As dores na anca, a tortura e a maior ofensa da vida de Carlos Costa

O Governador do Banco de Portugal falou muito, emocionou-se, entrou em contradição, e usou imagens pouco habituais. Até Herberto Helder foi citado

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Miguel Manso

À chegada, Carlos Costa prometeu que a sua declaração inicial demoraria 20 minutos. Quando parou já passavam 54 minutos. Cecília Meireles, do CDS, foi a primeira deputada a interrogar o governador. A primeira pergunta não gastou mais de 30 segundos. A resposta prolongou-se por 15 minutos. Tudo estaria bem, não fosse a tentação de Costa para fazer aquilo que Ambrose Bierce criticava nos jornalistas: dissipar a verdade numa nuvem de palavras. Algumas das repostas do governador eram, pura e simplesmente, incompreensíveis. Como quando resolveu fazer várias comparações com a situação dos clientes do papel comercial do GES. Primeira imagem: uma viagem. “Não pode estar à chegada o que não estava à partida:” Cecília Meireles: “Oh senhor governador, a situação de partida é que aquelas pessoas tinham dinheiro e a de chegada é que não tinham.”

Então, mas não foi o Banco de Portugal que assegurou, por escrito, que aqueles clientes seriam reembolsados pelo Novo Banco? Carlos Costa garante que não. Meireles lê o mail. Costa filosofa: ”É o princípio de conservação da natureza: eu tenho direitos, tenho direitos; não tenho direitos, não tenho direitos.” Já na sua intervenção inicial Carlos Costa deixara bem clara a sua posição sobre este tema. “O reembolso da dívida GES é da exclusiva responsabilidade dos respectivos emitentes. Nunca poderia transitar essa responsabilidade para o Novo Banco.” Isso seria, assegura, um “grave incumprimento pelo respeito da hierarquia dos credores do BES”. Pior: acarretaria “prejuízos para o Fundo de Resolução, temporariamente reflexo nas contas do Estado”. Ainda pior:  “A hipótese de o Novo Banco assumir perdas em nome desses investidores seria injustificada e ilegal.”

O assunto regressaria, pela voz de Mariana Mortágua, do BE. Então o mail enviado pelo Banco de Portugal aos clientes, dizendo o contrário do que diz o governador, era errado? Não. “As pessoas que fizeram esse email não eram contabilistas nem têm formação contabilística. Foi uma ligeireza de linguagem. Se fosse eu a redigir esse texto não o redigiria assim.”

Foi então que o presidente da comissão citou Herberto Helder, passavam alguns minutos das 19 horas e Carlos Costa já se dizia vítima de “tortura”, ao fim de quatro horas de audição. “Não sei como dizer-te que a minha voz te procura”, foi o verso escolhido por Negrão, para sugerir ao governador que devia ouvir a voz dos clientes lesados do BES - os mesmos que tinham estado, em vão, horas antes, à espera de uma reunião com Carlos Costa. O supervisor mostrou-se, finalmente, disponível. E emocionou-se. “É óbvio que me custa muito quando alguém vai para a porta de minha casa e me chama gatuno. Foi a maior ofensa da minha vida.” O problema, garante Costa, é que “ninguém imagina o que é resolver um banco…” Ao fim de uma semana, garante, “um indivíduo está esgotado”. Porém, “valeu a pena os poucos cabelos pretos que ainda tinham terem desaparecido”. “Não desejo nem ao meu pior inimigo ter de passar por aquilo que a equipa do banco passou.”

O balanço do governador até é francamente positivo. O “processo de venda está a decorrer favoravelmente”, foram escolhidos sete candidatos à compra do Novo Banco e a “nova estrutura accionista será conhecida no Verão de 2015”. O passado está a ser investigado, e o regulador conta fechar o capítulo no início do próximo ano. Há aspectos que revelam “potencial relevância criminal” nas investigações em curso que versam sobre o “incumprimento de determinações do BdP”; a “avaliação do cumprimento das regras de controlo interno nas relações com o BESA”; e a “avaliação da legalidade das operações Eurofin, com ligações a Ricardo Salgado e ao GES”.

