Devemos e Podemos

O programa económico do “Podemos” pode, merece e deve ser discutido. Este programa representa um corte conceptual do que é a política e do que é a sua prática. Novidade: em vez da obsessão com os instrumentos (crescimento do produto interno bruto), o programa centra-se na necessidade de atingir os fins (conseguir criar condições para o bem-estar dos cidadãos).

Que irrealismo?! No insuspeito jornal conservador espanhol El Mundo já se apontaram as baterias. Enquanto os políticos do PP denominam este partido-movimento de “estes miúdos”, afinal onde pára hoje o seu populismo? O que é verdade é que o governo de Rajoy se fez eleger prometendo “reduzir a precariedade”, “responsabilizar os detentores de cargos públicos”, “aumentar a I&D”, “reformar o sector financeiro”, etc. O programa do PP está intacto pois a verdade não se governou segundo ele, diz-nos o jornal (28 de Novembro). 

Não. O programa económico do “Podemos” é fresco e inovador porque é adulto e maduro. É tal e qual como foi dito no Financial Times (FT). Os partidos das alegadas esquerdas “radicais” como também o Syriza ou o Die Linke “estão certos” e têm “propostas consistentes” (FT 24 de Novembro). Enquanto isso ortodoxias como a alemã vivem num “universo paralelo” (FT 15 de Novembro).

O “Podemos Económico” começa, pois, pelo princípio: é preciso eliminar objectivamente o que tem sido aceite como suportável, como fatalidade, como acontecendo porque tem que ser. Inicia-se o texto com uma aposta ética: é preciso um pacto de Estado contra a desigualdade, pobreza e a usura, que é a única maneira de os cidadãos serem livres e poderem aspirar a um mundo mais justo e equilibrado. Se tivermos aprendido com a história, talvez não necessitemos para tal de uma nova revolução, como a de 1848, que nos trouxe (finalmente…) a ilegalização da escravatura.

Antes de mais é o seguinte. Combater os extremismos é combater novas escravaturas: a pobreza extrema ou a dívida impagável. Sabemos que factores levam à desigualdade dentro dos países atrasam o crescimento, e que os factores agravam a desigualdade entre os países levam a hegemonias chantagistas. O que se quer provocar é isto: um plano estudado mas pragmático para lançar o verdadeiro resgate, a dignidade de cada um. Está-se a fazer um encaixe de complementaridades juntando o “lutar contra” com o “lutar por”. Só com um trabalho perito e político se consegue gerar uma organização colectiva diferente.

Em segundo lugar, afirma-se que é preciso impedir o desmantelamento da democracia. A democracia é o único regime onde as decisões são tomadas no contexto de uma vontade colectiva. Onde não contam os interesses desmesurados de um grupo interno ou a coerção hostil externa. A democracia efectiva é comunhão de responsabilidades, e isso carece de mecanismos de vigilância e controlo do endividamento massivo (que afectam países inteiros) e capilar (que atingem as famílias uma-a-uma).

Terceiro, qualquer operação financeira precisa de ser registada e portanto taxada. Não pode haver excepções e truques debaixo da mesa. Porquê, perguntar-se-á? Porque em sociedade não contabilizar é esconder, usar câmaras de compensação financeira desreguladas é iludir, promover os oásis fiscais é retirar recursos à comunidade como um todo. No fundo criar subterrâneos de lucro é roubo social, é desvio económico e é golpe político. Em suma, igualdade civil não convive bem com oligarquia financeira. Certamente a maioria dos eleitores preferirá a primeira.

Finalmente, o programa escavaca a frase feita mais estéril e hipócrita do planeta, o de que “não há alternativa”. Claro que há sempre alternativa! É preciso trocar os passos à subserviência, ao servilismo e ao fatalismo. Basta querer, porque em última análise querer é poder.

Será que não havia alternativa quando os carros de combate que nos traziam o 25 de Abril se depararam com um sinal vermelho num cruzamento? Claro que havia, e foi pela coragem e pela consciência que conseguimos sair do túnel viscoso e fétido a que durante 48 anos nos constrangeram. Foi a construção de alternativa que nos permitiu viver a liberdade e sonhar com um futuro melhor. Isso é que é realismo. Flexibilizemos, isso sim, os novíssimos constrangimentos.

Devemos olhar para o Podemos com um olhar crítico na busca de inspiração mas também devemos inovar em Portugal, por exemplo, propondo transferir a aplicação da sobretaxa de IRS para fora da incidência sobre os rendimentos maioritariamente oriundos do trabalho, isto é, deslocar a sua aplicação para a património mobiliário de empresas e particulares.

Podemos e devemos negociar em sede de concertação social para estabelecer um máximo de discrepância entre os salários mais elevados e o salário médio tanto das empresas como do Estado. Porque tanto as grandes empresas como as PME's necessitam de ter melhores condições para a paz social e a sua expansão produtiva, devemos e podemos ter um IRC indexado a indicadores relacionados com assimetria salariais internas e com à propensão da empresa ao re-investimento do seu lucro.

Podemos e devemos apresentar um conjunto de medidas destinadas a criar condições internas para uma maior fluidez do crédito às empresas e incentivar o aumento da poupança das famílias, nomeadamente fazendo uso estratégico dos depósitos e liquidez da administração pública como incentivadora da constituição de um novo tipo de banca cidadã de características mistas público-cooperativas, destinada a providenciar apoio aos investimentos das PME e a constituir uma referência ética perante os restantes actores do sector bancário.

Podemos e devemos propor, por via da revisão da constituição, a inscrição do crédito e do financiamento como um serviço público essencial e que a sua concessão obedeça ao interesse geral e não apenas à função de lucro bancário.

Podemos e devemos iniciar uma estratégia de apoio à reestruturação das dívidas das famílias, em particular a dívida originada pela compra de habitação, que permita libertar recursos das famílias para a poupança e consumo.

Podemos e devemos apoiar a introdução de práticas de cogestão dos trabalhadores nas empresas com vista à maximização da inovação e da produtividade, seguindo os exemplos praticados no contexto da economia alemã com elevado sucesso na gestão e rentabilidade das empresas.

Podemos e devemos promover a negociação entre Estados europeus para a modificação dos estatutos do Banco Central Europeu para que entre o seu mandato se encontre a economia real e possa colaborar com os governos, no atingir de maior bem-estar e sustentabilidade, através da redução do gestão da dívida pública. Introduzindo também uma maior democratização do BCE através da apresentação de contas perante o Parlamento Europeu - que deverá também passar a nomear os seus membros no Board do BCE.

Porque precisamos de dar uma direcção política mais democrática e um maior equilíbrio no quadro europeu entre o poder financeiro e o poder político, podemos e devemos requalificar a dívida existente através da mutualização parcial das dívidas da zona euro por via de um «fundo europeu de redenção de dívida», enquanto instrumento agregador de todas as dívidas dos países europeus que excedam um dado limite do PIB. Juntando-lhe a componente política, através de uma câmara parlamentar dos países do euro, formada a partir dos parlamentos nacionais e na qual se deveria poder decidir o nível comum de défice anual, em função do estado real das economias. Esta é a única forma de sair em definitivo da grande recessão.

Hoje, como ontem, estamos perante um problema de imaginação. Este desafio ditará o nosso futuro. Que será melhor ou pior consoante acreditarmos, ou não, na força das nossas convicções. Tal como antes, é preciso ousar. Afinal, nós já pudemos antes. Consigamos todos agora de novo e enfim. Obviamente podemos e devemos começar já a mudar.

João Caraça, físico; Gustavo Cardoso, sociólogo; Sandro Mendonça, economista

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