Balbúrdia na energia: faltam palavras e palavra

Esta balbúrdia na energia já dura há demasiado tempo.

Portugal entrou no século XXI com uma política energética coerente que antecipava a evolução internacional e, como tal, permitiu atrair investidores industriais e financeiros, transformando o nosso país num líder da transição para a economia de baixo carbono.

Recorde-se que o documento programático aprovado pelo Governo Guterres em 2001 tinha como título “Eficiência Energética e Energias Endógenas”. Actualmente, a União para a Energia, lançada pela Comissão Juncker, tem como principais eixos “primeiro a eficiência” e “ser líder mundial em renováveis”. A política energética definida em 2001 era inovadora (hoje diríamos disruptiva) e coerente, duas características importantes para o seu sucesso. Coerente e consistente foi também a aplicação dessa política ao longo da primeira década do século, atravessando governos de várias cores e sabores – um feito infelizmente raro em Portugal, onde as políticas públicas são mais voláteis que a cotação do petróleo.

Na segunda década deste século, em vez de consolidar e alargar a vantagem competitiva obtida, nomeadamente integrando mais estreitamente a política energética com a política climática numa perspectiva de economia circular, Portugal parou e deixou-se ultrapassar. De exemplo de boas práticas e país onde “era preciso investir e estar para aprender”, passou a país a evitar – pela falta de coerência na política energética e pelas muitas tentativas de atropelo à legalidade, punindo fiscalmente a torto e a direito empresas de energia. Ou seja, pela falta de palavras de quem devia escrever políticas públicas claras e pela clara falta de palavra do Estado.

Há uma patologia latente em Portugal, tão bem descrita por numerosos escritores e ensaístas, que combina a pulsão de autodestruição com a necessidade de autoafirmação de uma abstracta superioridade moral e uma incontida inveja pelo sucesso de outros. Negatividade pura. Infelizmente, esse distúrbio tem vindo a difundir-se no sector da energia ao longo desta década, tendo transitando da velha troika para a nova troika. Basicamente, ele manifesta-se da seguinte forma: os consumidores portugueses vivem aterrorizados por bandidos que se apropriam das mais-valias da energia; é preciso um xerife para controlar o sector mas o coitado de turno é sempre hostilizado pelos interesses instalados e incompreendido pela população; só um pistoleiro rápido no gatilho pode salvar a situação (NB: trocando energia por ferrovia, este é o enredo da comédia de Mel Brooks de 1974 intitulada Balbúrdia no Oeste).

E logo aparecem, não um, mas vários, pistoleiros, desejosos de defender os bons e atacar os maus. Atacam com denodo os contratos que o Estado português celebrou com os produtores de energia eléctrica – convencionais e renováveis. A sua necessidade de autoafirmação é tão grande que suscita suspeitas.

Onde estavam todos estes justiceiros em 1994, quando os contratos com os produtores convencionais foram assinados? Estariam por acaso no Estado? E onde estavam em 2004, quando a transposição da directiva europeia de liberalização do mercado eléctrico teria permitido de forma juridicamente correcta rever esses contratos? Recordo apenas um discreto apoio das associações de consumidores à posição da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, contrária à solução então adoptada pelo Governo. Pistoleiros de gatilho rápido, nem vê-los...

E em 1999, quando o novo regime de remuneração dos produtores renováveis foi publicado? Recordo-me de nessa altura ter discordado publica e repetidamente da abordagem seguida pelo Governo de garantir preços administrativos aos produtores, antes defendendo a introdução de leilões competitivos. Tive o apoio ténue de alguns académicos. Mas não me recordo de ter visto, então, nenhum Waco Kid disparar contra o Governo.

Disparar hoje, revendo retroactivamente esses contractos, é fácil e é errado. É fácil porque, hoje, os resultados das decisões políticas do passado são visíveis e quantificáveis – difícil era, na altura, opor argumentos, oferecer alternativas e combater académica e politicamente as opiniões dominantes (que não estavam necessariamente erradas, e não devem ser de qualquer modo demonizadas; a política é o domínio da opinião). É errado porque o Estado, como todo o indivíduo e organização, deve assumir conscientemente as suas responsabilidades, honrando os seus compromissos. Querer corrigir a História é tarefa vã; querer faze-lo em nome de uma suposta maior clarividência política e superioridade moral é insensato. A História só se corrige no futuro, não no passado.

Quando o legislador de hoje discorda do legislador de ontem, obrigando os produtores a reembolsar o que considera, arbitrariamente, “valores recebidos em excesso”, não está apenas a tentar, objectivamente, deslegitimar o passado, o que só por si é questionável; está, subjectivamente, a comprometer o futuro, afastando investidores (gato escaldado...). Quando escreve, num recente diploma, que esses valores “devem assim ser corrigidos (…) assim que possível e com efeitos no próximo exercício tarifário de 2017” revela a escassez linguística e financeira para cobrir o défice tarifário que há anos alimenta a ilusão de energia eléctrica barata. Os 140 milhões de euros supostamente recebidos em excesso pelos produtores no passado nem sequer chegam para pagar os juros da dívida tarifária que os consumidores pagam anualmente à banca. A propósito: onde estavam os justiceiros de hoje quando a dívida tarifária foi criada, em 2007? Será que por acaso estavam na banca?

A energia – como a água e outros recursos naturais – não é barata e não vai ser barata. É um bem escasso que devemos partilhar com todos os habitantes do planeta, hoje e amanhã; que devemos consumir com moderação, evitando desperdícios. O aumento crescente do volume da dívida tarifária e do âmbito de aplicação da tarifa social são sinais errados que se transmitem aos consumidores. A continuar assim, acabamos como na União Soviética, onde não havia contadores – eletricidade, gás e aquecimento eram grátis para todos.

Para compor a actual distopia, temos ainda um obsceno flirt serôdio com a exploração de hidrocarbonetos em terra e na água, uma original contribuição lusitana para a economia de baixo carbono no exacto momento em que, em todo o mundo, os principais investidores, soberanos e privados, voltam costas às empresas de energias fósseis. 

O sector da energia sustentável oferece enormes oportunidades de investimento e de criação de emprego, podendo contribuir muito significativamente para o crescimento económico. Ao mesmo tempo, Portugal dispõe de competências, ao nível científico e industrial, que lhe permitem retomar facilmente uma trajectória de liderança na transição energética, agora noutras frentes, nomeadamente na digitalização da energia, que facilita a gestão descentralizada dos recursos, colocando cidadãos e municípios no centro do novo paradigma energético. Será possível deixar de tentar demolir o passado e recomeçar a tentar construir o futuro, entrando noutro filme, como acontece no final de Balbúrdia no Oeste ? Esta balbúrdia na energia já dura há demasiado tempo.  

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

 

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