Desequilíbrios no financiamento, gestão e direitos bloquearam negócio da TAP

Regulador da aviação impôs 24 medidas cautelares à companhia de aviação, obrigando-a a remeter-lhe, num prazo máximo de três dias, todas as actas de reuniões e contratos celebrados.

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Contrato de venda da TAP deverá ser assinado em Maio AFP PHOTO / PATRICIA DE MELO MOREIRA

Foram quatro os motivos que levaram a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) a bloquear a privatização da TAP, nos moldes fechados pelo anterior Governo. Na deliberação de 55 páginas, a que o PÚBLICO teve acesso, o regulador conclui que existem indícios de incumprimento das regras europeias no que se refere à estrutura de financiamento, ao modelo de gestão e aos direitos e deveres dos dois accionistas que compraram 61% da companhia no final de 2015: Humberto Pedrosa e David Neeleman.

No capítulo dedicado aos “indícios da inexistência de controlo efectivo por um nacional do Estado-membro”, a ANAC começa por fazer referência a um “desequilíbrio nas obrigações de capitalização e financiamento da actividade da TAP SGPS assumidas pelos sócios”. O supervisor da aviação explica que ficou sob responsabilidade da Azul, “uma companhia aérea brasileira detida pelo sócio minoritário”, David Neeleman, um empréstimo obrigacionista de 120 milhões de euros. Na deliberação, sublinha-se que a Azul “não terá seguramente vocação financeira (desconhecendo-se inclusive se, de acordo com a lei brasileira, terá mesmo capacidade jurídica) para subscrever os referidos instrumentos de dívida”.

Este financiamento, entretanto já aprovado pelo regulador e em assembleia geral da TAP, iria, no entender da ANAC, “agravar significativamente a dependência financeira do sócio maioritário (…) face ao sócio minoritário”. E, além disso, pretendia-se que fosse “garantido através de penhor sobre direitos essenciais à operação” da transportadora aérea. Como o PÚBLICO noticiou, a proposta inicial do consórcio passava por dar como garantia deste empréstimo o programa de milhas Victoria, o que foi rejeitado pelo supervisor.

Na deliberação, que foi conhecida, sem este detalhe, a 19 de Fevereiro, refere-se ainda que Humberto Pedrosa, que detém 51% do consórcio que comprou a companhia de aviação, ficaria “integralmente dependente das contribuições” de Neeleman, uma vez que o dinheiro a investir pelo empresário norte-americano corresponde “a 94,5% do total previsto no plano de capitalização”. A ANAC sintetiza, assim, que existe uma “disparidade económica notória” entre os accionistas da Atlantic Gateway.

Quem nomeou quem?

Num segundo capítulo, sobre o governo societário plasmado nos estatutos do consórcio, o supervisor escreve que “não existe evidência de que o sócio maioritário tenha expertise e know-how específico no sector da aviação, sendo certo que, ao invés, o sócio minoritário é um industrial do sector”. Mas a ANAC vai ainda mais longe, ao levantar dúvidas sobre “os termos a que presidiu a selecção dos gerentes por parte” de Humberto Pedrosa, a quem cabia nomear cinco dos nove membros da administração. É dado, por exemplo, o caso de Robert A. Milton, nomeado por Neeleman, e de Sydney John Isaacs, escolhido pelo empresário português, afirmando que “parecem ter ligações entre si, sendo – ou tendo sido – administradores da ACE Aviation”.    

No documento, sublinha-se ainda que “compete sempre à DGN [a holding de Neeleman] nomear o chief comercial officer [director comercial]”, Trey Urbahn, a quem foi dada “a responsabilidade efectiva e o poder de implementação e execução diária da política comercial da TAP SGPS e suas subsidiárias, o que contraria frontalmente uma recomendação da ANAC”. E acrescenta-se que há um conjunto de deliberações importantes, como as que dizem respeito a investimentos, parcerias e aquisição de participações sociais, cuja aprovação “é condicionada à obtenção de acordo/voto favorável do sócio minoritário”, além de estarem previstas uma comissão de nomeações e remunerações e uma comissão de revisão, “de composição absolutamente paritária”.

O terceiro motivo que levou o supervisor a tomar esta deliberação diz respeito às chamadas “situações de bloqueio”. Na deliberação, lê-se que o acordo entre os dois sócios prevê que, quando uma situação de bloqueio é imputável a uma das partes, o mecanismo para a ultrapassar confere à parte que não é responsável por esse bloqueio a possibilidade de “exercício de uma opção de compra da participação social” detida pela outra parte. O problema é que o mesmo acordo estabelece que “apenas o sócio maioritário poderá promover a aprovação de qualquer deliberação” que suscite uma situação de bloqueio, pelo que “a opção de compra será, nestes casos, estipulada efectivamente a favor do sócio minoritário, limitando a margem de liberdade na tomada de decisões por parte do maioritário”.

