Comissão de Trabalhadores diz que CP Carga foi doada e não vendida

Documento entregue no Tribunal de Contas denuncia transferência de activos. Assinatura de contrato foi feita à porta fechada.

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Adriano Miranda

Durante seis anos a CP Carga pagou (ou deveria ter pago) 18 milhões de euros anuais à CP pela utilização de locomotivas que eram propriedade desta. Mas pouco antes da privatização, estes activos – avaliados em 88 milhões de euros – foram transferidos para a CP Carga, pouco antes de ser vendida à MSC. Desta forma, enquanto empresa pública a CP Carga pagava uma renda à CP; enquanto privada fica isenta desse pagamento e ainda recebe as locomotivas.

Esta é uma das denúncias que constam de um documento entregue esta segunda-feira no Tribunal de Contas (e também à ACT e Procuradoria Geral da República) pela Comissão de Trabalhadores da CP, que contesta a venda da CP Carga à multinacional MSC.

O documento diz ser falso que a MSC tenha pago 53 milhões pela transportadora ferroviária de mercadorias, porque o Estado só encaixa 2 milhões de euros, sendo os restantes 51 milhões destinados a capitalizar a própria empresa. Ora, diz a Comissão de Trabalhadores, a CP possuía em 31/12/2014 quase seis milhões de euros em depósitos à ordem, uma carteira de dívida de clientes a 90 dias de 11,1 milhões de euros e activos em material circulante no valor de 60,9 milhões.

O documento refere ainda que em 2014 a CP Carga recebeu 28 milhões de euros da Refer pela transferência dos terminais de mercadorias para a empresa gestora de infra-estruturas. 

Por tudo isto, os trabalhadores afirmam que a privatização da CP Carga foi uma “doação” e não uma “venda”.

Quanto à dívida da empresa, que será assumida pelo comprador, o documento entregue no Tribunal de Contas diz que a CP Carga devia 120 milhões de euros em Dezembro do ano passado, dos quais 31 milhões eram de leasing do material circulante da própria empresa e 71 milhões eram dívidas à empresa mãe CP.

“A criação desta dívida foi completamente artificial”, acusa a Comissão de Trabalhadores, justificando que tal se deveu à opção de manter as locomotivas no balanço da CP e não da CP Carga, obrigando esta a pagar rendas de 18 milhões de euros anuais que, por incumprimento, ascenderam a juros no valor de 7,7 milhões de euros.

“Com a venda da CP Carga é o próprio Estado que desmantela o mecanismo de descapitalização da CP Carga à custa da descapitalização da CP”, diz o documento, referindo que a empresa privatizada fica isenta de pagar rendas e ganha os activos, enquanto a empresa pública CP perde as rendas e as locomotivas.

É isso que leva a Comissão de Trabalhadores a dizer que “o processo de oferta da CP Carga é criminoso e lesivo do interesse público” e que este mesmo processo visa “a descapitalização da CP”.

Venda à porta fechada
Ao PÚBLICO, fonte oficial do Tribunal de Contas confirmou a recepção de uma exposição da Comissão de Trabalhadores, afirmando que a mesma vai ser “encaminhada para os departamentos competentes do Tribunal”. “Neste momento, desconhece-se o contrato pelo que nada se poderá dizer, a não ser que se aguarda o seu envio”, acrescentou a mesma fonte. O Governo tinha marcado para esta segunda-feira a assinatura do contrato de compra e venda da CP Carga, que ocorreu no Ministério das Finanças. No entanto, ao contrário do habitual, a cerimónia aconteceu à porta fechada.

Em comunicado enviado às redacções, a MSC confirma a assinatura do contrato, afirmando que “o negócio foi fechado pelo valor de 53 milhões de euros, dos quais 51 milhões de euros serão usados para a recapitalização da empresa”. A conclusão do negócio, diz a empresa “está ainda pendente do parecer da Autoridade da Concorrência para que este seja oficializado”. A MSC diz comprometer-se a manter o Acordo de Empresa em vigor. O investimento realizado, diz Carlos Vasconcelos, director-geral da MSC Portugal, citado no comunicado, “pressupõe um plano de desenvolvimento a longo prazo que vai melhorar e valorizar a infra-estrutura da empresa”.

O PÚBLICO tentou contactar o administrador da MSC Portugal, Carlos Vasconcelos, que irá assumir a administração da CP Carga, mas não obteve resposta. Há dois meses, quando se soube que tinha vencido a corrida à empresa, dizia que pretendia reforçar o tráfego de contentores do porto de Sines (do qual a MSC tem sido uma importante cliente da CP Carga) e assegurava que não iria haver despedimentos, admitindo inclusive, a distribuição de lucros pelos trabalhadores. Uma das primeiras medidas seria mudar o nome da empresa, para o qual iria lançar um concurso entre os funcionários.

Já o Ministério das Finanças diz, também em comunicado, que se congratula "com a conclusão de um processo que visa dotar a CP Carga das condições necessárias para se desenvolver através do investimento privado como forma de criar maiores sinergias e níveis de eficiências". E recorda que falta ainda os restantes 5% do capital da CP Carga, que estão reservados aos seus trabalhadores.
Esta segunda-feira foi também palco de uma pequena manifestação de funcionários da CP Carga, que se concentraram no Largo de Camões para protestar contra a venda da empresa.

Semestre com prejuízo
No primeiro semestre de 2015, e segundo dados fornecidos pela própria empresa ao PÚBLICO, a CP Carga tinha um prejuízo de 4,5 milhões de euros, sendo que os seus resultados operacionais eram de -2,5 milhões. As receitas ascendiam a 35 milhões de euros.

Nos meses que antecederam a privatização, e contrariando uma política de comunicação habitualmente mais discreta, a CP Carga tornou públicos os seus resultados que “reforçavam uma trajectória de melhoria de resultados”. Em Janeiro deste ano o próprio presidente da CP, numa reunião de quadros, sublinhou que a CP Carga estava a caminho da sustentabilidade.

Em 2013 a empresa teve prejuízos de 23 milhões de euros, mas em 2014 teve lucros de 5,3 milhões de euros. Nesse ano transportou o número recorde de 9,2 milhões de toneladas e aumentou a sua receita em 16%. Com Luísa Pinto e Luís Villalobos

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