"Compra de dívida pelo BCE não chega para salvar a economia real"

Richard Koo é um dos economistas que melhor conhece as dificuldades do Japão com a deflação. Agora não tem dúvidas de que a Europa está a passar pelo mesmo e de que precisa de mudar as suas regras orçamentais para resolver o problema.

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Richard Koo é o economista chefe do instituto de investigação económica do banco japonês Nomura DR

Richard Koo é um economista com dupla nacionalidade de Taiwan e Estados Unidos, mas que conhece como poucos o problema da deflação vivido pelo Japão nas últimas décadas. Foi conselheiro de sucessivos primeiros-ministros japoneses e é agora o economista chefe do instituto de investigação económica do banco Nomura. Avisa que a Europa está a atravessar o mesmo tipo de recessão que o Japão, em que um sector privado muito endividado aumenta a sua poupança e consome e investe menos. Apenas uma política monetária mais expansionista não resolve o problema, alerta. Recomenda que a Europa mude as suas regras orçamentais, já “que não tem qualquer provisão para combater o tipo de recessão em que vivemos”.

O BCE prepara-se para começar a realizar compras de dívida pública para combater a deflação. Acha que vai ser bem sucedido?
Estou extremamente céptico acerca da eficácia desta medida na economia real. Nos mercados produz alguns efeitos, porque os participantes dos mercados tornaram-se dependentes dessas compras de activos dos bancos centrais e, sempre que ouvem falar delas, as bolsas sobem e a moeda desvaloriza. Foi isso que aconteceu nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Japão. Mas na economia real, a melhoria de situação é muito reduzida. A massa monetária não aumenta, o crédito ao sector privado não aumenta. É tudo muito limitado aos mercados, não chega à economia real. Portanto, a minha previsão é a de que, mesmo que o BCE avance para a compra de dívida e alguns participantes dos mercados fiquem excitados, não vai conseguir salvar a economia real.

Mas o BCE poderia fazer mais?
Não é o BCE que tem de fazer mais. Não penso que o BCE tenha os instrumentos necessários para tirar a zona euro da actual situação de recessão. Têm de ser os Governos com a sua política orçamental.

Na zona euro temos o Tratado de Maastricht que limita aquilo que pode ser a política orçamental. Acha que é um obstáculo?
Da forma como está formulado, certamente. Em primeiro lugar, saber se um défice público é bom ou não deve levar em conta quanto é que o sector privado está a poupar. Quando o Tratado de Maastricht foi assinado, ainda estávamos num mundo como o que está descrito nos manuais, em que o sector privado era saudável, tinha balanços limpos, maximizava os lucros. Nesse ambiente, é lógico que não se queira que o défice público seja demasiado grande, porque retira fundos para o investimento e pode significar uma realocação errada dos recursos. Mas, a partir do momento em que a economia entrou em colapso e caiu naquilo a que eu chamo uma “recessão de balanço”, em que as poupanças do sector privado são enormes, isso deixou de fazer sentido. Em Portugal, por exemplo, o sector privado está a poupar 7% do PIB. Se o Governo apenas é autorizado a pedir emprestado 3% do PIB, o que é que vai acontecer aos restantes 4%? Vai representar uma fuga de rendimento, o que significa que a economia pode cair no mesmo montante. É claro que as exportações podem compensar um pouco isto, mas não serão de grande utilidade no curto prazo, porque se pode entrar num processo de deflação em que a economia cai cada vez mais. Foi assim que os Estados Unidos perderam 46% do seu PIB a seguir à Grande Depressão. Toda a gente estava a poupar e ninguém a emprestar, mesmo com as taxas a zero e a economia começou a contrair-se. O Tratado de Maastricht não tem qualquer provisão para combater o tipo de recessão em que vivemos. Tem que se corrigir o tratado, mas os alemães acreditam que, se deixarem Portugal, a Espanha e a Grécia terem um défice público maior, podem acabar por ser eles a pagar por isso. O que eu argumento é que isso não é verdade, porque existem muitas poupanças disponíveis em Portugal, em Espanha. Bastante mais altas do que os défices orçamentais. O que é preciso é canalizar as poupanças portuguesas para os títulos de dívida pública portugueses. Não há qualquer motivo para que seja preciso o dinheiro dos contribuintes alemães.

Mas como é que se faz isso?
Pode-se, por exemplo, aplicar para os investidores institucionais, taxas diferenciadas de risco, em que as aplicações feitas no estrangeiro são um pouco mais caras. Não se proíbe os investidores portugueses de comprar dívida alemã, mas, se fizerem isso, será necessário investir um pouco mais. Assim, dão-se os incentivos para que os investidores portugueses comprem dívida portuguesa. Nos Estados Unidos e no Japão, os investidores podem comprar dívida alemã ou portuguesa, mas no geral preferem investir no seu próprio país, porque evitam o risco cambial. E isso contribui muito para que as taxas de juro sejam mais baixas, dando o espaço de manobra orçamental de que precisam para colocar a economia a crescer outra vez. Na zona euro, como existem 19 mercados de dívidas diferentes sem risco cambial, isto não funciona. É por isso que sugiro que se faça uma diferenciação de risco.

Os líderes europeus defendem que grande parte da solução para o problema do crescimento europeu é estrutural e que é preciso fazer reformas estruturais para pôr a economia a crescer. Não está aqui também uma chave para o problema?
As reformas estruturais não são de maneira nenhuma uma chave para resolver os problemas que a Europa enfrenta actualmente. É claro que tentar resolver problemas estruturais é uma coisa boa por si só, e eu não sou contra reformas estruturais. Mas se o que há é um problema no balanço, esse é que é o problema que está a penalizar as pessoas. E não se consegue resolver esse problema com reformas estruturais. Repare, os problemas estruturais estão presentes há décadas. Como é que se explica que sejam estes a causa do colapso da economia em 2008 e os problemas que se viveram a partir daí? Não faz sentido.