Num último capítulo, é feita uma análise aos direitos especiais atribuídos ao empresário norte-americano, para se concluir que lhe foram atribuídos benefícios “habitualmente conferidos ao sócio maioritário”. A ANAC refere-se, concretamente, ao direito de drag along, que, regra geral, obriga os accionistas com menor participação no capital a desfazerem-se da sua participação quando o maioritário o fizer. Mas, no caso da TAP, o supervisor constata que essa regalia é dada exclusivamente a Neeleman e Humberto Pedrosa terá de seguir os seus passos, nas condições que o empresário norte-americano determinar.

Os bloqueios da ANAC

A consequência mais visível da deliberação foram os bloqueios impostos à gestão da TAP, num total de 24 medidas cautelares. Entre elas está, como o PÚBLICO noticiou, a proibição de celebrar contratos acima de um milhão de euros e de fazer aumentos salariais ou de regalias atribuídas aos trabalhadores. Mas há outros impedimentos, como o de comprar ou vender participações, alterar práticas comerciais ou desistir de acções judiciais.

A ANAC determina ainda que a TAP tem de manter o regulador “regularmente informado sobre o cumprimento das limitações de actuação (…), reportando todas as informações relevantes para o respectivo acompanhamento e fiscalização e enviando-lhe, num prazo máximo de três dias úteis sobre a data da sua realização”, as actas das reuniões dos órgãos sociais, bem como “quaisquer contratos, comunicações, notificações ou outros documentos relevantes”. Os bloqueios duram, como o supervisor tinha divulgado a 19 de Fevereiro, três meses a contar da data da apresentação de todas as informações que o supervisor considera necessárias para tomar uma decisão final sobre a venda da companhia.

É que, apesar de o negócio ter sido notificado a 26 de Novembro, a ANAC assume na deliberação que não lhe foram prestados todos os esclarecimentos. O supervisor refere que a notificação foi feita dentro do prazo estabelecido, “sem prejuízo de ainda não terem sido recebidos todos os elementos relevantes para a sua plena apreciação”.

Um outro ponto importante do documento refere-se ao facto de a operação que foi notificada “assumir contornos estruturalmente diferentes da operação anteriormente apresentada”, quando o contrato de venda foi assinado com a Atlantic Gateway, em Junho de 2015. De entre as principais mudanças, a ANAC destaca “a diferente estrutura de financiamento”, em que a Azul veio substituir o fundo Cerberus como veículo de injecção de dinheiro, e o facto de a forma jurídica do consórcio se ter alterado, passando de uma sociedade anónima para uma sociedade por quotas, além de outras alterações introduzidas no acordo parassocial”.

Deliberação sem vogal

Quando o sentido da deliberação do supervisor foi conhecido, o Governo já tinha anunciado, a 6 de Fevereiro, um novo pré-acordo de venda da TAP, que fará com que o Estado passe a ter 50% do capital (em vez dos actuais 34%). A ANAC faz referência a este entendimento, mas não o analisa profundamente, até porque o contrato ainda nem foi assinado, o que deverá acontecer só em Maio. No entanto, e apesar desta alteração, nada garante que o regulador não volte a colocar obstáculos, mas o executivo aproveitou a decisão do supervisor para procurar clarificar ainda mais qual será o reforço de poder do Estado neste novo modelo de privatização.

Recorde-se que as regras europeias impedem que as transportadoras aéreas sejam controladas por investidores não-europeus. E, não só o consórcio privado é o mesmo (não se conhecendo alterações aos seus estatutos), como a gestão ficará totalmente nas suas mãos, embora o Estado tenha direito a nomear seis administradores com peso nas decisões. No entanto, vão ser reduzidos os seus direitos económicos: de 34% para um máximo de 18,5%. O supervisor escreve que “a celebração do memorando de 6 de Fevereiro e os efeitos dele decorrentes em nada afectam ou alteram, nesta data, a conclusão quanto à existência de fundados indícios acerca da inexistência de controlo efectivo (…) por parte de um nacional de um Estado-membro”.

A deliberação tem ainda uma particularidade, que ganha relevância num momento de polémica na gestão da ANAC. Como o PÚBLICO avançou, a vogal do regulador, Lígia Fonseca, já não assina o documento. Uma ausência que não pode ser dissociada do facto de nunca ter chegado a ser nomeada para o cargo, encontrando-se ainda em regime de substituição no antigo Instituto Nacional da Aviação Civil, que deu origem ao novo supervisor da aviação. A decisão foi tomada às 10h de 19 de Fevereiro. Poucas horas depois, Fernando Pinto, presidente da TAP, seria notificado da mesma e instado a deslocar-se às instalações da ANAC para entregar documentos em falta. Fonte da ANAC esclareceu que a gestora se encontrava fora do país numa reunião da Agência Europeia para a Segurança da Aviação.

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