Defender o Gaspar!

Ouço cobras e lagartos do nosso ministro das finanças. O homem faz tudo errado e falha em todas as previsões. Pois eu não sou economista, estarei muito longe de um dia saber como ele de ciência económica mas de gestão sempre estudei um bocadinho e se me visse a aceitar um lugar como responsável financeiro de uma empresa perto da falência ver-me-ia, por certo, a fazer o mesmo que ele ou parecido, nas devidas proporções.

Todos nós temos um pouco de gestores, uns porque academicamente por aí enveredaram, outros porque a experiencia nas empresas os obrigaram e a generalidade por força da circunstância dum rendimento menor do que aquilo que gostariam. Em resumo, de gestor e de treinador de futebol, quase todos temos um pouco. Confundir gestão com economia é muito frequente, não o queria fazer aqui, mas gostaria de mostrar situações análogas numa empresa que exigiriam procedimentos dum responsável financeiro que me parecem equiparáveis e justificam muito do percurso de Vitor Gaspar na condução do seu ministério.

Fui então convidado para fazer parte da administração de uma empresa com sérias dificuldades financeiras, para tratar exactamente dessa área. A empresa há muitos anos que vive tempos difíceis, tem uma dimensão complicada para o mercado global em que vivemos, concorrentes fortes na maioria da gama dos seus produtos e pessoal que nem sempre produz tanto como devia. A última administração fez dois mandatos, ou antes, um e meio, um completo e um segundo que ao fim de dois anos foi interrompido em assembleia-geral por se considerar demasiado nefasto para os accionistas e trabalhadores. Esta última administração, pouco antes de ter sido corrida, resolveu um problema grave de falta de dinheiro e mesmo já não se conseguindo financiar a taxas decentes, como era hábito, contraiu uns novos empréstimos sindicados cedendo a esses participantes um papel muito activo na condução futura da empresa.

As condições para aceitar este lugar não pareciam em nada excepcionais, a única garantia era de uma intensidade de trabalho bastante superior ao que estava habituado, a remuneração era miserável, o ambiente de trabalho ao nível dos directores das diferentes áreas da empresa parecia complicado, a exposição pública não me agradava e as probabilidades de sucesso não estavam de forma alguma asseguradas mesmo que me empenhasse e aplicasse tudo o que sabia. Acabei por anuir às insistências dos agora meus colegas de administração, em especial do presidente, seria algo que deveria encarar com espírito de missão, pelo bem de toda aquela gente que dependia da empresa. Acabei por aceitar.

Os primeiros tempos serviram para conhecer a casa e ter uma ideia dos problemas da empresa. Aproveitar o estado de graça da mudança da administração e encarar os credores, em especial aqueles três do empréstimo sindicado. Estava combinado que o empréstimo se ia fazendo em tranches mas era preciso para cada uma delas apresentar um plano que concordassem sobre a capacidade de vir a gerar receitas para cumprir o serviço da dívida. Negociar com os credores não é pêra doce, todos o sabemos, querem sempre mais garantias, o que se entende. Numa coisa a administração anterior teve razão, os juros destes empréstimos eram razoáveis mas bom era quanto antes conseguir substituir esta gente, nomeadamente ir aos mercados emitir dívida como antes esta empresa fazia, de modo a voltarmos a poder decidir o nosso dia a dia sem tantas restrições.

O diagnóstico da empresa fez-se depressa, confirmavam-se as suspeitas de problemas em tudo quanto era sítio. Identificamos uma montanha de investimentos sem qualquer rendibilidade, o que naturalmente é um cancro para qualquer empresa, alguns ainda em curso. Os nossos agentes vinculados, esses que nos ajudam nas compras e nas vendas por troca de umas comissões, faziam fila no meu gabinete, mostravam-me contratos complicados que tinham feito com anteriores administrações e que eu teria que respeitar. Eu via que os custos de produção eram altos, que havia desperdícios em barda mas receava com tanta tradição e com estes contratos leoninos que iria demorar algum tempo a limpar a casa. E os participantes do empréstimo não largavam o telefone, acenavam com os euros que eu tanto precisava mas pediam mais e mais relatórios como prova de conformidade aos seus interesses.

Nas reuniões de administração, os meus colegas defendiam a sua visão estratégica que tinham prometido aos accionistas. Era preciso produzir mais, atrair novos parceiros de negócio, criar valor. Mas como? Com que dinheiro? Esta gente empresta-nos dinheiro mas lembrem-se que são montantes já gastos há muito. Temos nesta altura é que subir os preços, em tempo útil não há mais nada a fazer. Depois com mais tempo tratem de alterar esses processos produtivos. Olhem aqui a estrutura de custos das empresas concorrentes, temos que conseguir maior eficiência, bom é que se consiga continuar a produzir o que nos habituamos mas temos que gastar menos dinheiro a conseguir as mesmas coisas! Saíam de lá todos conformados, insatisfeitos mas conformados. Vamos ter que dizer aos accionistas, isto vai demorar mais um bocado e não pode ser como o que prometemos.

Quando se soube que ia subir os preços, todos me caíram em cima. Isso é um absurdo, temos é que produzir e vender mais! Eu sabia que eles tinham razão para estar preocupados, aumentar os preços tem sempre um efeito negativo nas vendas mas eu não tinha alternativa em tempo útil.

