Com as potências da UE em colisão, Portugal arrisca ficar outra vez na mira de Bruxelas

Itália e França apresentam orçamentos livres de austeridade, Alemanha diz que é preciso respeitar o Tratado Orçamental. O recado da chanceler também serve para Portugal?

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Hollande e Merkel têm dois diagnósticos completamente diferentes para as causas da nova crise nos mercados Fabrizio Bensch/Reuters

“Todos os países devem respeitar as regras do Tratado Orçamental”: o alerta foi feito esta quinta–feira por Angela Merkel e, se os seus destinatários eram certamente a França e a Itália, também Portugal, depois de no dia anterior apresentar um Orçamento do Estado em que não cumpre a redução do défice estrutural prevista nas regras europeias, pode sentir-se visado.

A declaração da chanceler alemã aconteceu num dia em que, na zona euro, se assistiu a um regresso do clima de tensão vivido no auge da crise. As bolsas caíram, as taxas de juro da dívida voltaram a subir e os líderes políticos europeus deram sinais claros de desentendimento. Não se via nada assim desde que, em 2012, Mario Draghi prometeu fazer tudo o que fosse preciso para salvar o euro e, agora, poucos são os que arriscam adivinhar o que irá acontecer nas próximas semanas.

O confronto envolve essencialmente as três maiores potências económicas da zona euro. Com as economias outra vez a braços com a recessão, Itália e França apresentaram orçamentos que aliviam de forma clara o peso da austeridade e que tentam mesmo criar estímulos que ponham outra vez a economia a crescer.

Na quarta-feira à noite, o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, entregou a Bruxelas uma proposta orçamental que inclui uma descida dos impostos sobre as empresas e as pessoas com menores rendimentos e um aumento de despesas sociais, num pacote de estímulo de 36 mil milhões de euros, que não é totalmente compensado por reduções noutras despesas. O défice público previsto derrapa de 2,2% para 2,9% do PIB, ficando no limite da regra europeia para o défice nominal.

Algumas semanas antes, a França tinha apresentado uma proposta de orçamento que não cumpre o objectivo acordado com Bruxelas de baixar o défice para um valor inferior a 3%. E anunciou que o cumprimento da regra apenas irá acontecer dentro de dois anos.

Estas duas propostas prometem incendiar o processo de fiscalização dos orçamentos que a Comissão Europeia está agora a inaugurar. Os novos procedimentos europeus a nível orçamental – conhecidos como o Semestre Europeu – prevêem que todos os governos entreguem a Bruxelas as suas propostas orçamentais até ao dia 15 de Outubro, para que a Comissão as analise e, eventualmente, faça críticas e sugira alterações.

A nova Comissão, liderada por Jean-Claude Juncker, fica com pelo menos duas batatas quentes nas mãos, esperando-se que, pelo menos em relação à França, que mantém um défice acima de 4%, venha a colocar objecções à proposta de orçamento apresentada.

Em Paris e Roma não parece haver contudo grande intenção de responder positivamente a Bruxelas. Numa entrevista publicada quarta-feira pelo jornal Les Echos, o ministro francês das Finanças, Michel Sapin, dá mais um duro golpe no processo de fiscalização europeus dos orçamentos dos Estados-membros. “A Comissão Europeia não tem de forma nenhuma o poder de ‘rejeitar’, ‘retocar’ ou ‘censurar’ um orçamento, como pude ler recentemente. Aqui, como nos outros países, a soberania pertence ao parlamento francês”, afirmou.

Itália e França consideram que nesta fase em que a Europa volta a revelar sérias dificuldades em sustentar uma retoma económica, os Estados têm de ajudar, com mais investimento e menos austeridade. Usar os orçamentos – não cumprindo as apertadas regras do Tratado Orçamental – é a solução defendida.

Do outro lado está a Alemanha, também ela a dar sinais de forte abrandamento económico, mas com um orçamento completamente equilibrado. “Nós na Alemanha mostrámos que o investimento e o crescimento podem ser fortalecidos sem deixar o caminho da consolidação orçamental”, afirmou Angela Merkel, defendendo que o regresso da instabilidade aos mercados dos últimos dias apenas pode ser combatida com a credibilidade trazida pelo cumprimento das regras do Tratado Orçamental, um claro recado à Itália e à França.

A resposta de François Hollande, presidente francês, não demorou a surgir. “A causa da instabilidade nos mercados está no baixo crescimento europeu”, disse.

E Portugal?
No meio deste debate cada vez mais intenso, Portugal tem muito a perder ou a ganhar. Em primeiro lugar porque daquilo que for a avaliação feita às grandes potências Itália e França dependerá também a decisão tomada pela Comissão Europeia relativamente ao “pequeno” Portugal. Ficará Portugal outra vez na mira de Bruxelas? Ou será que o intenso debate que se antecipa entre a Alemanha, França e Itália permitirá que as falhas do orçamento português passem quase despercebidas?

É que na proposta de orçamento enviada pelo Governo português a Bruxelas não faltam os ingredientes para provocar o descontentamento entre os responsáveis do Executivo europeu. Para começar, a meta do défice nominal de 2,7% está acima dos 2,5% que tinham sido acordados entre o Governo e a troika. Depois, mesmo esta nova meta apenas é assegurada prolongando a mesma estratégia de consolidação seguida na segunda metade de 2014 e que a Comissão já classificou como sendo de “baixa qualidade”, por depender demasiado do aumento do consumo privado.

Por fim, como consequência dos dois pontos anteriores, Portugal fica muito longe de cumprir a regra do Tratado Orçamental que exige que um país em desequilíbrio tem de baixar o défice estrutural (o défice sem medidas extraordinárias e sem o efeito do ciclo económico) em pelo menos 0,5 pontos percentuais por ano. Em 2015, o Governo planeia passar este indicador de 1,3% para 1,2% apenas.

Na conferência de imprensa de apresentação do OE, a ministra das Finanças desvalorizou a possibilidade de Bruxelas poder colocar obstáculos a um orçamento com estas características, defendendo que as autoridades europeias iriam compreender que a revisão em alta destas metas se devia aos chumbos do Tribunal Constitucional e às alterações metodológicas nas contas nacionais.

De acordo com os novos procedimentos orçamentais europeus, se Bruxelas detectar a existência de muitos enviesamentos às regras na proposta de OE entregue pelos Estados membros, fica com duas semanas para levantar as suas objecções. No caso de verificar que os problemas são menos graves, publicará em meados de Novembro o seu relatório sobre o documento, que será depois discutido pelos ministros das Finanças de todos os países da zona euro.

Para além disso, no caso específico de Portugal, irão chegar a Lisboa, já durante a segunda metade de Outubro, as missões da Comissão Europeia e do FMI encarregadas de realizarem a primeira monitorização pós-programa ao país.

Outra forma como o presente debate em torno da política económica europeia poderá afectar Portugal é o impacto que um abrandamento da zona euro pode ter nos objectivos orçamentais do Governo. No OE, o Executivo manteve uma previsão de crescimento de 1,5%, que conta com a ajuda de um aumento de 4,3% da procura externa dirigida às exportações portuguesas.

Como assinala Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas, nos últimos meses assistiu-se à revisão em baixa das previsões de crescimento da economia europeia em 2015, havendo por isso um risco de que as projecções em que assenta o OE poderem não se vir a confirmar. “As previsões [do OE] poderiam ter sido mais prudentes, mas isso teria consequências ao nível do esforço de consolidação exigido”, afirma Teodora Cardoso.

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