Desemprego e qualidade do emprego: círculo vicioso ou virtuoso?

Não será já tempo suficiente para procurar diminuir o desemprego (também) pela melhoria da qualidade do emprego (e vice-versa)?

Em período eleitoral, pouca matéria torna mais acesa a discussão político-partidária que as estatísticas do desemprego. As estatísticas, do desemprego e não só, demais a mais quando tendo como fontes organismos oficiais (que, por isso, se presumem competentes e isentos), são indicadores imprescindíveis, importantes instrumentos de análise, de projecção e de decisão.

Mas, neste domínio, é com preocupação que alguém que continuadamente acompanha de perto o que realmente se passa nos locais de trabalho algum conclui que a discussão sobre o “sobe-desce” das taxas estatísticas de desemprego desvia a atenção de algo tão ou mais importante: o que, nos locais dos locais de trabalho, nas empresas e administração pública, se passa no que respeita à qualidade do emprego, quanto às condições em que, realmente, as pessoas realizam o trabalho.

Alheemo-nos então aqui, por uns minutos, da polémica sobre as estatísticas (das quais, aliás, praticamente só tem interessado a “taxa”) do desemprego e das conhecidas reservas que, sobretudo pela Oposição (mas não só), lhes têm sido apontadas no que respeita a (não) traduzirem o desemprego real: os métodos estatísticos, a falta de correspondente crescimento da economia, a emigração, o emprego financiado pelo Estado (CEI, estágios, formação), os “desencorajados”, o “subemprego”, etc..

Centremo-nos, sim, nos indicadores da qualidade do emprego. Mas não se pense que com isto se pretende afastar o debate sobre o desemprego, propriamente dito. Pelo contrário.

O desemprego “cá fora” é, nos locais de trabalho, gerador do sentimento de insegurança e de medo das pessoas. E é muito esse sentimento que não só as inibe de exercitarem (ou até só reivindicarem) os seus direitos como as força a “aceitarem” condições de trabalho degradadas, enfim, pior emprego.

É também muito por isto que, em muito do emprego que faz baixar as estatísticas do desemprego, há incumprimento da legislação, regulamentação e convenções colectivas de trabalho: dissimulação do contrato de trabalho (fictícia “prestação de serviços”, caso dos falsos “recibos verdes”), subversão das regras de contratação de trabalhadores a termo e temporários (por inexistência dos motivos legais ou por ocupação sucessiva desses trabalhadores em postos de trabalho permanentes), aumento do período normal de trabalho e desregulação de horários de trabalho, não pagamento devido de trabalho suplementar, alteração abusiva de local de trabalho e de funções, salários em atraso ou inferiores aos mínimos legais ou contratuais, não declaração ou subdeclaração de relações de trabalho e de salários à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e Segurança Social. E mesmo, mais grave, não aplicação de normas de segurança e saúde com risco de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

Portanto, há pior emprego (também) porque há mais desemprego.

Ora, essa degradação da qualidade do emprego suscita o risco de perda da saúde (se não da vida) das pessoas, bem como a sua desqualificação profissional, já que, em regra, qualquer experiência profissional sem condições de trabalho não só não qualifica como é profissionalmente desqualificante.

Associadamente, Portugal é na União Europeia um dos países com maior proporção de relações de trabalho com vínculo precário, na linha seguida, há pelo menos uma década, de eliminação de emprego permanente e aumento do não permanente (trabalho a termo e temporário). Empresas há em que todos, mas todos, os trabalhadores são contratados a termo, temporários ou em regime de “trabalho independente” (“recibo verde”). O trabalho precário, que legalmente deve ser excepção, passou, de facto, a regra.

Ora, por mais apologia que por aí se faça das virtudes da “diversificação de experiências profissionais”, a realidade é que, em regra, os trabalhadores nessa condição de vínculo laboral precário, não só se desprofissionalizam como se desqualificam progressivamente. De facto, a sucessão (muitas vezes intermitente, intervalada com períodos de desemprego) dessas “experiências profissionais diversificadas” resume-se a uma sequência errática de funções em que não é a profissão ou qualificação que interessa mas as tarefas temporárias que é preciso “despachar”, não havendo portanto aí qualquer lógica profissionalizante ou qualificativa.

Daí que, com condições de trabalho degradadas e (sobre)ocupadas (com aumento dos ritmos de trabalho ou da duração do trabalho) em postos de trabalho desqualificados em si e sem lógica e condições de qualificação (ou mesmo de requalificação), as pessoas vão perdendo condições físicas, mentais e profissionais para se (re)empregarem, vão perdendo “empregabilidade”. E, assim, muitas, (re)caem no desemprego.

Para além disso, na medida em que não é possível dissociar as condições de trabalho das condições de produção de bens ou da prestação de serviços pelas empresas, a degradação das condições de trabalho vai, necessariamente, tarde ou cedo, repercutir-se em perdas de produtividade e de qualidade. E, daí, na “competitividade” que tão apresentada é como condição da criação (ou, pelo menos, da manutenção) de emprego.

É também muito por isto que aumenta o desemprego de longa duração (e, mesmo, de muito longa duração), com o risco de, como refere o próprio FMI no seu último relatório (apresentado em 27/72015), faz crescer o desemprego estrutural (dito “natural”).

Mais desemprego, (também) porque há pior emprego. Há pior emprego, com menos qualidade, porque há mais desemprego. Mas, vice-versa, há mais desemprego porque há menos qualidade do emprego.

Se bem que esta relação inversamente profissional entre desemprego e qualidade do emprego possa não ser imediatamente visível (e muito menos nas estatísticas, já que, pelo contrário, perversamente, a descida da taxa de desemprego assenta muito na criação ou manutenção de emprego precário e de condições de trabalho degradadas), estruturalmente, este círculo vicioso não vai deixar de ter consequências preocupantes. Não apenas na subida do desemprego estrutural (“natural”) mas, sobretudo ao nível individual, bem como micro e macroeconómico e social (empresas, família, educação, saúde, segurança social, etc.), dada a centralidade do trabalho (mormente, das condições em que as pessoas o realizam) na vida das pessoas, das empresas e da sociedade.

O caminho que tem vindo a ser seguido no “combate ao desemprego” tem assentado muito na desregulamentação de direitos, na precarização e fragilização dos trabalhadores nas relações de trabalho e, daí, na desregulação do quadro normativo e na degradação das condições de trabalho. Enfim, na diminuição da qualidade do emprego.

Não será já tempo suficiente para, gestionária e politicamente, arrepiar caminho e, pelo contrário, procurar diminuir o desemprego (também) pela melhoria da qualidade do emprego (e vice-versa)? 

Inspector do trabalho (aposentado)

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