Empresas de telecomunicações usam a fidelização até ao “limite do absurdo”

Direcção-geral do Consumidor diz que há interpretação “dúbia” nos períodos de fidelização. Os operadores queixam-se de concorrência agressiva nos preços, os consumidores de ficar amarrados a contratos. A Anacom tem indícios de que há casos em que as empresas não cumprem os deveres de informação.

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Até Setembro chegaram a Deco 18 mil queixas sobre contratos de fidelização nas telecomunicações Bruno Lisita

“Tem a certeza que quer emigrar?” A pergunta de um assistente de atendimento ao cliente da Meo perante um pedido de informações sobre o cancelamento de um contrato, traduz bem a resistência das empresas de telecomunicações em abrir mão de um cliente. Não é por acaso que as queixas sobre fidelização (incluindo a chamada refidelização, a renovação do período obrigatório de vinculação) continuam a chegar à Deco e à Anacom, que num relatório de Outubro revelou haver indícios de que a lei nem sempre é cumprida.

A seguir à ASAE, a Anacom é a entidade que mais queixas recebe no livro de reclamações e no relatório do primeiro semestre refere “indícios de incumprimento da legislação” em 13% das situações reclamadas, incluindo em temas como a “informação sobre as condições de oferta dos serviços, em particular sobre a existência e duração dos períodos de fidelização” e as “práticas comerciais desleais” na contratação.

Perante infracções, a Anacom pode aplicar sanções (embora as “empresas temam mais a carga burocrática associada aos processos do que as multas”, como disse um advogado especialista em telecomunicações ao PÚBLICO). Porém, tratando-se do que chama “conflitos individuais” entre clientes e empresas, o regulador “não tem competências de mediação” e boa parte dos processos acabam na Deco ou em centros de arbitragem de consumo.

A legislação permite que as empresas fixem períodos contratuais mínimos de dois anos para recuperarem custos como a instalação e activação do serviço. E também que voltem a fidelizar clientes com promoções ou novos tarifários. No entanto, a avaliar pelo número de queixas sobre fidelizações (até Setembro chegaram 18 mil à Deco, de um total de 42.530 recebidas sobre telecomunicações) é evidente que algo falha no diálogo entre empresas e clientes. As telecomunicações, como reconhece a Anacom nos seus relatórios, são um sector com “elevado nível de reclamações e litigância entre consumidores e operadores”, o que resulta da concorrência do mercado e das “práticas comerciais agressivas”. A tendência agravou-se com o aparecimento dos pacotes de telecomunicações, que são o serviço mais reclamado.

Houve grandes progressos em “qualidade e preços”, mas há “uma comunicação muito agressiva”, disse ao PÚBLICO a directora-geral do consumo, Teresa Moreira. Apesar de as atribuições da DGC se limitarem à publicidade enganosa nas telecomunicações, já que é a Anacom que deve fiscalizar o sector, Teresa Moreira reconhece preocupação com o tema das fidelizações, pois “há percepção de uma interpretação da lei no limite do absurdo”, em que as empresas prolongam os contratos “sem que os consumidores se apercebam”. “O essencial”, diz, é fiscalizar se os consumidores são informados das “consequências das suas escolhas”, ou seja, das penalizações por cancelarem o contrato. Falando numa “interpretação dúbia, para não dizer abusiva” da recontagem dos períodos de fidelização, Teresa Moreira defende que as empresas não deveriam poder propor alterações aos contratos enquanto duram os períodos de fidelização, tal como recomendou a ERSE para os contratos de luz e gás.

A Apritel frisa que os operadores “orgulham-se de pautarem a sua conduta comercial com os clientes por princípios de absoluta transparência” e lembra que as reclamações do sector desceram 20% até Junho, para 27.397, representando apenas 0,07% de 30,4 milhões de serviços prestados. Neste período em que a NOS e a Vodafone foram as empresas mais reclamadas, a qualidade da informação prestada quando os serviços são vendidos e as condições de cancelamento motivaram a maior parte das queixas. Em qualquer dos casos surgiram "reclamações relacionadas directa ou indirectamente com a existência ou a aplicação de períodos de fidelização”, explicou a Anacom ao PÚBLICO, dizendo estar em causa “cerca de 8% [mais de duas mil] do total de reclamações recebidas”.  

A Deco, que em 2014 entregou no Parlamento uma petição com 160 mil assinaturas exigindo a alteração do prazo de 24 meses, continua à espera da sua discussão pública. Lançou no entanto em Outubro um abaixo-assinado (que tinha já 81.065 assinaturas) para “pressionar a Anacom” e exigir a introdução na lei de “regras claras” para as refidelizações porque entende que maiores velocidade de Internet ou descontos não podem servir para voltar a “prender” o consumidor, explica o jurista da associação, Diogo Nunes. A lei deve clarificar as vantagens económicas que justificam a fidelização, ser mais exigente com os deveres de informação das empresas e impor limites às penalizações, diz a Deco, que quer ainda que as empresas sejam obrigadas a demonstrar os custos do novo período de contratual. “Sejam fidelizações ou refidelizações, o que usam sempre é o somatório das prestações devidas até ao final dos contratos”, refere o jurista. São compensações “desproporcionadas” e “cada vez mais elevadas”, porque as pessoas juntam vários serviços e facilmente ficam a pagar mensalidades que chegam aos 100 euros, frisa Diogo Nunes. O jurista insiste que o período de dois anos “não está adequado à realidade social” de um país em que aumentaram os casos de desemprego, emigração ou cortes salariais. 

São prazos “adequados e ajustados às necessidades dos clientes”, garante a Apritel. É aos clientes “que cabe a opção pelo período contratual mais ajustado às suas necessidades, de acordo com as contrapartidas associadas, nomeadamente em termos de preço”, acrescenta. Isto porque a lei obriga as empresas a apresentarem propostas comerciais com fidelizações de 12 meses. A questão, lembra Teresa Moreira, é saber se “há uma oferta convidativa” com estes prazos. “Fica-se com a ideia que não”, diz a directora-geral do consumo. 

As empresas “não são insensíveis” a situações de desemprego ou emigração e “têm procedimentos” para lhes responder “desde que devidamente comprovadas pelos clientes”, garante a Apritel. Já a Anacom tem “conhecimento de situações em que os utilizadores relatam dificuldades” em cancelar contratos nestas circunstâncias e reconhece que “em regra” elas não estão previstas “como motivo que permita o cancelamento (…) sem a aplicação da penalização”. Por isso aconselha os “utilizadores em situações difíceis” a recorrer aos centros de arbitragem de conflitos de consumo ou julgados de paz.

No caso que a cliente da Meo relatou ao PÚBLICO, a cópia de alguns documentos permitiu cancelar o contrato, mas não a exigência de pagamento das mensalidades devidas. Questionada sobre se é correcto que os operadores peçam aos clientes que arranjem quem os substitua (como aconteceu neste caso específico), a Anacom refere que as “partes podem sempre, querendo, negociar termos” em que a penalização não seja aplicada.

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