O ano de 2012 não correu bem. A história da subida dos preços teve um efeito nas vendas bastante superior ao que eu estava à espera e os meus colegas da administração, por uma razão ou por outra, não conseguiam ainda aquelas economias que eu precisava. Os credores percebiam os desvios, também eles se preocupavam com os multiplicados mal estimados mas achavam que era preciso manter a política. A imagem da empresa como um todo melhorou um pouco. Eu era odiado internamente mas lá ia conseguindo transmitir alguma credibilidade aos que nos emprestavam dinheiro. Tinha que aproveitar isso, mudar um pouco o plano estratégico, mostrar-lhes que seria mais seguro para eles se pensássemos mais no longo prazo, mas tinha que o fazer com muito cuidado, sabia que a decisão era deles.

As pessoas muitas vezes esquecem quem manda efectivamente nas empresas. Se olharmos para o balanço de uma empresa percebemos melhor. Existe do lado esquerdo um conjunto de activos, terrenos, máquinas, sistemas informáticos e de comunicações, algum dinheiro, stocks de matérias-primas e outros produtos, tudo o que bem conjugado serve para produzir. Do lado direito temos registado aqueles que detêm o activo, aquilo que chamamos de capitais próprios, o dinheiro que fomos acumulando com lucros passados, e o que chamamos de passivo, basicamente os credores que nos emprestaram dinheiro que precisamos. O funcionamento de uma boa empresa é simples, utiliza-se o dinheiro dos capitais próprios e do passivo, compram-se os activos para produzirmos coisas que vendemos com alguma margem de lucro, pagamos com esses lucros os juros do passivo e ficamos com o resto como aumento do capital próprio. Por tradição cabe aos detentores do capital próprio as decisões do dia-a-dia mas naturalmente que isso vai mudando conforme aumenta a percentagem do passivo. Nesta empresa existe uma situação de falência técnica. Quer isto dizer que o montante do passivo já é maior que o activo. Não admira que numa situação destas esteja previsto que os credores tomem conta da empresa ou pelo menos que queiram controlar as decisões da administração. Claro que os credores têm um dilema nestas situações, se querem juros altos podem comprometer o funcionamento da empresa e perdem o seu dinheiro. As soluções são variadas e casuísticas, há casos em que os credores têm que assumir perder uma parte do dinheiro para permitir que a empresa continue e venham a receber algum do que aí investiram.

Para o ano de 2013 decidi por uma estratégia de choque, aumentar ainda mais os preços. Mais uma vez, claro, que não foi uma decisão só minha, foi uma estratégia combinada e aceite pelos credores, em especial aqueles do empréstimo sindicado. Mas surgiu um problema “administrativo”, o conselho de auditoria, o conselho fiscal e o órgão do compliance, todos pertencentes aos órgão sociais da empresa consideraram que este aumento é superior ao que os estatutos da empresa permitem. Esta gente tem mesmo este papel, verificar a conformidade dos actos praticados pela empresa, inclusive as decisões da administração. Claro que fiquei chateado, não era essa evidentemente a minha interpretação dos estatutos. Agora só restava uma solução, encontrar o dinheiro que faltava por outro lado. Em novo conselho de administração transmiti aos restantes colegas, acabou-se o tempo para pensar em reformas, é preciso agir bem e depressa e atacar os desperdícios que todos sabemos existirem. Vocês terão muitos amigos que não vão gostar disto mas que remédio, há que fazê-lo pela sobrevivência da empresa.

No dia seguinte lembrei-me de uma conversa antiga com António Champalimaud, no inicio da década de 90. Ele era um homem polémico mas com inegável valor como gestor. Tinha readquirido a maioria da Seguradora Mundial Confiança por perto de 100 milhões de euros mas a companhia perdia dinheiro e era urgente racionalizar os custos de produção. Um problema igual ao que tenho agora. Dizia então ele na sua sábia sabedoria: “a partir de hoje sou eu que passo os cheques!” Parecia uma coisa simples mas foram evidentes os resultados. Toda a estrutura da empresa passou a ter mais cuidado como gastava, com a assinatura de cada cheque podia vir a pergunta “que é isto?”. Dizia ele uns meses depois “é curioso que quando me sento em cima do dinheiro os custos baixam pelo menos 10%”.

Apressei-me em fazer uma comunicação interna para os meus colegas. “A partir de agora sou eu que passo os cheques, ponham-se finos e não gastem a mais”.

Curioso que me voltou a cair tudo em cima outra vez, que eu ia parar a empresa, que ia faltar dinheiro para as coisas básicas, que eu devia era mandar os credores para as urtigas e que tudo isto era um disparate. Francamente acho que não. Fui eu que dei a cara por este projecto, há muita coisa a correr bem mas não chega. Não é hora de ser político, é hora de produzir. Aos tantos que me criticam reconheço alguma razão a alguns, mas não tenho tempo para lhes dar importância ou protagonismo. Vou às assembleias quando tenho que ir e explico devagarinho o que me proponho, numa expectativa tola que eles o entendam.

Reconheço que tem que ser uma medida extraordinária, esta empresa precisa e muito de crescer e é necessário investimento. Se voltar a errar nas minhas previsões e se perder a credibilidade dos credores perderemos todos ou, no mínimo, correremos esse risco. 

Muitos dizem que não sou político. Admito que podem ter razão. Também não o era quando me pediram para dar esta ajuda, disseram que precisavam de um técnico e foi nessa qualidade que vim. Não vim para dar entrevistas ou para falar com jornalistas, esse é o pelouro do departamento ao lado ou do presidente, se eles falharem.

Consultor em projetos de investimento e seguros de crédito

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