“Cortar salários e tentar exportar não é uma estratégia para se sair da crise”

Para o economista da Universidade de Kingston Engelbert Stockhammer, “é decepcionante” que os países do Sul não juntem forças para desafiar “o domínio alemão” e propor alternativas.

Foto
Engelbert Stockhammer: "A Grécia e Portugal devem pedir para renegociar estes acordos" João Cordeiro

A Europa deve procurar uma maior coordenação das políticas salariais e deixar, preto no branco, que as desigualdades vão contra a Europa, defende o economista austríaco Engelbert Stockhammer, investigador em Economia Política na Universidade de Massachusetts e professor na Universidade de Kingston, em Londres. A Europa como um todo, diz, tem de mudar o chip para responder à crise e não é a força da Alemanha que deve intimidar os países em dificuldades. Stockhammer, que esteve recentemente em Lisboa no CES/UC a convite do Bloco de Esquerda para falar da crise do euro e das “contradições do neoliberalismo na Europa”, sustenta que a estratégia europeia não tem tido em conta as necessidades das pessoas, por estar dominada pelo “lobby dos mais ricos”. “A austeridade falhou o seu objectivo, é preciso mudar de estratégia”, diz.

Quando foi preciso reagir à crise, os líderes europeus apostaram na consolidação orçamental e em medidas de austeridade. Houve tempo para discutir a estratégia antes de a adoptar?
As políticas económicas adoptadas pela União Europeia (UE) em reacção à crise foram, desde logo, um erro. Essencialmente, o enquadramento da política orçamental – o Tratado Orçamental, a legislação Six Pack [acordo de governação económica] – estrangulou o controlo dos países sobre as suas próprias políticas orçamentais, sem oferecer uma coordenação efectiva e, em particular, sem dar aos países que enfrentam maiores dificuldades os instrumentos para debelar uma crise. Essencialmente, o que se verificou foi um agravamento da recessão nos países que já estavam mergulhados na crise.

Decorrido todo este tempo desde o início da crise, os Governos de países como Portugal, Espanha ou Grécia têm espaço de manobra para mudar a resposta à crise?
Primeiro, é preciso olhar para aquilo de que a UE precisa para depois se discutirem as respostas que cada país pode dar. E a Europa enfrenta uma crise cuja origem está no aumento da dívida privada, não da dívida pública, caracterizada por grandes desequilíbrios comerciais, sobretudo dos países como a Alemanha, a Áustria e a Holanda para os países do Sul. E estes desequilíbrios têm de ser corrigidos. Se tivermos uma situação em que existem desequilíbrios comerciais, tanto se pode fazer um ajustamento por contracção – é o que o países com défices estão a fazer, essencialmente cortando salários e reduzindo o produto para diminuir a procura interna –, como pode haver um ajustamento por inflação. Ao mesmo tempo, temos um enorme problema de dívida privada. E qualquer política que assente na austeridade e em cortes salariais – numa desvalorização interna – significa que as pessoas têm menos dinheiro no bolso e maiores dificuldades em pagar as suas dívidas, não havendo um aumento do consumo.

Como é que, neste momento, os países propõem uma alternativa quando já assumiram compromissos? Estamos num ponto sem retorno?
É muito decepcionante que os países em dificuldades não se tenham coordenado para propor alternativas para mudar a estrutura da União Europeia e que não tenham sido capazes de desafiar o domínio alemão nas decisões de política europeia. A situação actual é insustentável, porque estes países estão muito vulneráveis, precisam do apoio da UE e precisam do consentimento da Alemanha para fazer o que estão a fazer. Os países em crise deveriam juntar-se e começar por dizer: “Bom, há algo de errado em toda a política estrutural, que está a estrangular-nos, numa situação de desemprego elevado e empobrecimento real da nossa população”. Sim, estes países têm de propor alternativas. O Governo de um país como Portugal deve fazer propostas a nível europeu e ter como ambição criar uma maior cooperação entre os países do Sul. Por outro lado, as regras do Six Pack têm cláusulas de excepção para circunstâncias especiais. E se olharmos para as taxas de crescimento em Portugal, Grécia ou mesmo em Espanha e em Itália, estes são países que entraram em recessão [no período da crise] e que têm níveis de desemprego intoleráveis…

A troika está a garantir as necessidades de financiamento portuguesas. Há outra alternativa quando as decisões são submetidas a Bruxelas?
A Grécia e Portugal devem pedir para renegociar estes acordos [os memorandos de entendimento]. Os pacotes de austeridade não estão a resultar: o crescimento económico ainda não trouxe a retoma, os níveis de rendimento nacional estão mais baixos do que antes da crise e, ao mesmo tempo, a dívida pública aumentou de forma exorbitante. A austeridade não ajudou a reduzir a dívida, antes pelo contrário. A austeridade falhou o seu objectivo, é preciso mudar de estratégia, mesmo admitindo que no imediato será difícil. Afirmar que não há alternativa é falacioso. A estratégia claramente não tem tido em conta as necessidades das pessoas. E claramente há alternativas. Se compararmos a performance nos EUA, é melhor há muito tempo, porque foram muito menos restritivos em termos de política orçamental. E a política monetária tem sido um suporte muito mais explícito à política orçamental, com o objectivo de baixar o desemprego, enquanto a política monetária europeia se tem concentrado, por um lado, em manter a existência do euro e, por outro, em manter a pressão sobre os Governos nacionais para que estes continuem a aplicar políticas de austeridade.

