Coimbra ignora orientações do Ministério das Finanças e assina acordo para as 35 horas

Parecer da PGR diz que Finanças têm de participar nas negociações com as autarquias, mas não podem “dar ordens ou emitir directivas”. ANMP exige conhecer documento.

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Manuel Machado, presidente da Câmara de Coimbra ADRIANO MIRANDA

A Câmara de Coimbra, liderada pelo socialista e também presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) Manuel Machado, assinou nesta terça-feira com os sindicatos da UGT e da CGTP um acordo colectivo (ACEEP) que visa manter um horário semanal de 35 horas na autarquia. A assinatura ocorreu quatro dias depois de o Governo ter avisado que as câmaras a praticar as 35 horas estavam a violar a lei e que iria rever todos os acordos entretanto negociados sem a participação do Ministério das Finanças.

O avisou foi deixado na sexta-feira da semana passada, quando o Governo homologou o parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), que se pronunciou sobre a participação do Ministério das Finanças na negociação de ACEEP nas autarquias locais.

No comunicado divulgado na altura, o Ministério de Maria Luís Albuquerque lembrou as autarquias de que os acordos só são válidos quando forem publicados em Diário da República, algo que ainda não aconteceu e que levará algum tempo, uma vez que o Governo diz que irá rever todos os acordos que lhe foram enviados. Até lá, quem decidiu manter as 35 horas está a violar a lei, avisa o executivo.

Ignorando o parecer e o aviso das Finanças, Coimbra vem juntar-se às quase quatro centenas de organismos autárquicos (entre câmaras, juntas de freguesia e outros organismos) que desde o ano passado assinaram acordos com os sindicatos para manterem a semana de 35 horas, em vez das 40 horas previstas na lei desde Setembro de 2013. Algumas têm em vigor as 35 horas, enquanto outras adoptaram as 40 horas. No caso de Coimbra, os trabalhadores fazem 35 horas semanais.

O parecer pedido à PGR pelo Governo, a que o PÚBLICO teve acesso, conclui que, no processo de negociação de um ACEEP, “têm necessariamente de intervir os membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Administração Pública e uma autarquia, enquanto entidade empregadora pública”, que devem ter uma actuação “conjunta e articulada”.

Contudo, acrescenta a PGR, os membros do Governo não podem “dar ordens ou emitir directivas à entidade autárquica, por força da autonomia de que esta goza, nos termos da Constituição e da lei”. E ficam obrigados a "fundamentar a sua proposta" e a "actuar na prossecução do interesse público e com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade".

Manuel Machado, que esta terça-feira ainda aguardava que o Ministério das Finanças remetesse o parecer à ANMP, considerou "preocupante que estas entidades tenham de intervir no processo". "Quer dizer que a ministra das Finanças terá que decidir o horário dos autocarros e refeições dos SMTUC [Serviços Municipais de Transportes Urbanos de Coimbra]", exemplificou em declarações à Lusa, acrescentando que, "se for esse o caminho, têm de se multiplicar os governantes".

Para os sindicatos, que já leram o parecer, a orientação da PGR é muito clara. José Abraão, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (Sintap), entende que “a secretaria de Estado da Administração Pública terá uma participação de corpo presente e não tanto no sentido de interferir nos seus conteúdos”.

Porém, no comunicado que divulgou a propósito do tema, o Ministério das Finanças faz uma interpretação mais conservadora. “Não se traduzindo a intervenção do membro do Governo responsável pelas áreas das finanças e da Administração Pública na emissão de ordens ou directivas às autarquias locais, cabe-lhe contudo o papel de garante pelos princípios de racionalidade orçamental e de gestão e de coordenação das políticas de recursos humanos em toda a Administração Pública, cabendo-lhe dar resposta fundamentada e sugerir soluções negociais que assegurem a equidade interna no âmbito das Administrações Públicas e garantir a legalidade destes instrumentos de regulação colectiva de trabalho”.

E concretiza que terá em conta os “objectivos globais e individuais de equilíbrio financeiro das autarquias (em particular em matéria de endividamento e saldo orçamental), de não agravamento da respectiva massa salarial (incluindo em horas extraordinárias) e de efectivos ganhos de eficiência e eficácia na sua gestão e funcionamento”.

Parecer não foi unânime

Se a interpretação do parecer parece levantar dúvidas, a análise dos princípios da autonomia local e do direito da contratação colectiva também não foi unânime entre os magistrados que constituem o conselho consultivo da PGR.

O parecer foi aprovado por cinco votos a favor e dois votos de vencido, sustentado num anexo assinado pela magistrada Alexandra Leitão, que foi acompanhada por Maria Manuel Ferreira.

No voto de vencida, a magistrada entende que a intervenção do Governo nos acordos entre autarquias e trabalhadores “viola a autonomia do poder local, porque impede as autarquias de, sem o acordo com Governo, adequar certos aspectos do regime laboral dos seus trabalhadores às especificidades locais da sua autarquia”.

De facto, acrescenta, “sendo necessária a assinatura do membro do Governo para que o acordo colectivo seja eficaz, qualquer solução que os representantes da autarquias e os representantes dos trabalhadores pretendam adoptar só será possível com a concordância do Governo”. E é esse aspecto que, na sua opinião, “põe em causa o direito de contratação colectiva” consagrado na Constituição da República.

A magistrada entende que o Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas tem uma lacuna, pois “deveria conter regulamentação sobre a legitimidade para negociar acordos colectivos de entidade empregadora pública no caso das autarquias locais e das regiões autónomas”.

Porém, acrescenta, essa lacuna não pode ser preenchida colocando as autarquias ao mesmo nível dos organismos do Estado, porque não se trata de casos paralelos e a analogia “sem adaptações conduziria a uma solução inconstitucional”.

“A coerência com os princípios e normas do sistema, designadamente a própria natureza da administração autónoma e os limites dos poderes do Estado relativamente aquela, afastam a possibilidade de o Governo intervir, como parte, nos acordos celebrados entre as autarquias locais (ou as regiões autónomas) e os seus trabalhadores”, argumenta.

E, acrescenta, a prova de que assim é, é que existe uma lacuna semelhante na lei no que respeita às regiões autónomas e não se lhes aplica a lei.

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