não é um manifesto nem uma carta aberta. É tão só um RFC, ou seja, aquilo que na gíria da Internet quer dizer "se isto te interessa comenta". O pedido de comentário é dirigido aos diferentes líderes partidários portugueses, questionando até que ponto aceitariam governar com os pressupostos e políticas sugeridas por Claus Offe.

O livro Europe Entrapped, que será publicado pela Polity Press no próximo mês de Novembro, é um livro no qual Claus Offe traça um diagnóstico da actual crise europeia e dos países da zona euro mas também onde se propõem soluções.

Um RFC (Request for Comments) implica primeiro a existência de um memorando descrevendo métodos, comportamentos, pesquisa ou inovações aplicáveis ao funcionamento de algo. E é normalmente submetido para revisão por pares ou simplesmente como veículo de novos conceitos ou informação.

O convite que aqui é feito é que tomemos o conteúdo do último capítulo do livro de Claus Offe como o nosso RFC à comunidade política portuguesa.

O diagnóstico de Offe é directo, a UE e a euro zona estão hoje divididas por múltiplos conflitos: Norte vs. Sul, antigos Estados-membros vs. novos Estados-membros, renacionalização vs. maior integração, política de protesto vs. política tecnocrática, supranacionalismo vs. intergovernamentalismo, centro vs. periferia, neoliberalismo vs. necessidade de fazer regressar um capitalismo democrático.

O resultado? Países e a Europa perante múltiplos conflitos que paralisam a capacidade de acção e tornam estéreis as dinâmicas sociais envolvidas.

Tudo isso contribui para criar confusão e desorientação e se nas periferias as pessoas continuam a olhar para a sua vida como cada vez mais difícil em termos de rendimento, segurança e acesso a serviços, no centro a crise é percebida como uma remota e normal perturbação da economia — nas palavras de Offe precisamente "aquilo para o qual os governos são eleitos, fazendo o seu melhor para impedir que nos afecte a ‘nós’."

A solução segundo Offe? Em primeiro lugar um "reboot" mental, abandonando o "nacionalismo metodológico" do "nação vs. nação" enquanto código genético da actuação política e introduzindo supletivamente uma abordagem mental e política centrada nos "perdedores vs. vencedores" ou mesmo "classe vs. classe" ou "geração vs. geração".

Mas mudar de perspectiva não chega. Há depois que propor e agir. E propor o quê? As sugestões de Claus Offe são muito directas e poderiam ser apresentadas como parte de um programa político nacional ou europeu a ser escrito a breve trecho.

Antes de mais uma nota: não existem hoje falta de propostas políticas, pois há alternativas ao que temos vindo a experimentar tanto à esquerda quanto à direita na governação europeia desde 2008 — o ano de início da "grande recessão" em que nos encontramos ainda.

Que memorando é aquele para o qual vos convido a responder ao RFC? É um memorando de 10 pontos, inspirado na escrita de Offe, que começa por sugerir que é necessário fazer um considerável "write-down" da dívida soberana dos diferentes países, sem o qual não se poderá regressar a países com dívida sustentável.

Segue-se a necessidade de recapitalizar os bancos "sistémicos". Aqueles que pelo acumular perdas, ou incapacidade de lidar com as mesmas, terão de ser tratados pelo BCE — esse  “tratar” ou "cuidar" pode muito provavelmente envolver a lógica praticada com os bancos cipriotas de "bail-ins" em vez de "bail-outs".

Em terceiro lugar, temos a necessidade de introduzir uma harmonização de taxas fiscais na Europa, com o intuito de desincentivar o chamado investimento ao "sabor fiscal". Ou seja, lógicas onde o investimento é comandado pelo local onde as taxas sobre as empresas são mais baixas para o capital transnacional.

Quarto, porque os défices não devem ser combatidos apenas por medidas de austeridade e medidas de "desvalorização fiscal", podemos também resolver défices através do aumento dos impostos sobre os muito elevados rendimentos e sobre a riqueza, ou até determinando que parte do rendimento dos mais ricos seja canalizado para a compra de dívida do Estado — embora tal possa e deva ser doseado também com a obrigatoriedade de aplicações num banco de fomento para novas PME.

