Defender a igualdade e a liberdade

Aceitar a desigualdade é aceitar que a liberdade seja um bem comercial e não um bem universal.

Todas as pessoas de esquerda têm esta experiência. Em discussões familiares, conversas de amigos ou debates públicos, quando estão em causa políticas públicas ou o papel que o Estado deve assumir no combate desta ou daquela iniquidade e a troca de palavras se torna mais viva, há sempre um momento em que algum dos nossos interlocutores, perante o esgotamento dos seus argumentos, acaba por disparar um “Pois, na União Soviética é que era bom!”.

Existe uma versão soft da mesma tirada, que consiste em classificar todo o combate às desigualdades como um atentado à liberdade, segundo a linha de pensamento que defende que a desigualdade é inerente à liberdade pois, sendo os homens todos diferentes entre si, as mesmas condições de partida darão sempre origem a progressos diferentes (isto é, a desigualdades) entre os indivíduos. A desigualdade seria assim não um mal, mas uma consequência inevitável de um bem maior.

Há várias falácias na base deste raciocínio. Uma delas é a insinuação de que o combate às desigualdades teria como objectivo promover uma absoluta igualdade entre todos os cidadãos em todos os domínios, independentemente da acção das pessoas, das circunstâncias e dos momentos — o que seria uma recompensa injusta dos diferentes méritos e esforços de cada um e um desincentivo para que cada pessoa se esforçasse por melhorar a sua vida. O cenário com que esta argumentação pretende assustar-nos é o de uma sociedade teoricamente igualitarista mas de facto totalitária, que não respeitaria diferenças naturais mas, pelo contrário, tentaria destruí-las através de qualquer meio e tentaria impor uma sociedade uniformizada como a que certos tipos de ficção científica nos apresentam.

Outras falácias são a sugestão de que existem “condições iguais à partida” ou “igualdade de oportunidades” para todos os indivíduos, independentemente do país, do bairro, da casa e da família onde nascem; a sugestão de que na sociedade existem regras que garantem uma competição leal e em igualdade de circunstâncias entre todos os indivíduos e todas as organizações (“a level playing field”); e, consequentemente, a sugestão de que as diferentes condições de vida dos diferentes indivíduos se devem, assim, aos seus méritos ou deméritos pessoais e não a um favorecimento de classe ou qualquer outro.

Não é fácil perceber as críticas feitas às políticas de combate às desigualdades em nome de uma teórica defesa da liberdade. E não é fácil porque é muito fácil, inversamente, constatar que a existência de desigualdades gritantes, como as que existem na nossa sociedade, limitam a liberdade de enormes camadas da população. Basta visitar um qualquer bairro de lata, basta conhecer a vida de uma família de pais desempregados, para constatar que o grau de liberdade de que estas pessoas gozam é residual. Aceitar a manutenção da desigualdade é, de facto, defender diferentes níveis de liberdade, a ser gozados de acordo com o nível económico dos cidadãos e aceitar que a liberdade seja um bem comercial e não um bem social, ao qual deve ser garantido um acesso universal.

O amor da liberdade não nos obriga a aceitar que dezenas de milhares de pessoas vivam em bairros de lata, como não nos obriga a aceitar que crianças deficientes sejam abandonadas nos hospitais por pais que não as podem manter, como o PÚBLICO ontem noticiava. Seria uma triste liberdade a que nos obrigasse a tal abjecção.

O que a esquerda em geral defende — e uma parte da direita, inspirada na doutrina social da Igreja Católica  é não uma sociedade empenhada em destruir diferenças mas uma sociedade onde as desigualdades no acesso aos bens essenciais (à família, à habitação, à saúde, à educação, à cultura) são activamente combatidas. Há razões de dignidade humana para isso, mas há também razões económicas. Sabemos hoje que as sociedades desiguais são menos eficientes, pois a desigualdade destrói a confiança, gera a violência e mina a cooperação. Como sabemos também que a pobreza à nascença é uma pena perpétua, uma condenação a uma vida de carência, de doença, de fracasso, de medo e de violência. Não são só as condições sociais que fazem com que crianças que nascem em bairros pobres obtenham resultados escolares e profissionais inferiores aos outros. Nem é a sua falta pessoal de talento ou de esforço. São as próprias condições do seu desenvolvimento biológico na primeira infância que as condena a uma vida de pobreza. De que liberdade gozam estas crianças?

A liberdade é um dos grandes bens mas não é o valor supremo. Nenhum bem se pode sobrepor a todos os outros sob pena de instituirmos a tirania, como dizia um verdadeiro liberal como Isaiah Berlin: “A liberdade total para os lobos é a morte para as ovelhas. A liberdade total dos poderosos e dos dotados não é compatível com o direito a uma existência decente dos fracos e dos menos dotados.”

Jornalista, jvmalheiros@gmail.com

Sugerir correcção
Ler 16 comentários