Protecção de Dados reavalia e-factura após queixas de contribuintes

Comissão Nacional de Protecção de Dados fez averiguação ao acesso a dados fiscais do primeiro-ministro, mas as conclusões só deverão ser comunicadas dentro de dias. Falta de lei que regule tratamento de dados do fisco está a criar desconfiança nos cidadãos.

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Ministra recusa apurar responsabilidades sem conhecer as conclusões da IGF à chamada “lista VIP” Enric Vives-Rubio

A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que vai ser ouvida no âmbito da polémica lista VIP de contribuintes, desencadeou recentemente duas averiguações que podem revelar conclusões interessantes para a discussão sobre a protecção de dados pessoais dos cidadãos, armazenados pela Autoridade Tributária (AT).

Uma das acções, a mais mediática no contexto da discussão actual, está relacionada com a situação fiscal do primeiro-ministro, e visa apurar se existiu ou não acesso indevido a dados fiscais de Passos Coelho.

O segundo processo, bem mais abrangente para a totalidade dos contribuintes portugueses, consiste numa reavaliação do programa e-factura, e foi suscitado por queixas de contribuintes, preocupados com os dados pessoais que a AT passou a reunir, através das facturas com número de contribuinte, as que passaram a garantir benefícios fiscais.

A compilação de dados no âmbito dos dois processos de averiguação já foi concluída, mas ainda não foram proferidas as respectivas deliberações, o que deve acontecer dentro de alguns dias. No âmbito das deliberações, a CNPD decidirá se vai dar publicidade às conclusões, que podem incluir recomendações específicas e/ou a abertura de processos de contra-ordenação.

O PÚBLICO apurou que não é certo que estes processos possam estar concluídos antes da audição no Parlamento, feita a pedido do Partido Socialista, que entende ser pertinente ouvir a Comissão no âmbito do caso da lista VIP de contribuintes.

Essa lista, alegadamente em implementação na administração fiscal, permitia, informaticamente e em tempo real, que fosse disparado um alerta sobre a consulta de dados de determinados contribuintes. O registo de quem estava a fazer essa consulta é uma valência do sistema informático que já existia antes da criação do referido sistema de alerta. O acesso indevido também estava já criminalizado.

Em declarações ao PÚBLICO, a directora geral da CNPD, Isabel Cruz, escusou-se a fazer comentários sobre a referida lista, mas adiantou que relativamente ao caso do primeiro-ministro, a comissão realizou um processo de averiguação no sentido de avaliar se houve acesso indevido ou não aos seus dados. Tratou-se, segunda esta responsável, de um procedimento normal, que acontece “sempre que poderá estar a ser violada a privacidade de qualquer cidadão”.

A responsável esclareceu ainda que o processo foi desencadeado na sequência de notícias na imprensa que indiciavam a consulta de dados pessoais e que o processo foi aberto “ independentemente” da polémica lista VIP.

Isabel Cruz não exclui, no entanto, que no âmbito dessa investigação tenham sido recolhidas outras informações que possam ser relevantes em matéria de protecção de dados.

E ainda sobre os dados do primeiro-ministro, a CNPD deverá ter encontrado muitas consultas, uma vez que a recente auditoria da AT sobre este mesmo assunto revelou inúmeros acessos aos dados do contribuinte Pedro Passos Coelho.

As primeiras notícias relativas à situação fiscal de Passos Coelho foram publicadas pelo Jornal i, em Setembro do ano passado, e estão relacionadas com o caso Tecnoforma. Curiosamente, e segundo a Visão, é também depois destas notícias sobre a Tecnoforma que a AT decidiu avançar com a criação da referida lista VIP. Ainda de acordo com a revista, entre Janeiro e Setembro do ano passado, foram identificados 106 registos de consultas ao processo de Passos Coelho, efectuados por 34 trabalhadores, distribuídos por várias áreas geográficas do território nacional, incluindo Madeira e Açores.

Cidadãos preocupados
A discussão tem estado muito concentrada na existência de uma lista VIP, uma matéria que não é pacífica, mas o acesso ou utilização de informação armazenada pelo fisco também preocupa muitos cidadãos.

Apesar de ser uma matéria delicada, a comissão que tem por missão zelar pela protecção de dados pessoais tem sido posta à margem das principais alterações introduzidas pela AT. Em face desse comportamento do fisco, a CNPD tem actuado a posteriori, como é o caso da averiguação que está a fazer ao programa e-factura, cujo âmbito foi alargado no Orçamento do Estado para 2015.

A CNPD não foi ouvida sobre as alterações introduzidas ao programa, que permite agora deduções fiscais aos contribuintes que pedem factura com número de identificação fiscal, o vulgo número de contribuinte. Também aquando do lançamento do primeiro programa e-factura, a Comissão não foi consultada, tendo exigido posteriormente alterações, que foram acatadas, e que reforçaram a protecção de dados dos contribuintes.

A falta de uma lei que regule o tratamento de dados por parte da AT está a gerar desconfiança nos cidadãos, reconhece a directora-geral da CNPD. "A existência de uma lei que regulasse os tratamentos de dados pessoais pela AT tornaria todo o processo mais transparente para os cidadãos, para os funcionários da AT, para a própria AT e, naturalmente, para a CNPD", declarou Isabel Cruz.

A responsável admitiu que há cidadãos a questionar a quantidade de informação que a AT passa a reunir, graças à e-factura e que foi na sequência dessas preocupações que a Comissão decidiu fazer uma reavaliação ao programa ampliado pelo Governo.

A desconfiança dos contribuintes relativamente ao tratamento de dados, que transforma a AT numa espécie de "big brother" do consumo das famílias, também está a levar a que muitos contribuintes optem por não pedir facturas com o número de contribuinte, o que os impede de usufruir dos benefícios fiscais criados nesse âmbito.

Neste momento, na sequência das alterações propostas pela Comissão em 2013, no âmbito da avaliação à primeira versão do e-factura (criado para o sorteio de carros), a informação que passou a constar das facturas passou a ser menor.

Antes da introdução das limitações por parte daquela comissão, uma factura de serviços de esteticista poderia incluir o detalhe de “uma depilação a pernas e virilhas”. E a factura do supermercado detalhava o tipo de compras realizadas. Depois da intervenção da CNPD, que foi acatada pela AT, as facturas passaram a ter indicação geral do serviço prestado ou da despesa final feita num supermercado ou num restaurante.

Face às alterações introduzidas, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, tem defendido que o programa e-factura foi validado pela CNPD.

Apesar do avanço conseguido pela comissão de protecção de dados ainda há questões delicadas que se podem levantar, especialmente porque é incerto o tratamento a dar à imensa informação recolhida. As despesas e serviços de saúde são uma das áreas que levanta preocupações. A título de exemplo, a AT passa a dispor do número de consultas médicas a que o contribuinte vai, que podem ser esporádicas ou regulares, e a que especialidades.

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