Na Alemanha, é muitas vezes dito que as reformas estruturais efectuadas pelo Governo Schroeder foram a razão da recuperação da economia na década passada…
Cerca de metade do diferencial de competitividade entre a Alemanha e o resto da Europa tem a ver com reformas estruturais. Mas a outra metade é porque a Alemanha entrou numa “recessão de balanço” muito antes de todos os outros, logo a seguir ao rebentar da bolha tecnológica. Países como Portugal não sentiram tanto essa bolha. Na Alemanha, o que aconteceu foi que as famílias deixaram de pedir dinheiro emprestado, a massa monetária não cresceu e, por isso, os salários e os preços não subiram. O BCE tentou salvar a economia alemã, baixando os juros. E se a economia alemã não respondeu, a verdade é que as outras economias, que não tinham o mesmo problema, responderam. Foi assim que Portugal e outros países criaram depois as suas bolhas que entretanto rebentaram. Para a Alemanha, essa procura dos outros países e o facto de ter ficado mais competitiva, salvou-a de uma situação de deflação.

Agora isso não é solução…
Agora, não há ninguém a criar bolhas, estão todos com uma recessão. Mesmo na Alemanha, as pessoas não estão a pedir dinheiro emprestado, apesar das taxas de juro mais baixas da história.

O Japão seguiu muitas das políticas que defende agora para a Europa, mas continua a debater-se com a deflação. Como é que explica isso?
O problema é que o Japão demorou muito tempo a perceber que esta é uma recessão de tipo diferente. Foi entre 1997 e 1998, que eu comecei a falar destes problemas nos balanços. Foi aí que comecei a defender um estímulo orçamental e, mesmo assim, demorou muito tempo para que as pessoas percebessem que neste tipo de recessão – que acontece muito raramente, após o rebentamento de uma bolha – precisamos de ter o Governo a gastar dinheiro. O Governo Abe é o primeiro, em mais de 20 anos, a definir esta estratégia como prioritária. Todos os Governos anteriores, apesar de terem lançado estímulos, estavam sempre atrás da curva e foi por isso que a dívida pública cresceu tanto. Eu acho que desta vez percebem que se tem de fazer o estímulo orçamental em antecipação. O que eu estou a tentar dizer à Europa é: não cometam o mesmo erro, tentem corrigir a situação logo desde o início. Felizmente, nos Estados Unidos, pessoas como Ben Bernanke (ex-presidente da Reserva Federal) perceberam o problema e conseguiram evitar a mesma situação do Japão.

Para a Europa já será demasiado tarde?
Perdeu-se muito dinheiro, muito tempo e muitos recursos humanos, mas nunca é tarde demais. Se, na Europa, os Governos se juntarem e começarem a adoptar as políticas certas, a situação resolve-se. Se países como Portugal canalizarem a poupança do sector privado para os sítios certos, ficam com espaço de manobra orçamental. E se o utilizarem, não há qualquer motivo para que a economia não comece a melhorar.

Portugal não teria problemas com os mercados?
Se a poupança privada for canalizada, não. Isso aliás já está a acontecer, é por isso que as taxas de juro da dívida têm vindo a descer. Portugal já está com um espaço de manobra orçamental. O que têm de fazer agora é garantir que a poupança privada continua a ser canalizada para financiar a dívida pública e ter o Tratado de Maastricht corrigido, para permitir estímulos orçamentais.

O debate na Europa tem estado mais centrado na reestruturação de dívida. O que acha dessa hipótese?
Reestruturar a dívida é uma boa ideia quando o problema está centrado numa parte específica da economia. Quando o problema da dívida é generalizado na sociedade, corre-se o risco de se estar apenas a transferir o problema de um sector para o outro, não melhorando muito a situação.

E sair do euro?
Se não se conseguir mesmo resolver as falhas do Tratado de Maastricht, então o processo político vai cada vez mais favorecer aquelas pessoas que querem sair do euro. O que é muito triste. Não sou daqueles economistas anglo-saxónicos que acham que o euro não funciona. Eu acho o euro uma magnifica experiência, um dos grandes feitos da humanidade, com excepção de uma ou duas alterações que têm de ser feitas. Quando se constrói um avião, por muito esforço que se faça, há sempre alguns detalhes a corrigir. Com o euro, o problema também está só em alguns detalhes. É preciso que toda a gente concorde que nas regras orçamentais se preveja que, quando as taxas de juro estão a zero e um país tenha uma poupança privada acima de 3%, se deve permitir mais estímulos orçamentais. E é preciso que se permita um incentivo à canalização da poupança privada para a dívida pública do país. Bastaria isto e o euro conseguiria ser salvo. Sem mudanças, é muito difícil.

Falou com responsáveis políticos alemães sobre este assunto?
Eles ainda estão muito presos ao pensamento de que os países da periferia precisam é de ser mais competitivos e de fazer reformas estruturais. Essa mentalidade tem de ser desafiada. Na verdade, quem se meteu primeiro em problemas foi a Alemanha e o resto da Europa teve de pagar por isso. Se as pessoas perceberem como é que tudo começou desde o rebentamento da bolha tecnológica no início deste século, então vão começar a ver que há um grande buraco no argumento alemão, que há grandes saltos na lógica e, talvez, se resolva o problema.

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