As “bavas”, os álibis e as dívidas ou o que fica do inquérito ao BES

A maioria vê no caso BES um trunfo eleitoral. Não será de estranhar que, pela primeira vez, PSD e CDS usem a queda dos “poderosos” como bandeira para as legislativas. Mas a comissão de inquérito tem muito mais a mostrar do que as razões da falência do maior grupo privado português.

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“Deu-lhe uma bava.” A expressão pode ainda não concorrer para o pódio das novas palavras, aquelas que determinado ano acrescenta ao nosso léxico, mas já tem seguidores. Uma “bava” é, depois da audição de Zeinal Bava, na comissão de inquérito à gestão do BES, um esquecimento útil. Uma espécie de abençoada falta de memória. Afinal, o ex-CEO da PT fez questão de repetir a mesma expressão – “Não guardo na memória” – demasiadas vezes para o gosto dos deputados que qualificaram como “frustrante” a sua prestação.

Há mais expressões novas: ring-fencing, tableaux de bord, conta escrow, ETTRIC. Contudo, a comissão não inovou apenas na linguagem. Criou imagens icónicas, como o embaraço de quase todos os membros da família Espírito Santo, uma das mais poderosas do país, nos últimos 150 anos, perante as perguntas de uma deputada de 28 anos, Mariana Mortágua, sempre calçada com ténis All Star. E uma marca para o futuro: o discurso anticasta (assim mesmo, como o do Podemos, em Espanha) dos partidos da maioria.

Foi o fim, tardio, em Portugal, da cultura Wall Street. Agora, como lembrou o deputado Duarte Marques, PSD, Ricardo Salgado é uma espécie de Ali Babá (embora nas Mil e Uma Noites a moral da história não seja exactamente a mesma...). “Não terá andado o sistema financeiro nos últimos anos a jogar à roleta com o contribuinte português?”, perguntou Paulo Portas que, em 2008, quando se deu a primeira falência na banca nacional, a do BPN, preferia apontar o dedo às falhas do Banco de Portugal.

Agora, por muito “sonolenta” (expressão de Portas para qualificar a actuação de Vítor Constâncio) que tenha sido a regulação do sector bancário, a mira dos partidos da maioria tem outro rosto: Ricardo Salgado. O banqueiro, que entrou na comissão com a alcunha de “dono disto tudo” e de lá saiu qualificado numa pergunta do PSD como “escroque da pior espécie”, é um aparente trunfo eleitoral numa pré-campanha sem grandes bandeiras para agitar.

Leia-se Maria Luís Albuquerque, ministra de Estado e das Finanças: “Houve erros de gestão muito graves. Erros de governance nas instituições. Da auditoria, que não terá visto o que devia. Se calhar as normas deviam ter outro tipo de exigências. Se calhar a supervisão deveria ter visto mais cedo.” Todos falharam, em resumo, excepto o Governo, que não interferiu, concluiu a ministra numa frase que resume todo o álibi de São Bento. O Executivo não salvou o GES, ignorou os pedidos de Salgado, confiou no Banco de Portugal (BdP) e, se tudo correr bem com a venda do Novo Banco (reavendo o Estado os 3,9 mil milhões que “emprestou” ao fundo de resolução), não terá aberto um buraco nas contas públicas comparável ao da nacionalização do BPN.

É claro que esta estratégia tem riscos, e nada disto é linear. A ministra diz que não esteve envolvida na decisão tomada pelo BdP de aplicar a “resolução”, mas, ao inviabilizar a recapitalização via linha da troika, poderá, na prática, ter imposto a aplicação da medida. Afinal, é um banqueiro, Fernando Ulrich, apoiante do PSD, que afirma: “Tenho imensa pena, mas não é possível fazer a separação do Governo desta situação." Será esse o ponto que justifica, agora, passados três meses, as declarações do coordenador dos deputados do PSD na comissão. Carlos Abreu Amorim, numa entrevista ao PÚBLICO, em Dezembro passado, traçou uma nova linha que distancia o PSD da imagem de partido “liberal”, amigo do sistema financeiro (e um dos seus principais beneficiários em donativos de campanhas eleitorais): “Toda a minha vida adulta andei a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago, o liberalismo político clássico. E depois da crise internacional, mas sobretudo neste mês muito intenso na comissão do GES, tudo isso abalou de uma forma muito profunda as convicções que eu tinha sobre o liberalismo. Eu, neste momento, estou com mais do que suspeitas, com a convicção, de que a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. (…) Por isso vou fazer-vos uma revelação: eu já não sou liberal.”

A visão dos reguladores
É este movimento dos partidos da maioria que mais expõe, e fragiliza, o governador do Banco de Portugal. Carlos Costa é o mesmo regulador que, há exactamente quatro anos, no dia 4 de Abril de 2011, chamou os principais banqueiros portugueses (Salgado incluído) para lhes transmitir uma preocupação e um elogio: “Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República, que é a parte que criou o problema.”

Como hoje é notório, os bancos não são (e já não eram em 2011) a “parte sã”. Se há conclusão evidente desta comissão de inquérito à falência do BES, é que a crise internacional abalou um dos principais alicerces que sustentavam o negócio financeiro português, desde que o país aderiu à moeda única europeia: a capacidade de sobreviver gerando, e reciclando, dívidas. Não é por coincidência que o ano de 2008 – o ano do crash em Wall Street – é o que marca o início de um dos principais problemas do GES: a ocultação da dívida da ESI.

Não foi um defeito do BES, era o feitio de quase todo o sistema financeiro, do Lehman Brothers ao BCP, do BPN ao Northern Rock. Da Espírito Santo Internacional (ESI) ao Espírito Santo Panamá. Carlos Costa, que fez carreira na banca privada, como director do BCP, chefia um órgão de supervisão que partilha a mesma cultura, os mesmos valores e a mesma noção de eficácia dos banqueiros que regula. Essa é a conclusão do economista Joseph Stiglitz, que qualificou esta “captura do regulador” entre as causas da crise de 2008.

