Curto

As vendas a descoberto, ou posições curtas, são assim votos públicos de não confiança num ativo financeiro e na entidade que o emite.

O proverbial alfacinha que vendeu um elétrico ao saloio não passa de um tipo. O tipo do oportunista sem escrúpulos que se aproveita dolosamente da simplicidade do forasteiro. É verdade que os saloios deste mundo deveriam acautelar-se seguindo a máxima antiga caveat emptor: comprador acautela-te! Mas atendendo que ter cautela é arte difícil de adquirir para a maioria, e portanto não pode ser imposta, e que a confiança entre cidadãos é um bem público, com muitas e muito positivas externalidades sociais e económicas, os poderes públicos tem vindo a estabelecer mecanismos de proteção aos saloios. Entre os quais estão os reguladores das atividades financeiras.

É no entanto de lamentar que mecanismos naturais de proteção aos menos cautos sejam limitados e desvitalizados, quando não mesmo completamente ilegalizados. Um desses mecanismos é, não sem ironia, o da venda a descoberto. Quem, por informação ou convicção, acha que o mercado está a sobreavaliar uma ação, se a tiver vende-a. Pode assim evitar uma perda que, segundo a sua informação ou convicção, mais tarde ou mais cedo irá acontecer. E se não a tiver? Também a pode vender, não como o alfacinha do elétrico que acaba por nunca transferir a propriedade, mas fazendo a entrega de uma ação que pediu emprestada. Que mais tarde devolverá a quem lha emprestou quando o preço tiver caído e ele a tiver recomprado.

As vendas a descoberto, ou posições curtas, são assim votos públicos de não confiança num ativo financeiro e na entidade que o emite. Quem as faz espera ganhar dinheiro. Mas também cumpre uma função social útil porque as vendas a descoberto servem de aviso aos outros investidores de que nem tudo pode estar bem com o papel que vai comprar. Que pode estar a haver inépcia na gestão da empresa. Ou incompetência. Ou fraude. Os curtos estão para o mundo financeiro como os dislike estão para as páginas da net. Mas ao contrário destes, envolvem um elevado risco financeiro para quem as faz, e os ganhos são limitados. Daí o seu valor informacional. Daí também a pressão feita pelos alfacinhas deste mundo, por aqueles que vendem fantasias que depois se transformam em pesadelos, para que sejam ilegalizadas.

A história da Solv-Ex mostra porquê: estraga-lhes o arranjinho. No anos 90 a Solv-Ex era uma empresa cotada que, alegava o seu fundador, presidente e CEO, John Rendall (1934-2008), tinha capacidade de extrair não só petróleo, mas também alumínio e metais preciosos de areias betuminosas. Em Novembro de 1995 cotava a $8. Um anúncio da empresa no The Wall Street Journal proclamava: “Nunca ouviu falar de nós! Mas em breve ouvirá, pois vamos revolucionar a indústria petrolífera!” Em Janeiro de 1996 a cotação subia para $37, mas para alguns o negócio cheirava a esturro. O volume de vendas a descoberto disparou, e a 2 de Fevereiro a cotação tinha caído para $25. Aqui será bom notar que uma baixa na cotação em nada afeta as operações industriais e comerciais de uma empresa. Nem sequer afeta a sua posição financeira, apenas diminui a sua capacidade de angariar mais capital. Isto é, torna menos fácil fazer separar os saloios do seu dinheiro.

Como outros alfacinhas antes dele, Rendall inicia então uma campanha pública contra os curtos acusando-os de ignorantes, selvagens e gananciosos. A 5 de Fevereiro a Solv-Ex faz um short-squeeze, um “esganar de curtos”: para obrigar à liquidação das posições curtas envia um fax aos acionistas dizendo: “para controlar o valor dos vossos investimentos (…) peçam a entrega dos vossos certificados acionistas aos vossos corretores.” Isto obrigou os curtos a recomprar as ações para as devolver a quem lhas tinham emprestado e agora lhas pediam de volta. No final do mês a cotação ultrapassava os $35, e a maioria dos curtos deixa o mercado com muitos milhões de prejuízos.

Mas o ruído tinha sido tal que os saloios e a SEC tinham acordado. Uns começaram a vender e a outra abriu uma investigação. Quando a cotação da empresa foi suspensa, a 1 de Julho de 1997, o preço estava a $4, e a informação que entretanto tinha sido tornada pública já não permitia a ninguém duvidar que os promotores da empresa, e Rendall em particular, tinham mentido e defraudado. Pouco depois a empresa faliu e os acionistas perderam os $825 milhões que nela tinham posto. Rendall foi condenado por fraude com uma multa de, pasme-se!, $5 mil, e emigrou para a Austrália à procura de outros saloios. Apesar de terem deixado passar a bola por entre as pernas, ninguém na SEC se demitiu. Pergunto: para que serviu a SEC neste caso? Por outro lado, não houve nem uma palavra de apreço dos poderes públicos para com os curtos que, com a sua investigação sobre as atividades da empresa e a custo de milhões de dólares, contribuíram para evitar que muitos outros investidores tivessem caído no logro da Solv-Ex. Não é de estranhar que a história se tenha repetido pouco depois com a Enron. E com o…

Professor de Finanças, AESE

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