Este é o balanço de Carlos Costa. O dos deputados é diferente. Miguel Tiago, PCP, começou por deixar o governador sem resposta quando afirmou que só os clientes de retalho não recebem o retorno do que investiram, enquanto os dos ramos “corporate” e “private” têm sido reembolsados. Depois veio um momento de difícil compreensão. Carlos Tavares (ver texto ao lado) dissera de manhã que, nas vésperas da resolução (que ocorreu no sábado, 3 de Agosto de 2014), recebeu uma chamada de Carlos Costa sugerindo-lhe uma suspensão da negociação em bolsa dos títulos do BES, porque “suspeitava de fuga de informação”. Miguel Tiago perguntou a Costa se tinha sido assim. Costa disse que não tinha sido bem assim. “Eu não disse isso ao Presidente da CMVM. Olhava para a cotação e vi-a a cair mais do que era previsível. Sugeri a suspensão da cotação e disse-lhe que temia uma fuga de informação.” Mais tarde, negou ter sequer mencionado a “fuga de informação”. Mariana Mortágua voltou ao tema. Costa voltou a negar ter usado a expressão. A deputada citou-o. E só então admitiu: “A minha preocupação era evitar que houvesse qualquer fuga de informação.” Mas como poderia haver uma fuga de informação se mais ninguém, além do Governador, sabia antecipadamente que ia haver uma resolução - e esta era um instrumento que só uma vez, há 15 anos, tinha sido usado, e na Suécia?

Outro tipo de contradição recorrente no discurso do governador tem a ver com o que sabia, e o que desconhecia. Quando lhe perguntam se usou as revelações de Fernando Ulrich (em Maio de 2013) ou de Pedro Queiroz Pereira (primeiro semestre desse ano), garante que nada do que lhe foi comunicado era novo para o BdP. Porém, quando é questionado sobre os problemas concretos - o passivo da ESI, o BESA - Costa garante sempre que só soube depois do que seria de esperar.

Só “no início de Junho de 2014” é que o BdP “tomou conhecimento de um conjunto de situações de elevada gravidade na carteira de créditos do BESA”. Porém, em Outubro de 2013 Ricardo Salgado foi a Angola recolher uma “garantia soberana” que, precisamente, procurava salvaguardar a carteira de créditos do BESA.

Durante a sua audição nesta comissão, Sikander Sattar, responsável da KPMG (Portugal e Angola), que auditava quer o BES quer o BESA, alegou que "nas contas anuais do BES relativas a 2013", e que foram ainda apresentadas por Ricardo Salgado [...] "a garantia estatal angolana serviu de base para que não fosse necessária fazer uma provisão sobre os créditos de cobrança duvidosa e que tinham resultado de uma evolução negativa, particularmente, do mercado imobiliário, em Angola."  E isto tinha de ser do conhecimento do regulador. Já Carlos Costa disse que apenas soube dos problemas no BESA a 7 de Junho, quando o Expresso noticiou que o banco tinha um buraco de 5700 milhões (dólares) devido  a créditos, que representam 80% do total da carteira, e sobre os quais não há informação de quem são os beneficiários nem para que fins serviram. Mas até esta notícia já circulava desde Abril.

O mesmo para o passivo da ESI. Numa das cartas enviadas a Ricardo Salgado pelo BdP, o regulador refere que, a 30 de Setembro de 2013, o passivo da Espírito Santo Internacional já era afinal de 5600 milhões, muito acima dos 3900 milhões apurados três meses antes, em Junho. Na sequência, o vice-governador Duarte Neves deu instruções para que o BES apresentasse um plano, pois os rácios de capital da holding demonstravam uma reduzida capacidade para absorver choques adversos.

No entanto, Costa afirma aos deputados que só teve conhecimento do “aumento inusitado do passivo” da ESI no dia 26 de Novembro de 2013 (dois meses depois de o BdP intimar Salgado a resolver o problema). E que só informaria a CMVM da situação no dia “quatro de Abril” do ano seguinte porque não podia denunciar um caso sobre o qual apenas tinha indícios. Acossado pelas perguntas, voltou às comparações: “Eu sou o cardiologista, descubro que o doente tem um problema na anca, e ele vai queixar-se que a culpa é do cardiologista?” Mariana Mortágua escolheu outra imagem, para contrapor: “O senhor está perante um edifício a arder, tem um balde na mão, mas decide não fazer nada porque não é bombeiro…”

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