Neste universo, aquilo que parece errado ao comum dos mortais pode ser uma “inovação financeira” digna de elogio. Vender dívida da ESI, já tecnicamente falida, aos clientes do BES, por exemplo. Neste ponto, o outro regulador, Carlos Tavares, da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), parece menos “capturado” do que o responsável do Banco de Portugal. Tavares explicou aos deputados que é “dos antigos”: “No início desta crise defendia-se isto, mas já foi esquecido… As instituições financeiras devem ser mais pequenas e mais simples, menos complexas.” Tavares acrescentou ainda que transparência não garante simplicidade, quando há produtos financeiros descritos em “prospectos de 600 páginas”. “Ninguém consegue ler prospectos de 600 páginas...”

O negócio da dívida
Isso explica a situação de cerca de 2500 clientes do BES, que investiram mais de 500 milhões em dívida da ESI, comprada aos balcões do BES. A operação foi formalmente proibida pelos reguladores em Fevereiro de 2014. Mas a falência da ESI já era conhecida pelo menos desde Setembro do ano anterior. E nada impediu que mesmo depois de Fevereiro esses produtos “tóxicos” tenham continuado a ser vendidos.

Ricardo Salgado e a sua equipa geriam uma espécie de multinacional com sede em vários refúgios fiscais, que garantiam sigilo: Baamas, Panamá, Luxemburgo, Suíça. A arquitectura do grupo mudava conforme as necessidades da dívida. A ESI estava no topo da pirâmide. Abaixo estava o BES e a ES Resources, que detinha toda a parte erradamente qualificada de “não financeira” (na prática, tudo era financeiro, mesmo nos negócios que à partida nada tinham a ver com a banca).

Em 2009, depois da crise, a Resources, com sede nas Baamas, ganhou uma “irmã”, com o mesmo nome, mas sede no Luxemburgo. A das Baamas ficou com a dívida, a do Luxemburgo “com as empresas boas”, explica Mariana Mortágua, no seu blogue Disto Tudo, criado para explicar o caso ao grande público. “Foi então que a ES Resources Luxemburgo passou a chamar-se Rioforte. A ideia mantinha-se: vender a Rioforte a investidores privados e, com esse dinheiro, pagar a dívida do grupo. Mas o objectivo nunca foi cumprido: a Rioforte não foi vendida, e a ES Resources Baamas continuou a acumular dívida.” No final: o GES tinha 8900 milhões de euros de passivo. Estava falido. E isso era conhecido em todas as sedes institucionais.

O Governo sabia. Ulrich informou o ministro das Finanças da altura, Vítor Gaspar, em Maio ou Junho de 2013. Pedro Queiroz Pereira, sócio desavindo da família Espírito Santo, informou o Banco de Portugal, no primeiro semestre de 2013. José Maria Ricciardi informou Pedro Passos Coelho, seu amigo, em São Bento, em Outubro de 2013. Porém, não só Ricardo Salgado se manteve à frente do grupo até 19 de Junho de 2014, como a dívida do grupo continuou a ser “reciclada” dentro e fora do BES, arrastando alguns pesos-pesados do PSI20. É o caso da PT…

Em Abril de 2014, a PT trocou o seu investimento em dívida da ESI, por conselho de Ricardo Salgado, em 900 milhões de dívida da Rioforte (igualmente falida). É deste processo que Zeinal Bava não guarda memória. Henrique Granadeiro, o outro responsável da PT, guarda: “Isto destruiu a minha carreira. Fui injustiçado. Alguém devia ter-me dado sinais. Não foi a PT que fez cair o BES. Foi o BES que fez cair a PT.”

É este hiato temporal, entre o conhecimento dos graves problemas do GES e a medida de resolução (tomada por Carlos Costa no dia 3 de Agosto de 2014), que se torna difícil de compreender. Sobretudo, a inacção dos reguladores, do Governo e da própria troika, que monitorizava as contas relevantes do país. Carlos Moedas era o responsável pela ligação entre o executivo e a troika, neste período. Aos deputados deu uma resposta que ajuda a explicar o arrastamento do problema: "Depreendi que a situação poderia ser mais preocupante do que se supunha pelo que admiti que pudesse haver implicações para o processo de saída do programa em que Portugal se encontrava. Recorde-se que o programa tinha acabado formalmente no dia 17 de Maio, mas ainda não tínhamos obtido aprovação formal na última avaliação do programa por parte do Fundo Monetário Internacional."

Ou seja, enquanto a troika se manteve em Portugal, Ricardo Salgado pôde manter-se no GES, porque a sua saída criaria um mal maior? Maria Luís Albuquerque não partilha desta versão do actual comissário europeu. Mas a oposição, PS, BE e PCP, incluem o Governo nos responsáveis pela forma como se desintegrou o maior grupo privado português. A lista de Pedro Nuno Santos, coordenador dos deputados do PS, é esta: “Desde logo, em primeiro lugar, o presidente da comissão executiva do BES, toda a sua equipa e restantes administradores, auditor externo, supervisores, Banco de Portugal, CMVM, Instituto de Seguros de Portugal, troika e Governo.”

Agora que os trabalhos da comissão de inquérito se tornam menos públicos, com o fim das audições, os holofotes centram-se no meticuloso trabalho realizado pela Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual do Parlamento. Nas mais de 4000 páginas transcritas e nos mais de 46 gigabites de informação recolhida está a chave para os enigmas deste caso. E o antídoto para qualquer “bava” que tolde a memória colectiva deste caso.

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