Quinto, os impostos indirectos têm a grande vantagem da sua base de taxação não poder fugir do país e, por sua vez, têm o problema da sua incidência ser regressiva. Pois, os mais pobres gastam em consumo uma maior parte do seu rendimento do que os mais ricos — ou seja, os mais pobres são mais afectados por subidas do IVA do que os mais ricos.

Se assim é, então porque não introduzir nos impostos indirectos uma fórmula que permita a progressividade individual? Do tipo "rendimento — investimento/poupança" por ano fiscal? Essa taxa substituiria as taxas do IVA, sendo mais justa.

Sexto, há várias propostas para a europeização dos sistemas de segurança social no quadro do desemprego, assistência social e minoração da pobreza. Tal constituiria um novo estabilizador automático com a vantagem de reequilibrar temporal e geograficamente os efeitos transitórios das crises num espaço de moeda única.

Sétimo, sem violar a subsidiariedade, é possível criar legislação europeia que especifique um nível máximo de coeficiente de Gini. Mas, também, nada impede os estados nacionais de darem o primeiro passo definindo qual o seu objectivo de coeficiente Gini em termos de combate às desigualdades e que instrumentos preferenciais devem ser escolhidos para esse combate: impostos, apoio à redução da pobreza, rendimentos mínimos, etc.

Oitavo, os bancos comerciais nacionais poderiam ser compelidos a rejeitar depósitos de investidores financeiros que possam ser identificados como "fugindo" de países dilacerados por problemas de divida pública. Pois, é possível aplicar medidas específicas de controlo de capitais sem que as mesmas coloquem em causa a sua livre circulação.

Nono, com milhões de jovens que hoje não estudam nem trabalham nos nossos países seria altura de os governos nacionais adoptarem verdadeiros programas de “Garantia Juventude” em que após 4 meses de incidência dessa situação os jovens pudessem ter algum tipo de apoio, ou para o regresso aos estudos ou a de estágios remunerados. O custo de tais medidas seria de 0,22% do PIB da euro zona, não o fazer custa-nos a todos nós 153 mil milhões de euros.

Décimo, nada impede que seja introduzido um modesto valor de 200 euros por pessoa de “Euro-dividendo” por mês a que todos os cidadão teriam direito independentemente da idade, trabalho ou estatuto familiar, financiada por uma combinação de IVA, taxa Tobin e taxas sobre carbono.

Antecipando três tipos de críticas, em primeiro lugar não é preciso aumentar défices para colocar em prática estas medidas, pois podem ser “financiadas” por “hair-cuts”, “bail-ins”, taxas Tobin em transacções financeiras, taxas sobre carbono, taxas aplicadas uma só vez a grandes propriedades e várias formas de mutualização de dívida e distribuição de risco nos sistemas de segurança social (como a europeização de parte do valor dos subsídios de desemprego).

Em segundo lugar todas estas propostas, como relembra Claus Offe, radicam na ideia da identidade dos sujeitos construída enquanto cidadãos e não enquanto participantes ou empregados num qualquer contexto de mercado.

Em terceiro lugar a dimensão de justiça, nas quais essas políticas de redistribuição assentam, não se encontra baseada numa perspectiva igualitária mas numa perspectiva eminentemente republicana. Relembrando Offe: “assente numa doutrina de suficiência”.

Sim, é verdade. Muito do que aqui se propõe não pode ser feito apenas por um país, o que é mais uma razão para que, individualmente, todos os países o proponham para que o que se pode fazer nacionalmente seja feito por cada um e o que só pode ser feito em conjunto seja colocado na agenda dos "a fazer" pela UE.

Sei que será, talvez, esperar demais que as caixas de comentários do Público referentes a este artigo possam vir a ser preenchidas com os comentários pessoais dos diferentes dirigentes dos partidos portugueses, mas o convite fica de qualquer modo feito.

Governar tanto pode ser gerir como transformar e essa escolha determinará se, nas palavras de Claus Offe, continuaremos numa Europa aprisionada, constituída por países aprisionados ou se nos moveremos para uma Europa da redistribuição entre estados membros e entre as diferentes divisões sociais que marcam as nossas sociedades.

Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris

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