O Banco Central Europeu (BCE) deve alargar o seu mandato, aproximando-se do mandato da Fed, que para além do controlo da inflação também se centra no desemprego? A Alemanha não quer ouvir falar disso.
Todos os objectivos de crescimento e desemprego devem ser parte da agenda do BCE. O BCE já alargou o seu mandato, mas deve ir mais longe. Deve, por exemplo, monitorizar a dívida acumulada pelos Estados-membros, porque, na situação actual, quando há uma conjugação de dívidas nacionais com a livre movimentação de capitais, assiste-se a uma fuga dos investidores dos países em crise. Uma forma de haver coordenação seria mutualizar uma parte [da dívida] dos Estados-membros.

É por isso que defende que esta não é, por si só, uma crise da dívida?
É muito mais uma crise financeira – a crise da dívida pública e crise da dívida privada estão intrinsecamente ligadas, uma vez que, quando os bancos comerciais, as seguradoras, etc. estão com problemas, o Tesouro não consegue assegurar financiamento de mercado.

Propõe uma saída keynesiana para a crise. Por que razão é isto hoje um tabu na Europa?
[Pausa] Certamente pelo facto de não estar em cima da mesa no debate político europeu. O consenso [na Europa] é tão forte em relação ao facto de que a inflação baixa é uma coisa boa, que uma inflação alta não é sequer considerada a sério como uma opção viável. Quanto aos impostos, é essencialmente por causa do poder do lobby dos mais ricos. Se fossem introduzidos impostos sobre a riqueza, isso pouparia automaticamente alguns grupos de rendimento [mais baixos]. As restrições do tipo de políticas que são discutidas revestem-se da hegemonia – e do poder do lobby – dos mais ricos e da elite liberal. E estão a ser ampliadas pela situação alemã e a sua preferência pela inflação baixa. Mas, politicamente, o que está na base é essencialmente o poder do lobby dos mais ricos.

Mesmo nos EUA, há alguns receios com o facto de a Reserva Federal estar agora a reduzir os estímulos à economia.
Há receios nos EUA sobre quais são os efeitos se e quando a Fed reduzir [completamente] o seu apoio à economia. Mas a Fed comprometeu-se a não o fazer de forma indiscriminada. Nos EUA, os mercados só continuaram a funcionar por causa da intervenção maciça da Fed e da sua compra de activos. Os bancos centrais sentem-se um pouco desconfortáveis com esta situação: fizeram-no, não porque pensavam que era uma boa ideia, mas porque olharam à volta, viram que estava tudo a ruir e precisavam de estabilizar a situação. Estão a fazê-lo e ao mesmo tempo não concordam e querem desistir. Mas, quando tentam desistir, vêem que os mercados não reagem bem e, por isso, têm de continuar [com programas de estímulo].

Nos EUA, o desemprego está acima de 6,5%. Olhando para a Europa: quando é que haverá uma descida do desemprego para níveis anteriores à crise?
O desemprego na Europa é extremamente elevado, próximo dos níveis da Grande Depressão. Essencialmente, o que os Governos têm de fazer é aplicar uma política expansionista: em primeiro lugar, têm de estimular o crescimento para criar emprego e assim baixar o desemprego. Ora, o que os Governos estão a fazer é muito mais encorajar a moderação e os cortes salariais, para diminuir o nível de desemprego, o que é uma estratégia limitada. Ao baixarem os salários, estão a diminuir a procura interna. A desvalorização interna e a estratégia de reduções salariais não estão a funcionar e não estão a criar emprego.

O que é, para si, uma boa estratégia salarial?
Os salários, mesmo em períodos de recessão, devem crescer normalmente em função da inflação e da evolução da produtividade. Perante uma recessão e um nível de desemprego elevado, não se podem cortar salários nominais, é só uma questão de tempo até o consumo começar a cair, até o investimento começar a cair e assim sucessivamente. O ganho que há nas exportações não consegue compensar a queda efectiva da procura interna. Não deve haver um crescimento dos salários de 20% – o crescimento deve ser moderado, mas tem de existir. A Europa precisa de coordenação das políticas salariais, porque o sistema actual só promove a desigualdade. Seria bom que a Europa reconhecesse que o nível salarial europeu não só não é um fardo para a competitividade, como pode ter um papel positivo na estabilização da procura interna. Cortar salários e tentar exportar não é uma estratégia para se sair da crise

Acredita em algumas mudanças nesse sentido depois das eleições europeias?
Os tratados são assinados entre os Estados-membros e, em princípio, podem ser reescritos. É um processo difícil, mas é uma questão de vontade política. O quadro actual é que não é viável economicamente. Diria até que os líderes assinaram um pacto suicida, fixando limites às dívidas e aos défices públicos. Implementados de forma estrita, conduzem a um desastre económico.

Sugerir correcção
Comentar